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Guest Post com Teofilo Tostes Daniel - Um pouco mais sobre linguagem

Quem acompanha o blog já deve ter percebido como a questão da linguagem para nós não é secundária. Desnaturalizar a transfobia significa questionar certos efeitos de sentidos que tomamos como evidência: sobre homens, mulheres e “os trans”. E toda vez que questionamos certos sentidos já dados sobre essas categorias (ou poderia dizer, identidades) a questão da língua entra inevitavelmente. E isso não significa que estamos falando sobre algum sentido sobre as palavras que estaria escondido que seria em última instância verdadeiro, e que a língua portanto seria uma abstração virtual que comportaria esse sentido unívoco para a prática política. Ao contrário, a política se dá na exata medida em que a língua é capaz de falhas. O que significa também entender que a prática política - assim como o discurso - é um processo sem começo nem fim pré-determinados.

Decidi que seria interessante publicar dois comentários que Teofilo Tostes Daniel fez em uma publicação pública no facebook de Daniela Andrade em uma discussão sobre a imagem da página Era de Cisperar. Apaguei algumas marcas de interlocução (os seus nomes) no texto a quem Teofilo estava se dirigindo, já que ele estava dialogando com outras pessoas no post. Mesmo assim, como podem ver, trata-se de um texto que merecia ser publicado para além dos efêmeros comentários do facebook.

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Retirado da página "Era de Cisperar"

Retirado da página “Era de Cisperar”

Minha leitura dessa imagem não me remete a possíveis erros, que certamente ocorrem, causados por desconhecimento — embora a língua não seja neutra e ela também guarda, em sua estrutura, os preconceitos da sociedade (basta lembrar que palavras como ídolo e gênio não têm feminino, e que, ao nos referirmos a um coletivo com pessoas variadas, utilizamos sempre marcas linguísticas no masculino). Eu sou uma pessoa cisgênera. Mesmo não estando no lugar de quem pode falar com alguma autoridade — pois não tenho a vivência transgênera, ou entre-gêneros -, vejo muitos estudos acadêmicos, supostamente sérios, reproduzindo… a ignorância.

Vale lembrar que as pessoas transgêneras sofrem de uma permanente invisibilidade em relação a vários aspectos da vida quotidiana. Aspectos que a nós, cisgêneros, parecem ‘normais’, como o fato de ninguém estranhar que meu nome na identidade difere da imagem que eu tenho e passo às pessoas no convívio social. Aliás, para ser o que sou não preciso de um atestado médico falando… que eu tenho um transtorno psiquiátrico!

E no caso da figura, há um agravante: a exclusão de pessoas trans* do espectro de homens e mulheres. Homens trans* são homens e mulheres trans* são mulheres. Parece tautológico ter de repetir isso, mas no atual estado de coisas, não é ainda. Claro, há também pessoas não-binárias. Mas trans* não são, necessariamente, uma categoria, ou um outro gênero, fora do gênero masculino ou feminino. Agora, se alguém “foi lá falar sobre gênero” — e eu leio esse lá da figura como o lugar do “legítimo” saber, do poder de dizer da taxonomia do mundo, lugar esse que comumente é ocupado por pessoas cisgêneras -, talvez fosse de “cisperar” que essa pessoa ao menos não reproduzisse o preconceito do senso-comum.

Além disso, a língua é uma construção, ela não muda por decreto. Muitas vezes alternativas irrompem para responder a um silêncio, a uma não-nomeação de algo que demanda um nome. Por exemplo, o termo cisgênero. Eu aprendi pela linguagem que tinha à época — cresci nos anos oitenta — que a oposição às pessoas transgêneras — que eu basicamente identificava como travestis — eram as pessoas… normais. Particularmente, eu não achava as travestis anormais. Mas minha estrutura de pensamento não dispunha senão do repertório linguístico que reproduzia a ideia de que as travestis — e, na verdade, qualquer pessoa transgênera — não era normal. Faltava-me exatamente a palavra cisgênero! Aliás, é sintomático que o corretor ortográfico automático do meu Google Chrome grife como errada a palavra cisgênero e não aponte erro na palavra transgênero. Tocando essa questão, vale muito a leitura desse texto magnífico, que mostra a relação entre o irrompimento da noção de cisgeneridade e a possibilidade (política) de contestação da normatividade cisgênera.

No caso dessa imagem do post: Por que alguém que vai falar sobre gênero não poderia dizer, por exemplo, “os homens, as mulheres e as pessoas não-binárias”? Simples, direto, inclusivo e, me parece, mais respeitoso com o estar-sendo de cada um.

Longe de mim dizer o que é certo e errado, sobretudo no campo da linguagem. Em especial no que deve ser ou não dito para se referir a pessoas trangêneras, tendo em vista que eu sou uma pessoa cisgênera e o que me cabe nesse campo, se eu quiser respeitar as pessoas trans* — e minha opção é sempre pelo respeito -, é estar atento a como as pessoas pedem que eu me refira a elas.

Vamos voltar um pouco no tempo, num tempo em que eu não era sequer nascido. No tempo dos meus avós, quando era comum pais esconderem em casa filhos deficientes — sobretudo com deficiência mental ou graves problemas físicos. Nesse tempo, era “aceitável” se referir a deficientes físicos como aleijados, coxos, mancos, aleijões, etc. E a deficientes mentais como retardados, mongóis, débeis, entre outras coisas.

Eu sou deficiente físico. Como cresci nos anos oitenta, só se referiam a mim como aleijado quando queriam me xingar — e há crueldade também entre as crianças. No entanto, não era sequer aceitável que numa conversa educada, alguém falasse de mim como “aquele aleijado”, ou “aquele coxo”. Mas nesse tempo, ainda não era tão incomum as pessoas se referirem, em conversas normais, a um deficiente mental como “mongol”, “débil” e até “retardado”. Hoje isso não é aceitável, e o comum é falar que alguém tem “deficiência mental”, ou designando pelo tipo de deficiência, como “down”, etc. Lendo o livro Holocausto Brasileiro, que conta a história do manicômio de Barbacena, o maior hospício do país no Século XX, onde mais de 60 mil internos morreram das formas mais horríveis — frio, fome, choque, etc. — é possível intuir sobre o porquê esse estigma perdurou mais.

Coincidentemente, com a mudança no uso quotidiano das palavras, vemos o crescimento da preocupação com a acessibilidade e com a educação inclusiva. E mesmo que estejamos muito longe de estarmos num mundo acessível, é nítido que as pessoas se constrangem quando se defrontam com a inacessibilidade dentro de seus próprios espaços — lojas, supermercados, etc.

Agora vamos pensar na forma de nos referirmos à homossexualidade. Esse paralelo que traço é para pensar grupos que sofrem com estigmas. Nos anos 80, era bem comum dizer que fulano era bicha, por exemplo. E também gay — que é uma palavra aceita, leve e que não tem um sentido de xingamento. Lésbicas eram invisíveis — conheci pessoas que sustentavam seriamente que não existiam lésbicas, e era só um “homem de verdade” chegar nelas, que elas “cederiam”.

Em contrapartida, a dicotomia não era entre os gays/bichas e os héteros, mas entre os gays e os normais. Lembro que em meados dos anos 90 é que os termos homo e heterossexuais passaram a ser mais usados. A primeira vez que eu ouvi o termo homofobia, por exemplo, deve ter sido lá para 96 e 97 — não estou falando do seu surgimento, claro, que eu nem sequer sei como foi. E é claro que, sendo hétero, provavelmente eu deva ter conhecido esse termo depois dos meus amigos gays.

Obviamente, ainda existe muito preconceito contra os homossexuais, que só recentemente vêm tendo alguma paridade (ainda precária) de direitos, em suas uniões, com relação às uniões heterossexuais.Mas é de se notar que a popularização dos termos hétero e homossexuais se deu de forma mais ou menos concomitante com o crescimento do movimento que ainda em meados dos anos 2000 eu conhecia como GLS, que não só lutou contra a homofobia, mas também pela conquista de uma série de direitos negados. Essa popularização levou, inclusive, a setores mais conservadores da sociedade a inventarem a bizarrice do “orgulho hétero”, algo que seria impensável nos anos 80 porque os gays, na fala popular, não estavam em dicotomia com os héteros, mas com os “normais”.

Adentrando agora ao campo da transgeneridade — ou da cisgeneridade compulsória, sempre invisível e condenando pessoas transgêneras a serem opostas conceitualmente às pessoas “normais”: Além de a conquista de direitos estar ainda engatinhando — e não existir uma lei que permita e simplifique a mudança de nome é um índice do quanto os direitos básicos são negados a essa parcela da população -, as referências desrespeitosas às pessoas transgêneras ainda são socialmente aceitas. Não raro se fala “as travas”, “os travecos”, “as/os trans”, “o transexual” (quando se trata de uma mulher trans), etc.

E sobre a questão que a Daniela levantou, de que ela não é uma trans, isso faz muito sentido. A Daniela realmente não é uma trans, mas sim uma mulher. Uma mulher trans. Quando alguém se refere a ela como uma trans, há o apagamento do fato de ela ser uma mulher e, eu arriscaria até, o apagamento de que ela é uma pessoa. Metonimicamente, ela se torna apenas algo que a caracteriza, que a constitui. Deixa de ser um todo e se torna uma parte. E, “coincidentemente”, a parte considerada pela sociedade como “abjeta”. Em contraposição, eu jamais serei o cis — e nem qualquer mulher cisgênera será a cis. Quem se referir a mim, falará “daquele homem”. Sim, é verdade que há uma elipse quando nos referimos a alguém como “a trans”, mas existe uma construção social que leva a essa elipse que reforça preconceitos. E eu arriscaria dizer, mesmo sendo uma pessoa cis e não tendo a vivência da experiência transgênera, que essa elipse tende a significar o apagamento ou a desumanização da pessoa trans. A elipse de seu ser no mundo.

E os exemplos que ela usa são ótimos. Alguém fala que “a cis foi à praia”? É tão nonsense, que não dá sequer para imaginar isso. No entanto, com mulheres trans, isso deveria ser aceitável? Por quê? Aliás, a maior parte das pessoas cisgêneras nem sabem o que isso significa. E há também quem, sabendo o que é, se recusa a aceitar essa categorização, como se ela fosse um absurdo, ou até uma ofensa. Afinal, haveria, por exemplo, as mulheres trans e as… biológicas? Uma nova forma de dizer normais, opondo a suposta “natureza” da pessoa cisgênera a uma espécie de engodo ou artificialidade dos corpos das pessoas trans? Isso não se parece, inclusive, com um discurso religioso fundamentalista?

Bom, eu acho que não dá para ignorar o poder das palavras e da nominação do mundo. Poder dizer o que as coisas são é uma forma de poder. Por isso, existem disputas de nomenclaturas. Existe o esforço de precisão ou rejeição de termos. Não fossem as palavras tão importantes, no distópico 1984 George Orwell não conceberia um mundo capaz de criar a novilíngua — e muito menos pensar no que politicamente isso significa. Essa minha visão, porém, pode ser um defeito do olhar de quem trabalha com palavras…

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O irrompimento da cisgeneridade

Levando em consideração, a partir das formulações da Análise de Discurso de que a língua é sujeita a falhas e que comporta a lalíngua (a língua que comporta a incompletude do inconsciente e dos sentidos), passo a entender a passagem da utilização do termo cisgênero não como uma criação, mas sim como irrompimento. Aqui no blog já propus que o surgimento do termo se deu na passagem incessante entre a linguagem e o silêncio, a partir de algumas reflexões de Eni Orlandi. Ou seja, o termo cisgênero não foi criado, foi irrompido na cadeia de significantes que simboliza o gênero (e por deslizamentos, a própria sexualidade). Afinal de contas, não se pode “criar” um termo, assumindo o teor de “novidade” que este verbo poderia indicar, que esteja nomeando algo que já está sempre lá, significando de alguma (outra) forma. A questão, de fato, é entender que estas formas de significar o gênero pelo (cis)gênero que “já estão lá desde sempre” acontecem de uma forma especialmente “subterrânea”: no inconsciente e pela interpelação ideológica.

Trata-se de uma aparente sutil diferença entre concepções de linguagem, mas que julgo muito relevantes. A diferença está entre não compreender a língua como um mero repositório de léxicos que serviriam para rotular uma realidade extra-linguística, mas sim compreende-la a partir de sua espessura semântica, sua ordem própria (ordem esta tributária à linguística). Então, entender que a língua possui uma “ordem própria” diz respeito a entendê-la através da relação que os signos mantêm entre outros signos dentro do sistema linguístico.

Para compreender a irrupção do termo cisgênero temos que observar não apenas que o termo refere a certas pessoas no mundo que são/seriam cisgêneras, mas para a relação que o termo estabelece com outros signos, em especial com o termo transgênero. E também dizer que há algo “mais” (ou melhor que “falta”, já diriam os psicanalistas) que o puramente linguístico, ou seja, os significantes deslizam nas cadeias simbólicas de formas não “esperadas”, inusitadas. É quando irrompem enunciados não logicamente estabilizados, já diria Pêcheux. Este é o real da língua que falam os analistas de discurso. Lembro de ter lido em algum lugar que para ser analista de discurso é preciso ser linguista e ao mesmo tempo não ser; acredito que aqui seja bem o caso, já que proponho pensar a irrupção do termo cisgênero como uma falha (ideológica) do gênero.

cis-temÉ a partir desta perspectiva que podemos compreender como a nomeação da cisgeneridade envolve uma estranha-familiaridade. Afinal, é algo que está sempre “já lá” mas a partir do momento em que ela surge como uma materialidade significante em sua total opacidade, há um estranhamento. Por que será que pessoas cis não sabem que são cis? Ou então, mesmo que tenham contato com as “definições” sobre o termo, por que ainda não se identificam como cisgêneros, ou simplesmente não “entendem”? De onde surge esta resistência ao significante? Como é possível um homem-designado-homem ou uma mulher-designada-mulher ao nascerem não se reconhecerem como cisgêneros?

O par estranheza-familiaridade também joga com o absurdo-evidência, como também nos propõe Pêcheux (2009), ao relacionar com a questão do pré-construído. O pré-construído consistiria numa “discrepância pela qual um elemento irrompe no enunciado como se tivesse sido pensado “antes, em outro lugar, independentemente”” (p.142). A evidência sobre homens e mulheres serem homens e mulheres esbarram no seu par estranheza-absurdo quando se deparam com alteridades transgêneras. As determinações “homens nascidos homens”; “mulheres nascidas mulheres”; “homens e mulheres verdadeirxs” e “homens e mulheres biológicxs” mostram bem onde a familiaridade-evidência se choca com o absurdo-estranheza. Em todo caso, o que subjaz a todas essas formulações é o caráter de “absurdo” que uma possível alteridade que viria a se estabelecer entre pessoas cis e trans*, o que nos remete a “evidência” ideológica que alguns homens e mulheres são mais verdadeirxs/biológicxs/nascidxs do que outros.

A cisgeneridade funciona como uma lei em que a identidade do sujeito é simbolizada e determinada em uma cadeia de significantes. Com isso não quero dizer que o significante cisgênero tem que estar necessariamente ocupando seu lugar na cadeia pra que faça sentido. Aliás, ele é muito “produtivo” justamente quando se recalca e produz sentidos em sua ausência necessária. As determinações como “homens e mulheres biológicxs”; “homens e mulheres nascidxs homens e mulheres”; “homens e mulheres verdadeirxs” são formas como o significante cisgênero é irrompido na sua presença pela ausência nas formas de designar “homens” e “mulheres”.

O sujeito cisgênero pensa que domina seu discurso por meio destas designações que busca a completude do mesmo, mas trata-se novamente de uma ilusão: se o sujeito cisgênero é biológico, em que medida o sujeito transgênero não seria? Se o sujeito cisgênero é verdadeiro e nascido como tal, em que medida o sujeito transgênero também não seria? Aqui a língua é impiedosa para o sujeito cisgênero: o equívoco insiste em aparecer, desestruturando o sujeito uno novamente. Para isso as pessoas trans* tomam seu papel, aliando o simbólico com o político: afirmamos que somos também pessoas biológicas (existimos no real), nascidas enquanto tal (o desígnio de gênero no nascimento não é transparente) e tão verdadeiras (ou falsas) quanto às pessoas cisgêneras. Questionamos novamente o mundo semanticamente normal cisgênero (que a cada insistência no equívoco se mostra cada vez menos “normal”, acrescentaria, e mais estranho a si mesmo).

Se entendemos que a ideologia interpela os indivíduos em (desde já) sujeitos, entendemos que o gênero interpela (os desde já) homens em Homens e mulheres em Mulheres pelo norte da cisgeneridade compulsória. Mas esta interpelação não se dá sob a forma da perfeição, é certo que existem falhas, e isso se observa na hiância entre os homens e mulheres entre letras minúsculas e maiúsculas, ou seja, ao ser interpelado pela forma/ilusão da autonomia do gênero, os homens e mulheres irão manifestar certa estranheza-familiaridade com o próprio gênero. Aqui a metáfora com a “letra maiúscula” para entender a interpelação do sujeito não precisa de maiores explicações: todo mundo sabe o que é “um homem com H maiúsculo”. É dele (ou deste imaginário sobre o homem) que estamos falando, assim como o seu correspondente imaginário do sujeito feminino. O sujeito tende a almejar o Sujeito em um efeito de total encobrimento e univocidade, mas há uma falta neste processo, uma falha dada ao grande Outro que lhe é constitutivo e que ameaça a sua própria coerência.

É nesta hiância entre o sujeito e o Sujeito do (cis)gênero que o gênero como norma cisgênera e heterossexual pode ser contestado (e nomeado). É no entremeio desta falta constitutiva que emerge a cisgeneridade em sua faceta mais opaca: como um significante, como a própria forma de nomeação do hegemônico. O processo de nomeação do hegemônico passa a ser o próprio processo do desvelamento da hegemonia. Aqui talvez podemos observar a ligação material paradoxal entre ideologia e inconsciente: se a cadeia que simboliza o gênero é inconsciente, é certo que a irrupção da cisgeneridade no discurso se dá através da passagem dos sentidos que estão inconscientes e emergem sob determinada forma na pré-consciência ou consciência. É juntamente nesta emergência de significações que vislumbramos o político. Com isso proponho devolver a opacidade aos nossos próprios corpos, corpos esses tão generificados pela ideologia.

Isso diz respeito diretamente a uma “inversão” que estava pensando ultimamente. Não iremos mais entender os motivos biopsicossociais das subversões ou disforias de gênero. Isso pois, nesta proposta de análise, proponho uma “teoria não subjetivista da transgeneridade”. Não vai ser por meio do biologismo, do psicologismo ou do sociologismo que iremos entender as identidades trans*, pois não existe nenhum motivo biológico, psicológico ou social por si só (ou todos inter-relacionados) que poderiam definir e determinar a transgeneridade. O que de fato não existe é motivo para que a cisgeneridade compulsória não seja questionada, a partir do momento que compreendemos que a cisgeneridade funciona como forma de interpelação ideológica (pela falha). Isso significa, por fim, problematizar ou questionar os entendimentos sobre as identidades trans* que são feitos (em especial) pelos discursos da psiquiatria/psicologia e do feminismo radical. Ou seja: transgeneridade não é, em última instância, da ordem do empírico-biológico, não é determinada por razões psicológicas/psiquiátricas (a utilização do termo “autoginecofilia” exemplifica muito bem o furo destas perspectivas psicologistas) ou sociológicas. A(s) transgeneridade(s) é sim um vetor material que desestabiliza as formas de identificações pela cisgeneridade compulsória, ou seja, são múltiplas formas de resistências.

Referência

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. tradução: Eni Orlandi et al. - 4a edição - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.

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Guest Post sobre a Teoria do “Descompensamento para Iniciantes” e avançadxs também

Abrindo o mês de agosto, temos um guest post de Eduarda Alfena. Sempre debatemos como o sistema binário-cissexista nos exclui de uma vida legítima (e legitimada). Exclusão de todas as formas: as simbólicas, as reais… Exclusões sobre as nossas formas de existências. Para o cissexismo, nunca estaremos “prontxs”. Sempre haverá um empecilho para a transição, seja na infância, na adolescência, na vida adulta, na velhice… Afinal de contas, o cistema sempre irá buscar formas de silenciamento, de cooptação para a cisgeneridade obrigatória. Me lembro de uma metáfora (já não me lembro quem a fez) extremamente pertinente sobre como é abusivo os saberes-poderes médicos em torno da emissão do laudo: para estes médicos nos “laudarem” como transexuais “verdadeiros” é necessário que nós pessoas trans* desejemos cometer o suicídio com um belo sorriso no rosto. Ou também - propondo outra metáfora - os saberes-práticas médicas constroem uma “Donzela de Ferro”. A Donzela de Ferro, como aponta Naomi Wolf em “O Mito da Beleza”, era um instrumento de tortura medieval em uma espécie de caixão adornado com os membros e o rosto de uma jovem bela e sorridente, em que a vítima era aprisionada até uma morte angustiante, seja por inanição ou decorrência das lesões provocadas pelos espigões de ferro encravados na parte interna do caixão. Assim, o laudo médico-psicológico sem dúvidas tem um “que” de Donzela de Ferro: somos “recompensadas” pelo laudo na exata medida em que temos que nos adequar aos exatos centímetros do nosso próprio caixão - ou diagnóstico.

Ou seja: exigem-nos o impossível. O texto da Eduarda nos mostra muito bem como esse mecanismo operador de “impossibilidades” funciona. E isso fica ainda mais evidente quando observamos recortes de classe, raça, de natureza capacitista, etc. Eu mesma, Bia, no topo dos meus inúmeros privilégios fui gentilmente escorraçada destes (poucos) centros de atendimento para pessoas trans* através da cínica (não) comunicação cisgênera. Afinal de contas: “O que é tratamento? Isso não é tratamento!”, me interpelava uma médica. Vamos ficar aqui com as reflexões da Eduarda sobre suas vivências (e abusos!) em torno das inúmeras falhas dos serviços públicos. Falhas sim, porque sabemos como são as condições do serviço público de saúde neste país, mas também abusos de natureza transfóbica.

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Símbolo do autismo

Olá. Vejo muitas Teorias sendo discutidas por aqui, e gostaria de comentar sobre essa, que vivi na Pele. Sempre é bom observar que o Movimento Transfeminista é sempre um Local de inúmeras Discussões, o que enriquece qualquer Debate.

Certa vez, estava em Conflitos familiares e a Bia me passou um Texto falando sobre Desvirtuamento para iniciantes. Isso me fez perceber o quanto as Pessoas Cissexistas criam Argumentos muito interessantes, que (quase sempre) conseguem jogar outras Pessoas Cis cada vez mais contra Pessoas Trans*.

Eu sou Trans*, logo, acabei indo a um Centro de ‘’Atendimento’’ para Pessoas Trans*. No início, era extremamente submissa às Vontades do Médico Coordenador da Equipe e do Ambulatório. Um Dia, cansei, e comecei aos poucos a querer um pouco mais de Poder de Decisão. Isso foi mais ou menos na Época em que eu conheci o Movimento Transfeminista, principalmente através da Bia.

De certa forma, a Bia foi me dando Força para que fosse ouvida. O que mudou os Rumos das coisas lá no Ambulatório.

Para poder tentar resolver meu Processo, fiz inúmeros Pedidos para esse Médico (que chamarei agora de chefe) fizesse meu Laudo. Como sou Autista, mesmo num Grau leve, tenho grandes riscos de receber uma Curatela (Interdição Judicial, e consequente perda dos Direitos Civis). Foram Semanas de Brigas, até que minha Mãe ligou pra ele, e me disse ‘’ele PROMETEU fazer seu Laudo’’. Havia sido combinado que, mesmo antes deu operar, ele faria Laudo pedindo Processo de Ratificação do Prenome, e Alteração do Gênero nos Registros Civis.

Ele deu o Prazo (final de Maio). Como nossa Relação não anda bem, ele nomeou um Residente para me atender. Chegado o Prazo de entrega, o chefe não fez o meu Laudo, nem me deu retorno. Passadas 2 Semanas do Prazo, nada ainda. Dada 3 Semanas, nada. Me irritei com a tamanha falta de Respeito dele, e fiz uma Queixa na OUVIDORIA do Hospital. O engraçado é que dei de cara com ele depois disso. Disse-me apenas ‘’veja com o Residente. Ele quem te atende agora. Te Dará o Laudo do jeitinho que combinei com a sua Mãe’’.

Chego no Residente, isso já um Mês depois do Prazo inicial, o que eu escuto? ‘’Não fui informado de nada. O Laudo só pode ser feito, para Ratificação de Prenome. Gênero, só depois da Cirurgia. Te darei o Laudo no FINAL de JULHO’’ (2 Meses depois de eu ter pedido).

Eu saí do Serviço. Minha Paciência não resistiu. O que acontece sempre, é que eu ‘’melhoro’’, e na hora de pedir o Laudo o ‘’Chefe’’ me irrita profundamente, aí eu fico ‘’descompensada’’. Qual Médico pode dar um Laudo para Pessoas ‘’descompensadas’’? Nenhum.

Vejo que por muito Tempo fui Vítima dessa Arma. Sempre que estava mais animada, mais confiante, bum. Recebia o Tiro da Irritação que ele usa. Perdia muito a Paciência, e, estava descompensada. No caso, ele sabe fazer isso em nível ‘’Mestre Ninja’’. Vejo o quanto é fácil, irritar uma Pessoa Trans*, em situação vulnerável, e depois jogar isso contra nós mesmxs.

Mas não vejo que somente xs Médicxs desses Centros fazem isso. Por exemplo, uma Pessoa Trans* Disfórica tem Danos Emocionais por conta dessa Disforia, logo, ouvimos que estamos muito mal, e não podemos operar por conta disso. “É perigoso operar uma Pessoa deprimida”. Se ficamos ansiosxs esperando uma Resposta que nunca vem, estamos ansiosxs demais, logo, isso é perigoso. Uma Pessoa Trans* que critica uma Ordem Médica (algo como um Decreto Absolutista), estamos revoltadxs demais, logo, não estamos bem. E percebo o quanto outras Pessoas Cis dizem isso, o Tempo todo. ‘’Você só pensa nessa Cirurgia. E só fala nisso, vá viver sua vida e esqueça desse negócio de disforia’’. Nós jamais estaremos prontxs, pq sempre que estivermos, haverá alguém pra puxar o Tapete.

Há Pessoas que realmente querem me ajudar. Acho que esse ‘’Descompensamento’’ precisa ser urgentemente discutido. Não dá para outras Pessoas Trans* continuarem sendo atropeladas por ele. O que resolve Disforia é combate-la. Tenho Disforia com meu Corpo? Me Hormonize. Tenho Disforia Genital? Me opere. Não adianta ficar jogando pra dentro do Tapete.

Espero ter ajudo um pouco. Agradeço a Bia pelo Espaço que ela me deu.

Muito obrigada

Eduarda Johanna Alfena.

Acréscimo da autora:

Para vocês verem como esse Médico é Mestre Ninja na Arte de descompensar, durante as duas ou três Semanas que fiquei sem Resposta dele, tive Pesadelos quase todas as Noites, gripei, ainda perdi um Kilo.

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Nota de repúdio à entrevista de Rafael Kalaf Cossi e um convite a se pensar a psicanálise

Nota de repúdio: cansadxs de colonização

Não é novidade alguma a que vamos falar aqui. Cabe ressaltar também que não se trata de nenhum “ataque” ao indivíduo de Rafael Kalaf (mesmo que tenha sido o mote deste texto), mas sim a todo um discurso recorrente no campo dos saberes “psi” sobre transgeneridade que não julgamos apenas inadequado, mas também muito prejudicial. Na entrevista, disponível em http://lacaneando.com.br/rafael-kalaf-cossi/encontramos diversos estereótipos negativos e colonizatórios acerca da transgeneridade que tanto debatemos no transfeminismo. Na segunda parte do texto, logo abaixo, proponho um convite a se pensar deslocamentos na psicanálise, através da forclusão (ou foraclusão) da cisgeneridade. Vamos elencar primeiro aqui trechos da entrevista que considero bastante problemáticos, que serão comentados:

  • “autor do livro Corpo em Obra – Contribuições para a clínica psicanalítica do Transexualismo”.

Transexualismo. Já começa por aí. Não falamos “Transexualismo”, mas sim transgeneridade. A escolha por um termo é uma escolha que desvela uma posição política. Se fosse você, Rafael, mudaria o nome do seu livro. Muito provavelmente mudaria o conteúdo do livro também.

  • “Esse quadro clínico me despertou grande curiosidade e fiquei muito instigado a pesquisar esta questão. Fui amadurecendo a ideia, ao longo de dois anos, até definir o que eu iria estudar, e o tema acabou se tornando uma pesquisa de mestrado. Tema este, até então, bem pouco abordado pela psicanálise.”

Transgeneridade não é nenhum “quadro clínico” que pessoas cis possam sentir “curiosidade” e serem “instigados” a pesquisar. Nós somos pessoas, sujeitos. Não somos cobaias, não somos massas amorfas à espera de sermos “pesquisadxs” e “entendidxs”. Temos voz antes de tudo e repudiamos esta forma de se entender nossos corpos, anseios, identidades, etc. Não somos “tema” de sua pesquisa de mestrado, Rafael. Fique sabendo, no entanto, que o seu discurso cissexista é tema dos meus estudos. Pois é, cisgeneridade ainda é um campo também completamente inexplorado. Me “instiga” bastante.

  • “O que me surpreendeu ao visitar o local foi, justamente, a cautela no trato da questão. Eles não defendem a bandeira de que as pessoas podem fazer o que quiser com o seu corpo. Não há uma apologia às intervenções cirúrgicas, até mesmo porque, o fato de se submeter a uma cirurgia não é garantia para a solução do problema, pois permanecem outras questões e o sofrimento continua. Logicamente, em alguns casos, a intervenção cirúrgica melhorou muito a vida da pessoa. Não que ela tenha se transformado em uma mulher, no caso do Transexual masculino, mas porque tendo um corpo mais coerente com o gênero, ela fica mais apaziguada. Mas há de ser observado que, em alguns casos, a intervenção cirúrgica pode até piorar. É uma terapêutica não para todo mundo. É necessário também um trabalho de apoio psicológico. É curioso observar que já existe até um termo para Transexuais que se arrependem da cirurgia: ‘transregrett’. Existem dois livros publicados a respeito. São depoimentos de Transexuais que fizeram este procedimento e se arrependeram. Em um dos casos, a cirurgia só piorou o quadro clínico, deixando o sujeito ainda mais depressivo. Em outro depoimento, a pessoa viveu 17 anos como mulher, inclusive, com reconhecimento social, bem sucedida financeiramente e na carreira profissional, mas ao longo dos anos acabou ficando muito incomodada com a nova vida, inclusive, tendo problemas hormonais. E, após 17 anos, pediu para fazer a cirurgia de reversão para voltar a ser homem, voltar ao sexo de nascimento. O que comprova que a cirurgia não acarreta o fim dos males do sujeito.”

Te surpreendeu positivamente ou negativamente? Transexual masculino? Sério mesmo que você tá usando essa nomenclatura? Mulheres trans* não são “transexuais masculinos”, assim como homens trans* não são “transexuais femininos”. O que justificaria tal predicação? Certamente apenas uma visão cissexista acerca de nossos corpos e identidades. Não somos “quadro clínico” também.

“Solução do problema”. Que problema exatamente? Transgeneridade em si não é o problema. Pessoas trans* sofrem, sim. Mas focar no nosso sofrimento subjetivo é o mesmo que apagar questões políticas que subjazem este “problema”. É apagar a existência da transfobia, do cistema que engendra abjeções. Assim como focar no “arrependimento”. A “solução” pra isso não deve se restringir no âmbito privado, ou seja, não podemos conceber que o fim da transfobia se dará através de sessões de terapia, como foi postulado (indiretamente) acima. Não precisamos (mesmo!) de pessoas cis dando palpites em como nós entendemos nossos corpos e nossas necessidades. Afinal, não vejo nenhuma pessoa cis tendo que passar pelo crivo psicológico/psiquiátrico a fim de conseguir qualquer tipo de cirurgia ou acesso à saúde.

Agora, sobre o mito do arrependimento. “Transregret”? Essa é até nova pra mim. Não precisamos, novamente, destes entendimentos esdrúxulos sobre nossas vivências. É muito curioso como pessoas cis se focam no arrependimento das pessoas trans* com procedimentos cirúrgicos. Por que existe a necessidade quase doentia nesse aspecto? Por que não falar sobre qualquer outro tipo de arrependimento, incluindo o arrependimento de pessoas cis quando realizam cirurgias? Esta perspectiva, novamente, nos retira da posição de protagonistas, nos retira voz. Dizem por nós que “arrependemos” de algo. É sempre a voz cisgênera a mediadora de representação de certo real. E quando dizem, por nós, que “arrependemos”, é engatada toda uma argumentação sobre “cuidados”, “precauções” acerca desta população. Eu reitero: não precisamos destas formas de cuidado. Elas nem ao menos são o que se propõem. Não precisamos de pessoas cis cuidando paternalisticamente de nossas vidas: isso foi e é muito prejudicial. Não reconhecemos autonomia neste processo, apenas colonização.

  • “Outro fator preocupante em relação aos procedimentos hormonocirúrgicos é que eles se tornem tão corriqueiros como as cirurgias plásticas, as intervenções estéticas, as tatuagens, pois existe a ilusão de que precisamos sustentar a nossa identidade a partir da imagem. E o capitalismo contribui muito para isso. Além do mais, existe a ideia de que o sujeito tem que ter total direito pelo seu corpo.”

Bom… vamos lá. Olha, acho muito fácil botar uma pretensa problematização de sustentar a identidade a partir da “imagem”, falar em “capitalismo, e manter a cisgeneridade intocada né? Não são só pessoas trans* que são “normativas”. Não são só elas que querem ter uma “imagem normativa”, mas também pessoas cis. Aliás, acaba sendo uma análise feita aqui muito limitada (pra não dizer transfóbica) quando apontamos apenas um lado da moeda e esquecemos todas as relações de poder que separam pessoas trans* das cis. Quem, ali, “quer ter direito total pelo corpo”? Pessoas cis já não tem esse direito? Não vamos problematizar isso também? Então vamos tomar muito cuidado nesse sentido, ok amiguinhxs cisgêneros?

  • “É muito comum recebermos em consultório, meninos que só brincam com meninas, que tem preferência por brinquedos de meninas, se comportam como tal, tem trejeitos femininos. Mas esses fatores não são indicativos de que ali exista uma criança que possa vir a se tornar um Transexual. O que podemos perceber é que existe uma incoerência entre sexo e gênero, mas ainda é prematuro fazer qualquer tipo de afirmação, de aposta.”

Transexualidade, transgeneridade ou travestilidade não devem ser entendidas como descompassos entre “sexo e gênero”. Primeiro que a definição destes termos não é algo dado a priori. Butler (dentre outrxs autorxs), por exemplo, problematizou muito os sentidos dessa dicotomia, e não vai entender sexo distinto de gênero. É bastante problemática a divisão entre natural e social que esta dicotomia opera, e isso fica claro quando vemos que as pessoas trans* são sempre aquelas cujos corpos não “sustentam” seu gênero. A incoerência não se dá neste nível, mas sim no nível entre sexo/gênero designado e sexo/gênero identificado.

  • “No travestismo, o travesti fetichista usa o seu órgão sexual com fins de prazer, isso não é um problema para ele. O órgão sexual é libidinizado, é uma zona erógena. Muitos travestis fetichistas usam o órgão sexual em proveito próprio e com fins mercadológicos. Existe aí, também, um misto de masculinidade e feminilidade. Já na transexualidade não há um misto de masculinidade e feminilidade, o sujeito sempre se diz identificado com o gênero oposto ao seu corpo e há uma tendência de que o órgão sexual não seja libidinizado.”

Aqui os erros conceituais são gritantes. Primeiro, a noção de “travesti fetichista” é terrível, pois pouco se sustenta além de mero cissexismo. O “uso” de determinado órgão sexual não diz respeito a nenhuma forma, a priori, de identificação de gênero. Assim como a transexualidade não diz respeito à determinada forma de sentir disforia em relação a partes do corpo. Tanto travestis quanto transexuais podem se identificar com formas “mistas” (ou não tão mistas) de feminilidade e masculinidade. Não existe sentido a priori sobre travestis e transexuais, como já disse aqui no blog: as pessoas são livres enquanto formas de se auto identificarem. Tentar assumir um sentido abstrato e generalizante sobre esses termos é uma típica forma de transfobia.

O convite: a forclusão do nome cisgênero

Agora, me arrisco a entender, pela psicanálise, como a cisgeneridade é produtora de “psicoses”. Aqui proponho pensar a psicanálise através das contribuições transfeministas e passar a compreender como a cisgeneridade enquanto conceito analítico pode ser útil nesta e em futuras análises; um esboço de problematização da questão a fim de se pensar uma forma não normativa e empoderadora da psicanálise. Não se trata aqui de devolver a patologização para pessoas cis, mas deslocar o olhar sobre o problema. Pessoas trans* não são o problema, a transfobia sim.

Nesse sentido, a cisgeneridade compulsória é o bastião de todas as formas de cissexismo, e isso certamente reflete na subjetividade do sujeito (do inconsciente). A cisgeneridade é forcluída (rejeitada) em toda forma de manifestação de ódio transfóbico e toda vez que se articula um discurso cissexista/transfóbico pelo sujeito cisgênero. Isso fica bastante evidente toda vez que uma pessoa cis se incomoda com o termo cisgênero ou o acha pouco importante (ou até mesmo “perigoso”). Nesse processo se retifica a naturalidade da cisgeneridade através dos efeitos de sentidos de evidência sobre o “homem” e a “mulher”.

Quando vejo gente cis atacando a identidade de pessoas trans* ao apontarem comparações que se propõem esdrúxulas, como quando dizem que uma pessoa pode “achar” (ou identificar-se) que é homem ou mulher assim como podem “achar” serem qualquer coisa (como papei noel e o coelhinho cor de rosa, ou qualquer outra coisa que soe esdrúxula) é a própria cisgeneridade que se encontra ameaçada, e portanto, é “defendida” arduamente pelo sujeito cisgênero. É aí que vemos a manifestação de uma subjetividade patológica, o sintoma da cisgeneridade enquanto norma, a volta do recalcamento sobre a própria cisgeneridade (já que a própria nomeação da cisgeneridade é suficiente para contestar a forma de identificação do sujeito). Isso porque, devo dizer, estas comparações esdrúxulas se sustentam, só fazem sentido, por meio das evidências sobre os sentidos de “homem” e “mulher” que são orientadas pela norma cisgênera.

Quem acompanha as discussões transfeministas irá entender como a palavra “cisgênero” é especialmente dramática (posso até dizer traumática) para a forma como muitas pessoas cis se identificam enquanto sujeitos. Isso porque justamente o significante (cisgênero), ao esbarrar com os limites de certas formas de representação e tensionar certas relações de sentidos, põe em jogo a cisgeneridade enquanto opacidade. Nesse processo o sujeito aparece com um sintoma bastante característico, e uma das formas de retorno ao recalcamento é quando vemos as determinações “homem biológico”, “mulher biológica” (ou outras formas parecidas, como “homem/mulher de verdade”), formas estas de identificações que podemos entender como delirantes.

Aqui a cisgeneridade compulsória pode ser entendida como a causa destas formas de identificação e psicanaliticamente, como forclusão. Vemos também como ideologia e inconsciente estão materialmente ligados aqui, na medida em que estes sintomas “psicóticos” da cisgeridade estão ligados com as diversas formas de manifestação da transfobia. Aqui a identidade de gênero não é dada pelo “complexo de Édipo”, mas sim na forma como o sujeito lida com a forclusão cisgênera. Isso porque qualquer forma de se falar em “masculino”, “feminino” (e nas clássicas formas da “explicação” do complexo de Édipo em que se muito usa os termos “menino” e “menina” através dos sentidos se dando de forma apriorística) se pressupõe a cisgeneridade, ela está lá (mesmo que na ausência) produzindo estes sentidos como evidências.

Como já dissemos aqui, não há mais volta quanto ao uso do termo cisgênero. E fica bastante evidente como esse termo pode ser útil para não apenas entendermos a própria cisgeneridade, mas também como forma de resistência por nós, ao nomearmos o “normal”. Isso significa rejeitar qualquer forma cissexista de se entender a transgeneridade, incluindo algumas perspectivas da psicanálise (que infelizmente me parecem, até agora, as perspectivas hegemônicas neste campo).

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Sara, por Sara (e mais ninguém)

Hoje temos a participação de Sara Jhones, com seu relato. Devemos proporcionar um espaço para que nós, pessoas trans*, possamos ter nossas vozes ouvidas e publicizadas. Precisamos de mais relatos como esse aqui no transfeminismo. Precisamos também, sobretudo, garantir através dessas “novas” vozes, a construção contínua de diálogos entre nós mesmxs, tanto para discutirmos questões mais teóricas como para garantir nossa própria sobrevivência física e emocional. Porque nós sabemos que para nós, não existe o privilégio de pensarmos as teorias separadas das práticas (de resistência, já adianto).

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Meu nome é Sara e sou uma mulher trans*

Venho nesse momento expor alguns fatores que fazem parte da minha história/vivência enquanto pessoa trans*.

O “ser mulher” e “ser homem” sempre me foi ensinado tanto no núcleo familiar em que cresci (assim como na maioria dos lares brasileiros), quanto nas escolas que frequentei e a todo o tempo, pelas pessoas que conheci. Pessoas cisgêneras que faziam questão de separar muito bem o gênero, assim como as cores, brinquedos, brincadeiras, roupas, hábitos, comportamentos e costumes. Não questionava, pois pensava: “Acho que ninguém gosta de ser homem”. Impressionava-me constantemente com a forma de pensar dos meninos e tentava ao máximo compreender o que motivava os pensamentos parecidos, sendo que sentia só o meu ser completamente diferente. Procurava sempre fazer amizade com outras garotas, para ter com quem compartilhar ideias e pensamentos parecidos, mas na hora de formar a fila para cantar o hino nacional ou para passeios da escola, sempre me colocavam na fila errada. Cresci de certa forma “conformada” com a situação, pois não era apenas a minha família ou funcionários da escola que “supervisionavam” a minha adequação ao gênero designado, mas a sociedade como um todo. E isso é algo realmente infeliz de se perceber aos 7/8 anos de idade. Parecia a sociedade protegendo-me da própria sociedade, como se me dissessem aos sussurros: “Faça isso, para que nós não te punamos e consigas viver em paz”. Pensava que queriam o “meu bem”, mesmo que o “meu bem” não me fizesse bem.

Não estou replicando aquela história: “Quando eu era criança gostava de brincar de boneca e não de carrinho”, estou dizendo que a não similaridade com o gênero masculino sempre me foi bastante nítida. E se há algo que me lembra isso é o fato de que adorava subir no palco da escola todos os dias na hora do *recreio* para cantar as músicas de “Sandy&Junior” (obviamente só cantava as partes da Sandy rsrs).

Não tive uma infância sofrida nem com episódios de automutilação como muitos psicólogos e psiquiatras adorariam que fosse para inserir no meu prontuário médico e dessa forma compor um diagnóstico de “transsexualismo irrefutável”. Um caso fácil. CID 10 F 64.0 na ficha médica e pronto.

Por sorte, e MUITA sorte faço hoje acompanhamento com uma excelente ginecologista que acima de tudo leva em consideração minha intenção com tratamento hormonal e objetivos reais. Que não me tratou como um objeto a ser estudado ou me trouxe formulários pré-estabelecidos para hormonização pré-cirúrgica, afinal, muitos médicos nem nos questionam a intenção da hormonoterapia e pensam que todas as pessoas trans* obrigatoriamente fazem seu uso com fins de redesignação sexual,*mesmo que a hormonização seja totalmente desnecessária para a realização da mesma*, mas o protocolo adotado exige hormonoterapia, então uma trans (que não é o meu caso) que deseja realizá-la terá de seguir o protocolo querendo ou não.

Protocolos, normas, regras, exigências, paramentos, métricas, processos, tratamentos.

Chegamos a um ponto e na verdade nunca saímos dele, de que se pessoas cisgêneras nos dizem que devemos ser atestadas(os) como doentes para nos tratarem, tudo bem. Se precisamos de laudos, provas e tudo mais que nos identifiquem possuidoras(es) de transtorno mental/comportamental necessários à retificação dos documentos, faremos o quê? Colocaremos-nos mais uma vez nas mãos de um (cis)tema que nos obriga a pedir permissão de existir. Se um erro aconteceu no momento do nascimento por avaliação da morfologia genital, não nos dão o direito de corrigir esse erro. Não nos dão o direito de corrigir sem depender de uma pessoa cisgênera para dar ou não a permissão para que isso ocorra, para ter minha vida em meu poder. Não nos dão direitos simplesmente.

Não só param aí as decisões tomadas por nós, pois mesmo nas relações permeadas pelo “teórico” afeto, também se vê a sobreposição de poder, quando homens cis héteros dizem para mulheres trans*: “Gostei de você, quero você”. Como se a decisão fosse a deles, nunca a nossa, pois na nossa cultura não deveríamos “escolher” e já seria um verdadeiro “milagre” atrairmos uma pessoa sem ela estar bêbada ou sem a enganarmos escondendo nossa “verdadeira identidade” (identidade essa que não se verifica psiquicamente mas compulsoriamente). Não é inteligível nem aceitável nossa opção de revelar ou não nossa condição trans*, afinal, o mundo precisa saber e se defender de nós, que existimos para “enganar”, né? E precisamos ser resumidas(dos) a um genital, para tornar as coisas simples, muito simples, o mais simples possível até chegar no religioso e científico “macho” e “fêmea” que tantos discursos transfóbicos amam se sustentar.

Parem com isso. Devem-nos o direito de decidirmos por nós mesm@s, de corrigir erros que não fomos nós quem cometemos, de decidir o que fazer com nossos corpos, de decidir o que fazer com nossas vidas! Não vou pedir permissão para existir assim como não vou pedir permissão para me aceitar! Não irei faltar-lhes com respeito, porém não vou permitir que me subjuguem ou que me resumam, pois não posso ser resumida, principalmente não irei ser resumida a um órgão, a um gênero que não me define, nem a um monte de conceitos cisnormativos que me impuseram.

Se não tivesse meus cabelos longos “de mulher”, minhas saias “de mulher”, meus sapatos “de mulher”, meu rosto “de mulher”, seria “mulher” mesmo assim. Podem me tirar e negar o que não tenho. Mas não podem tirar minha essência, minha alma e minha vida, pois senhoras e senhores CIS, sinto informá-los, mas são puramente e naturalmente “de mulher”.

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