Quem acompanha o blog já deve ter percebido como a questão da linguagem para nós não é secundária. Desnaturalizar a transfobia significa questionar certos efeitos de sentidos que tomamos como evidência: sobre homens, mulheres e “os trans”. E toda vez que questionamos certos sentidos já dados sobre essas categorias (ou poderia dizer, identidades) a questão da língua entra inevitavelmente. E isso não significa que estamos falando sobre algum sentido sobre as palavras que estaria escondido que seria em última instância verdadeiro, e que a língua portanto seria uma abstração virtual que comportaria esse sentido unívoco para a prática política. Ao contrário, a política se dá na exata medida em que a língua é capaz de falhas. O que significa também entender que a prática política - assim como o discurso - é um processo sem começo nem fim pré-determinados.
Decidi que seria interessante publicar dois comentários que Teofilo Tostes Daniel fez em uma publicação pública no facebook de Daniela Andrade em uma discussão sobre a imagem da página Era de Cisperar. Apaguei algumas marcas de interlocução (os seus nomes) no texto a quem Teofilo estava se dirigindo, já que ele estava dialogando com outras pessoas no post. Mesmo assim, como podem ver, trata-se de um texto que merecia ser publicado para além dos efêmeros comentários do facebook.
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Minha leitura dessa imagem não me remete a possíveis erros, que certamente ocorrem, causados por desconhecimento — embora a língua não seja neutra e ela também guarda, em sua estrutura, os preconceitos da sociedade (basta lembrar que palavras como ídolo e gênio não têm feminino, e que, ao nos referirmos a um coletivo com pessoas variadas, utilizamos sempre marcas linguísticas no masculino). Eu sou uma pessoa cisgênera. Mesmo não estando no lugar de quem pode falar com alguma autoridade — pois não tenho a vivência transgênera, ou entre-gêneros -, vejo muitos estudos acadêmicos, supostamente sérios, reproduzindo… a ignorância.
Vale lembrar que as pessoas transgêneras sofrem de uma permanente invisibilidade em relação a vários aspectos da vida quotidiana. Aspectos que a nós, cisgêneros, parecem ‘normais’, como o fato de ninguém estranhar que meu nome na identidade difere da imagem que eu tenho e passo às pessoas no convívio social. Aliás, para ser o que sou não preciso de um atestado médico falando… que eu tenho um transtorno psiquiátrico!
E no caso da figura, há um agravante: a exclusão de pessoas trans* do espectro de homens e mulheres. Homens trans* são homens e mulheres trans* são mulheres. Parece tautológico ter de repetir isso, mas no atual estado de coisas, não é ainda. Claro, há também pessoas não-binárias. Mas trans* não são, necessariamente, uma categoria, ou um outro gênero, fora do gênero masculino ou feminino. Agora, se alguém “foi lá falar sobre gênero” — e eu leio esse lá da figura como o lugar do “legítimo” saber, do poder de dizer da taxonomia do mundo, lugar esse que comumente é ocupado por pessoas cisgêneras -, talvez fosse de “cisperar” que essa pessoa ao menos não reproduzisse o preconceito do senso-comum.
Além disso, a língua é uma construção, ela não muda por decreto. Muitas vezes alternativas irrompem para responder a um silêncio, a uma não-nomeação de algo que demanda um nome. Por exemplo, o termo cisgênero. Eu aprendi pela linguagem que tinha à época — cresci nos anos oitenta — que a oposição às pessoas transgêneras — que eu basicamente identificava como travestis — eram as pessoas… normais. Particularmente, eu não achava as travestis anormais. Mas minha estrutura de pensamento não dispunha senão do repertório linguístico que reproduzia a ideia de que as travestis — e, na verdade, qualquer pessoa transgênera — não era normal. Faltava-me exatamente a palavra cisgênero! Aliás, é sintomático que o corretor ortográfico automático do meu Google Chrome grife como errada a palavra cisgênero e não aponte erro na palavra transgênero. Tocando essa questão, vale muito a leitura desse texto magnífico, que mostra a relação entre o irrompimento da noção de cisgeneridade e a possibilidade (política) de contestação da normatividade cisgênera.
No caso dessa imagem do post: Por que alguém que vai falar sobre gênero não poderia dizer, por exemplo, “os homens, as mulheres e as pessoas não-binárias”? Simples, direto, inclusivo e, me parece, mais respeitoso com o estar-sendo de cada um.
Longe de mim dizer o que é certo e errado, sobretudo no campo da linguagem. Em especial no que deve ser ou não dito para se referir a pessoas trangêneras, tendo em vista que eu sou uma pessoa cisgênera e o que me cabe nesse campo, se eu quiser respeitar as pessoas trans* — e minha opção é sempre pelo respeito -, é estar atento a como as pessoas pedem que eu me refira a elas.
Vamos voltar um pouco no tempo, num tempo em que eu não era sequer nascido. No tempo dos meus avós, quando era comum pais esconderem em casa filhos deficientes — sobretudo com deficiência mental ou graves problemas físicos. Nesse tempo, era “aceitável” se referir a deficientes físicos como aleijados, coxos, mancos, aleijões, etc. E a deficientes mentais como retardados, mongóis, débeis, entre outras coisas.
Eu sou deficiente físico. Como cresci nos anos oitenta, só se referiam a mim como aleijado quando queriam me xingar — e há crueldade também entre as crianças. No entanto, não era sequer aceitável que numa conversa educada, alguém falasse de mim como “aquele aleijado”, ou “aquele coxo”. Mas nesse tempo, ainda não era tão incomum as pessoas se referirem, em conversas normais, a um deficiente mental como “mongol”, “débil” e até “retardado”. Hoje isso não é aceitável, e o comum é falar que alguém tem “deficiência mental”, ou designando pelo tipo de deficiência, como “down”, etc. Lendo o livro Holocausto Brasileiro, que conta a história do manicômio de Barbacena, o maior hospício do país no Século XX, onde mais de 60 mil internos morreram das formas mais horríveis — frio, fome, choque, etc. — é possível intuir sobre o porquê esse estigma perdurou mais.
Coincidentemente, com a mudança no uso quotidiano das palavras, vemos o crescimento da preocupação com a acessibilidade e com a educação inclusiva. E mesmo que estejamos muito longe de estarmos num mundo acessível, é nítido que as pessoas se constrangem quando se defrontam com a inacessibilidade dentro de seus próprios espaços — lojas, supermercados, etc.
Agora vamos pensar na forma de nos referirmos à homossexualidade. Esse paralelo que traço é para pensar grupos que sofrem com estigmas. Nos anos 80, era bem comum dizer que fulano era bicha, por exemplo. E também gay — que é uma palavra aceita, leve e que não tem um sentido de xingamento. Lésbicas eram invisíveis — conheci pessoas que sustentavam seriamente que não existiam lésbicas, e era só um “homem de verdade” chegar nelas, que elas “cederiam”.
Em contrapartida, a dicotomia não era entre os gays/bichas e os héteros, mas entre os gays e os normais. Lembro que em meados dos anos 90 é que os termos homo e heterossexuais passaram a ser mais usados. A primeira vez que eu ouvi o termo homofobia, por exemplo, deve ter sido lá para 96 e 97 — não estou falando do seu surgimento, claro, que eu nem sequer sei como foi. E é claro que, sendo hétero, provavelmente eu deva ter conhecido esse termo depois dos meus amigos gays.
Obviamente, ainda existe muito preconceito contra os homossexuais, que só recentemente vêm tendo alguma paridade (ainda precária) de direitos, em suas uniões, com relação às uniões heterossexuais.Mas é de se notar que a popularização dos termos hétero e homossexuais se deu de forma mais ou menos concomitante com o crescimento do movimento que ainda em meados dos anos 2000 eu conhecia como GLS, que não só lutou contra a homofobia, mas também pela conquista de uma série de direitos negados. Essa popularização levou, inclusive, a setores mais conservadores da sociedade a inventarem a bizarrice do “orgulho hétero”, algo que seria impensável nos anos 80 porque os gays, na fala popular, não estavam em dicotomia com os héteros, mas com os “normais”.
Adentrando agora ao campo da transgeneridade — ou da cisgeneridade compulsória, sempre invisível e condenando pessoas transgêneras a serem opostas conceitualmente às pessoas “normais”: Além de a conquista de direitos estar ainda engatinhando — e não existir uma lei que permita e simplifique a mudança de nome é um índice do quanto os direitos básicos são negados a essa parcela da população -, as referências desrespeitosas às pessoas transgêneras ainda são socialmente aceitas. Não raro se fala “as travas”, “os travecos”, “as/os trans”, “o transexual” (quando se trata de uma mulher trans), etc.
E sobre a questão que a Daniela levantou, de que ela não é uma trans, isso faz muito sentido. A Daniela realmente não é uma trans, mas sim uma mulher. Uma mulher trans. Quando alguém se refere a ela como uma trans, há o apagamento do fato de ela ser uma mulher e, eu arriscaria até, o apagamento de que ela é uma pessoa. Metonimicamente, ela se torna apenas algo que a caracteriza, que a constitui. Deixa de ser um todo e se torna uma parte. E, “coincidentemente”, a parte considerada pela sociedade como “abjeta”. Em contraposição, eu jamais serei o cis — e nem qualquer mulher cisgênera será a cis. Quem se referir a mim, falará “daquele homem”. Sim, é verdade que há uma elipse quando nos referimos a alguém como “a trans”, mas existe uma construção social que leva a essa elipse que reforça preconceitos. E eu arriscaria dizer, mesmo sendo uma pessoa cis e não tendo a vivência da experiência transgênera, que essa elipse tende a significar o apagamento ou a desumanização da pessoa trans. A elipse de seu ser no mundo.
E os exemplos que ela usa são ótimos. Alguém fala que “a cis foi à praia”? É tão nonsense, que não dá sequer para imaginar isso. No entanto, com mulheres trans, isso deveria ser aceitável? Por quê? Aliás, a maior parte das pessoas cisgêneras nem sabem o que isso significa. E há também quem, sabendo o que é, se recusa a aceitar essa categorização, como se ela fosse um absurdo, ou até uma ofensa. Afinal, haveria, por exemplo, as mulheres trans e as… biológicas? Uma nova forma de dizer normais, opondo a suposta “natureza” da pessoa cisgênera a uma espécie de engodo ou artificialidade dos corpos das pessoas trans? Isso não se parece, inclusive, com um discurso religioso fundamentalista?
Bom, eu acho que não dá para ignorar o poder das palavras e da nominação do mundo. Poder dizer o que as coisas são é uma forma de poder. Por isso, existem disputas de nomenclaturas. Existe o esforço de precisão ou rejeição de termos. Não fossem as palavras tão importantes, no distópico 1984 George Orwell não conceberia um mundo capaz de criar a novilíngua — e muito menos pensar no que politicamente isso significa. Essa minha visão, porém, pode ser um defeito do olhar de quem trabalha com palavras…