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Sara, por Sara (e mais ninguém)

Hoje temos a participação de Sara Jhones, com seu relato. Devemos proporcionar um espaço para que nós, pessoas trans*, possamos ter nossas vozes ouvidas e publicizadas. Precisamos de mais relatos como esse aqui no transfeminismo. Precisamos também, sobretudo, garantir através dessas “novas” vozes, a construção contínua de diálogos entre nós mesmxs, tanto para discutirmos questões mais teóricas como para garantir nossa própria sobrevivência física e emocional. Porque nós sabemos que para nós, não existe o privilégio de pensarmos as teorias separadas das práticas (de resistência, já adianto).

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Meu nome é Sara e sou uma mulher trans*

Venho nesse momento expor alguns fatores que fazem parte da minha história/vivência enquanto pessoa trans*.

O “ser mulher” e “ser homem” sempre me foi ensinado tanto no núcleo familiar em que cresci (assim como na maioria dos lares brasileiros), quanto nas escolas que frequentei e a todo o tempo, pelas pessoas que conheci. Pessoas cisgêneras que faziam questão de separar muito bem o gênero, assim como as cores, brinquedos, brincadeiras, roupas, hábitos, comportamentos e costumes. Não questionava, pois pensava: “Acho que ninguém gosta de ser homem”. Impressionava-me constantemente com a forma de pensar dos meninos e tentava ao máximo compreender o que motivava os pensamentos parecidos, sendo que sentia só o meu ser completamente diferente. Procurava sempre fazer amizade com outras garotas, para ter com quem compartilhar ideias e pensamentos parecidos, mas na hora de formar a fila para cantar o hino nacional ou para passeios da escola, sempre me colocavam na fila errada. Cresci de certa forma “conformada” com a situação, pois não era apenas a minha família ou funcionários da escola que “supervisionavam” a minha adequação ao gênero designado, mas a sociedade como um todo. E isso é algo realmente infeliz de se perceber aos 7/8 anos de idade. Parecia a sociedade protegendo-me da própria sociedade, como se me dissessem aos sussurros: “Faça isso, para que nós não te punamos e consigas viver em paz”. Pensava que queriam o “meu bem”, mesmo que o “meu bem” não me fizesse bem.

Não estou replicando aquela história: “Quando eu era criança gostava de brincar de boneca e não de carrinho”, estou dizendo que a não similaridade com o gênero masculino sempre me foi bastante nítida. E se há algo que me lembra isso é o fato de que adorava subir no palco da escola todos os dias na hora do *recreio* para cantar as músicas de “Sandy&Junior” (obviamente só cantava as partes da Sandy rsrs).

Não tive uma infância sofrida nem com episódios de automutilação como muitos psicólogos e psiquiatras adorariam que fosse para inserir no meu prontuário médico e dessa forma compor um diagnóstico de “transsexualismo irrefutável”. Um caso fácil. CID 10 F 64.0 na ficha médica e pronto.

Por sorte, e MUITA sorte faço hoje acompanhamento com uma excelente ginecologista que acima de tudo leva em consideração minha intenção com tratamento hormonal e objetivos reais. Que não me tratou como um objeto a ser estudado ou me trouxe formulários pré-estabelecidos para hormonização pré-cirúrgica, afinal, muitos médicos nem nos questionam a intenção da hormonoterapia e pensam que todas as pessoas trans* obrigatoriamente fazem seu uso com fins de redesignação sexual,*mesmo que a hormonização seja totalmente desnecessária para a realização da mesma*, mas o protocolo adotado exige hormonoterapia, então uma trans (que não é o meu caso) que deseja realizá-la terá de seguir o protocolo querendo ou não.

Protocolos, normas, regras, exigências, paramentos, métricas, processos, tratamentos.

Chegamos a um ponto e na verdade nunca saímos dele, de que se pessoas cisgêneras nos dizem que devemos ser atestadas(os) como doentes para nos tratarem, tudo bem. Se precisamos de laudos, provas e tudo mais que nos identifiquem possuidoras(es) de transtorno mental/comportamental necessários à retificação dos documentos, faremos o quê? Colocaremos-nos mais uma vez nas mãos de um (cis)tema que nos obriga a pedir permissão de existir. Se um erro aconteceu no momento do nascimento por avaliação da morfologia genital, não nos dão o direito de corrigir esse erro. Não nos dão o direito de corrigir sem depender de uma pessoa cisgênera para dar ou não a permissão para que isso ocorra, para ter minha vida em meu poder. Não nos dão direitos simplesmente.

Não só param aí as decisões tomadas por nós, pois mesmo nas relações permeadas pelo “teórico” afeto, também se vê a sobreposição de poder, quando homens cis héteros dizem para mulheres trans*: “Gostei de você, quero você”. Como se a decisão fosse a deles, nunca a nossa, pois na nossa cultura não deveríamos “escolher” e já seria um verdadeiro “milagre” atrairmos uma pessoa sem ela estar bêbada ou sem a enganarmos escondendo nossa “verdadeira identidade” (identidade essa que não se verifica psiquicamente mas compulsoriamente). Não é inteligível nem aceitável nossa opção de revelar ou não nossa condição trans*, afinal, o mundo precisa saber e se defender de nós, que existimos para “enganar”, né? E precisamos ser resumidas(dos) a um genital, para tornar as coisas simples, muito simples, o mais simples possível até chegar no religioso e científico “macho” e “fêmea” que tantos discursos transfóbicos amam se sustentar.

Parem com isso. Devem-nos o direito de decidirmos por nós mesm@s, de corrigir erros que não fomos nós quem cometemos, de decidir o que fazer com nossos corpos, de decidir o que fazer com nossas vidas! Não vou pedir permissão para existir assim como não vou pedir permissão para me aceitar! Não irei faltar-lhes com respeito, porém não vou permitir que me subjuguem ou que me resumam, pois não posso ser resumida, principalmente não irei ser resumida a um órgão, a um gênero que não me define, nem a um monte de conceitos cisnormativos que me impuseram.

Se não tivesse meus cabelos longos “de mulher”, minhas saias “de mulher”, meus sapatos “de mulher”, meu rosto “de mulher”, seria “mulher” mesmo assim. Podem me tirar e negar o que não tenho. Mas não podem tirar minha essência, minha alma e minha vida, pois senhoras e senhores CIS, sinto informá-los, mas são puramente e naturalmente “de mulher”.

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justo

Esta é uma tradução do texto “fair”, publicado originalmente no site Taking Steps, que pode ser lido neste link.

Então eu gostaria que você imaginasse algo. Vai ser bastante ruim, e provavelmente trará recordações ruins para algumas pessoas. Se você não deseja correr este risco, tome cuidado e pare de ler neste momento.

A primeira coisa que você precisa entender é que masculinidade, virilidade, são inculcadas e reforçadas através de violência. Tanto através de violência real, quanto pela ameaça de violência, ou pela ameaça implícita de violência. De forma constante. É assim que homens e meninos são ensinados a treinar a masculinidade uns dos outros. Isso é verdade mesmo na tenra idade; apenas vá a um parquinho de qualquer creche, e você verá meninos moldando a masculinidade uns dos outros, de acordo com as regras que lhes foram ensinadas por garotos mais velhos e por homens adultos, através de violência. Esse processo começa bem cedo.

Agora pegue uma garotinha e jogue-a nesse grupo de meninos. Deixe-a à mercê deles com uma única instrução: “Façam com ela o que acharem melhor. Moldem ela da forma que vocês desejarem. O seu bisturi é a violência.”. Imagine isso por um minuto: a imagem de uma menininha que ainda não entende o mundo sendo entregue para um grupo de garotos que recebem carta branca para usar violência para moldá-la no que quer que eles achem apropriado.

É uma imagem apavorante. É hedionda, perturbadora e errada e só de pensar nisso eu tenho calafrios. E é assim que nós, enquanto sociedade, devemos reagir; se algo semelhante a isso acontecer e vier a público, deve haver manchetes nos jornais.

Isso acontece todo dia. Toda hora. Mas enquanto qualquer pessoa decente automaticamente acharia este cenário maligno e chocante quando a garotinha que nós imaginamos é cisgênera, isso é considerado normal e a forma correta de tratar uma garotinha que é transgênera. Eu sabia que eu era uma menina já cedo; eu fui expulsa da pré-escola por me recusar a aceitar que fosse um garoto. E então eles entregaram aquela garotinha para os meninos pelos próximos quinze anos e disseram: “Façam com ela o que acharem melhor. Nós faremos vista grossa e incentivaremos à medida que vocês transformarem ela no que vocês desejarem. Seu bisturi é a violência. Só é apropriado se ela gritar”.

Essa é uma história aterrorizante. Este é o tipo de história que, se você pensar bem, representa o tipo de abuso que a pessoa comum responderia com: “Prendam esse criminoso doentio e joguem a chave fora”. Se fosse uma garota cis. Se ela for trans, as coisas apenas estão acontecendo como deveriam. Não há censura. Há aplausos.

Essa é uma das faces nuas e descobertas da opressão: se fosse feito com uma pessoa privilegiada, seria considerado abuso. Se é feito com uma pessoa marginalizada, é status quo. Mas não é só isso. Não se trata apenas da opressão; é sobre a como e por que nós internalizamos a opressão.

É uma história horrível. É o tipo de história que ameaçaria destruir a sua mente se fosse a sua história. E você tem que se proteger de alguma forma. Você precisa se manter de pé. Você tem que dar sentido à tudo isso. Porque um mundo em que algo assim pode ser feito com uma criancinha que nunca fez nada de mal à ninguém, que sequer é madura o bastante para entender porque ela está sendo ferida deste jeito até mesmo pelos pais até chegar no ponto em que nenhum local é seguro, não é um mundo legal. Não é um mundo que, penso eu, a maioria de nós, incluindo eu, seria forte o bastante para encarar como real. Então nós nos defendemos por acreditar no que nos falam.

Eu deixei o mundo mentir para mim. Eu me deixei acreditar que eu era tão ruim, errada e monstruosa e que eu merecia o que acontecia comigo, que até mesmo deixei que alguém me estuprasse [em inglês] apenas porque eu desejava desesperadamente que ser tocada, porque até mesmo abuso era mais proximidade do que eu acreditava merecer. Eu me deixei absorver a idéia de que eu estava completamente iludida, e que todo meu conhecimento sobre mim era um contorcionismo falacioso de uma mente doentia, porque a alternativa àquela mentira dolorosa, a mentira de que eu era um monstro vivendo em um mundo de fantasia, uma aberração indigna de receber amor? A alternativa era pior. A alternativa era que eu não merecia passar por aquilo, que eu não era repugnante nem indigna de receber amor, que eu era uma criança colocada em uma situação abusiva e forçada a permanecer dela sem qualquer justificativa. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade, quando era criança. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade quando era uma adolescente que não conseguia dormir, que treinava em um saco de pancadas todos os dias após a escola até que as mãos sangrassem, que passou cada dia pensando em formas novas e limpas de abandonar a vida. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade quando era uma colegial que foi exotificada, ridicularizada e tratada como um brinquedo sexual pornográfico e contaminado indigna de qualquer tipo de proximidade que não tivesse tons de “suja” ou “pervertida”, e que não podia abraçar pessoas ou dizer “eu te amo” sem temer que me achassem assustadora.

Eu não era forte o bastante para aceitar a verdade de o quanto eu era forte. Reconhecer e me apoderar da minha imensa força significava reconhecer que eu estava carregando um fardo imenso todo o tempo, que eu estava passando por sofrimento e não por uma vida normal, a ordem natural das coisas. O que eu não era forte o bastante para aceitar era que eu era uma criança boa, uma criança forte, uma criança corajosa, porque isso exigiria admitir que eu estava passando por algo que exigia virtude, força, e coragem, algo que poderia inspirar um documentário televisivo sobre resiliência humana se acontecesse a uma pessoa considerada real pela sociedade. Aceitar que não havia nada errado comigo, e até mesmo que eu era bela, significava aceitar que tudo aquilo que eu passava na escola e em casa, ao invés de normal e bom, era um show de horrores.

Então eu acreditei nas mentiras. Eu deixei que me convencessem durante boa parte da minha adolescência que eu era, realmente, um menino. A idéia me enojava e me aterrorizava, mas não tanto quanto a verdade, de que eu estava certa, de que eu era digna da minha própria confiança, de que não era minha culpa. Era melhor viver em um mundo em que eu era um menino — ou até mesmo um menino que desejava se tornar uma mulher algum dia — e que vivia uma vida normal, do que um mundo em que eu era uma garota que foi sistematicamente privada de se seu senso de si mesma, de sua realidade subjetiva, e de sua personalidade, sujeitada à constante violência ou ameaça de violência, e tratada como uma coisa contaminada e suja. A mentira — até mesmo a mentira de “menino que quer ser menina” ou “mulher em corpo de homem”, como se meu corpo pertencesse a alguma outra pessoa — por mais dolorosa que fosse, não era tão dolorosa quanto a verdade de ser uma garota tentando encontrar seu caminho para se tornar uma mulher e tendo que passar por isso no meio do caminho.

É assim nós internalizamos as mentiras. É dessa forma que nós aceitamos o jugo da opressão. Por viver em um mundo em que a verdade de que nós somos belas, que temos valor e que merecemos receber amor é mais dolorosa do que aceitar a mentira de que não somos nada disso, porque todo o senso de justiça ou ordem desaparece quando você olha para a verdade. Se nós somos belas, então nós estamos em um mundo que não se importa com a bossa beleza, e que até mesmo a joga na lama. Se nós somos fortes, então nós estamos vivendo em um mundo tão pesado que suga nossa força até estarmos cansadas todo o tempo. Se nós somos nós mesmas, então nós estamos vivendo em um mundo que sistematicamente nos arranca a nossa individualidade como uma carne assada arrancada de seus ossos queimados.

Até que nós sejamos fortes o suficiente para encarar isso de frente e reagir, para ficar de pé e lutarmos e nos tornamos parte do mundo em que vivemos de forma melhor, não importa o quão difícil isso seja ou o que isso exija — até que nós sejamos bastante fortes para nos lembrarmos de que somos fortes, e belas, e verdadeiras, e que somos dignas de receber amor — a verdade é pesada demais para suportar. Então, ao invés disso nós aceitamos as histórias falsas, de que nós somos sujas, feias, fracas e indignas de amor. Nós precisamos acreditar nisso. Eu precisei acreditar nisso.

Eu estou escrevendo isso porque eu sei que daqui a uma hora, ou amanhã, ou semana que vem, eu vou dar ouvidos à essas mentiras novamente, durante um tempo. De que outra forma seria possível viver? Como você poderia viver no mundo sem aceitar que a injustiça é justa, ou que não é problema seu, só por um momento, só por um instante? Como você pode caminhar no mundo em que a verdade é verdadeira ao invés de cair em pedaços e chorar? Então nós internalizamos as mentiras por um momento para que as coisas possam fazer sentido o suficiente para que seja possível viver este dia até o fim. A gravidade te puxa confortavelmente para baixo. A alternativa, a verdade pura, vulnerável e pulsante só pode ser aceita em doses pequenas, ainda que maiores a cada dia. É difícil demais simplesmente deixar que tudo seja real. Como você poderia deixar tudo isso ser real? Como você pode realmente remover a cobertura, olhar para as trevas abaixo e deixar escapar a verdade — de que você vive em um mundo em que você não é considerada inteiramente verdadeira, inteiramente humana, e que se você fosse considerada verdadeira, o que fizeram com você seria considerado inaceitável e nauseantes, mas você não é considerada verdadeira e o que fizeram com você é considerado aceitável?

Você precisa contar para si mesma aquelas histórias. Apenas por um momento. Apenas até que você esteja forte o bastante para suportar o peso da verdade e ver com clareza, se você conseguir alcançar essa força. Apenas até que você esteja repleta de coragem e força esmagadoras e que você possa finalmente insistir que é digna de amor e de ser amada, de que cada célula de seu corpo merece isso, de que beleza brilha através de você como uma gloriosa chama ardente. Quando você está de pé, resplandecendo maravilhosa e intimidadora, você pode mover o mundo. Você só precisa atravessar a dor de você é verdadeira, de que você sabe, de que você é tudo que precisa ser.

Dói dizer isso, e dói ouvir: você é digna de receber amor. Eu também. O abismo entre a verdade e o mundo em que nós nos permitimos viver a cada dia é escuro e profundo, mas ainda assim é a verdade e sempre será.

Você é tudo que você sempre esperou se tornar um dia, e eu amo você. Quando você for forte o bastante, por favor, brilhe.

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Que homem eu era?

NOTA: Esse texto é uma continuação de “Sou Mulher?“, publicado em 8 de abril de 2013.

Certa vez eu conversava com uma amiga, que assim como eu é mulher trans*, sobre objetivos futuros. Contei que pretendia iniciar curso de maquiagem e manicure, para saber como me maquiar corretamente, e como pintar minhas unhas – e talvez trabalhar com isso. Segui contando sobre como desde a adolescência tenho interesse por coisas do tipo: “É algo que tenho vontade desde a infância, sabe? Quando adolescente, gostava dessas coisinhas… No fundo sempre me identifiquei com essas coisas… mas como isso ‘não é coisa de mulher’, apaguei da minha mente”.

Minha amiga respondeu, sem entender: “Como assim não é coisa de mulher?”. Depois de alguns segundos, percebi ao que ela estava se referindo: “Ah, desculpe! ‘Coisa de homem, eu quis dizer’: como manicure e maquiagem não são ‘coisas de homem’, eu não fui atrás isso durante minha adolescência.”. Eu cometo esse tipo de engano com frequência.

Até um determinado ponto da minha transição, eu conseguia ver claramente na minha mente uma fronteira, separando o período em que era homem, do momento em que me descobri mulher e me aceitei dessa forma. Essa fronteira ocupava um espaço curto e bem delimitado no tempo. Eu podia usar os pronomes masculinos para me referir a mim mesma, quando falava de algo no passado, antes de me identificar como mulher. Isso não acontece mais, hoje em dia.

É paradoxal. Antes de me aceitar como mulher, eu rejeitava em mim mesma tudo aquilo que significasse ser homem. Ser homem era uma condição com a qual eu tinha que conviver. Eu abominava o rótulo e os papéis de gênero que me foram designados, e os evitava o quanto pudesse. Depois que me aceitei como mulher, essa rejeição desapareceu (tenha em mente que não estou falando do meu corpo). Ao contrário, ao mesmo tempo em que estava ansiosa para descobrir e explorar cada vez mais minha identidade feminina, eu também fiquei curiosa para entender o que era antes disso – entender o homem que era. “Que homem eu era?”, “Que tipo de homem eu era?” são perguntas que ocuparam minha mente por um bom tempo. Eu acreditava que encontraria naturalmente a resposta para essas perguntas: à medida que minha transição prosseguisse e eu me descobrisse cada vez mais, a mulher que sou se tornaria cada vez mais visível e evidente, e as diferenças dessa mulher em relação ao que eu era antes tornariam mais visível e identificável o homem que fui um dia.

Essa era a teoria. Na prática, não foi isso que aconteceu. O tempo não tornou mais fácil entender que homem eu era; ao contrário, tornou mais difícil. À medida que a mulher se tornou evidente, o homem começou a desaparecer. Claro, o objetivo da minha transição era exatamente esse, que o homem que fui um dia desaparecesse para dar lugar à mulher que sou. Porém, eu esperava de esse desaparecimento se desse a partir do momento que me identifiquei e me aceitei como mulher. Eu não esperava que o homem também fosse desaparecer antes, no passado.

Eu nunca me importei que questionassem minha “masculinidade” nem que colocassem em dúvida que eu era homem. Tampouco me importava que me comparassem às garotas. O problema, para mim, não era que me questionassem – eu os ignorava, apenas – mas sim que me cobrassem que fosse um homem. Odeio cobranças, mas não podia ignorá-las porque as pessoas que as faziam tinham poder sobre minha vida. Eu tinha que ser um homem, por necessidade. Mas não tinha a menor afinidade ou identificação com os referenciais masculinos ao meu redor, somente com os femininos. Eu tive que buscar referenciais em outro lugar: na televisão. Nos heróis.

Dentre os vários heróis, existe um tipo de herói não apenas resiste à dor e ao medo, ele simplesmente não sente dor e medo de qualquer forma. Ele não tem sentimentos, emoções, nem qualquer tipo de ambição ou objetivo. Por isso, tende a cumprir ordens cegamente, sem questionar. A negação dos sentimentos, fraquezas e vulnerabilidades é algo exigido de qualquer homem na sociedade em que vivemos, mas esse herói tem uma característica bem particular: ele não é sociável de forma alguma. Ele não tem amigos, nem os deseja. Ele não vive entre homens. Você jamais o verá sentar-se com outros homens numa mesa de bar para beber e falar sobre futebol ou mulheres. Ele vive sozinho, e não se sente mal por isso. No final do filme, ele não fica com a mocinha (se é que existiu alguma): ele termina sozinho, e está bem dessa forma. Na minha mente infantil, isso significou que, de tudo o que alguém pode fazer para “ser” um homem, viver em isolamento também é uma forma de ser homem. Entre todas as alternativas que eu poderia ter escolhido, esta – isolamento – parecia a menos dolorosa. Eu segui por esse caminho.

Eu não fui influenciada por esse modelo. Eu voluntariamente e premeditadamente escolhi esse modelo. Me lembro de conscientemente ter decidido por seguir esse modelo. Isso acabou com as cobranças para que eu tivesse “atitudes de homem”. A frieza e distância emocional características desse modelo supriam a demanda social de “ser homem”. As cobranças que tive o resto da vida passaram a ser que eu me tornasse mais amigável, mais sociável. Que buscasse amizades. Que não me isolasse tanto. Mas, ao contrário das cobranças por atitudes masculinas, essas cobranças não me causavam dor nem sofrimento, então eu pude ignorá-las. Ser homem, para mim, consistiu simplesmente em fazer-me antissocial e manter distância das pessoas, impedindo-as de enxergar em mim qualquer coisa que motivasse novas cobranças e questionamentos. Basicamente, fazer-me desconhecida e deixar que as pessoas vissem em meu isolamento a masculinidade que esperavam. Essa foi a minha “socialização como homem”: encenar um papel que me permitisse não adotar papéis de gênero masculinos e não ser cobrada por isso. Fingir ser um homem, para não ser um homem.

É impossível olhar para o passado e enxergar um homem, em qualquer momento da minha vida. Eu enxergo um personagem, nada mais. Um personagem que vivi o máximo que pude, mas que no final das contas nunca deixou de ser uma mentira. Por isso, a única conclusão que posso tirar é que nunca fui, realmente, um homem. Eu somente fingia ser um, de forma metódica e calculada. Presumivelmente, quem é algo não precisa fingir ser esse algo; portanto, quem é um homem não precisa fingir ser um. Ademais, eu suponho que qualquer homem se desenvolva como tal de forma natural, tendo sua personalidade e gênero moldados tanto pela sociedade quando pela sua individualidade e suas experiências pessoais; e não escolhendo de maneira premeditada sua personalidade e papéis de gênero com base em uma lista de critérios lógicos, como eu fiz. Por outro lado, nunca me senti fingindo ser uma mulher. Ser mulher, para mim, consistiu em deixar de encenar papéis, em primeiro lugar, para depois ser eu mesma à medida que me descobrisse. Chega a ser engraçado ouvir que pessoas transgêneras reforçam os estereótipos de gênero: eu reforçava estereótipos de gênero muito mais antes de iniciar a minha transição, ao passo que, desde que ela começou, tenho quebrado tais estereótipos cada vez mais, e deixando isso bem claro e visível para o mundo.

Essa foi a razão daquela “escorregada” que cometi na conversa que citei no início desse texto. Está bem gravado na minha memória que boa parte da minha vida eu deixei meu gênero limitar o que posso ou não fazer. Por isso, meu subconsciente deve ter calculado (errado) que se na adolescência eu não me permitia me interessar por coisas como maquiagem, deve ter sido porque a sociedade aceitava que somente homens fizessem isso. Esse engano ocorreu porque minha percepção de mim mesma no passado se alterou, e passei a enxergar uma mulher também na infância e na adolescência. A mente humana é complexa e misteriosa.

Ser uma mulher transgênera, no meu caso, há muito tempo deixou de ter a ver “mudança de sexo e/ou gênero”, e passou a ter a ver, cada vez mais, com ser uma mulher, simplesmente. Uma mulher que não tem seus direitos reconhecidos, que enfrenta alguns dos apagamentos e exclusões mais brutais e cruéis que a sociedade pode produzir, e que é tratada como cidadã de segunda classe. Infelizmente. Mas, ainda assim, uma mulher.

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Sou mulher?

Estava olhando para minha minibiografia na página “Quem Faz”, deste site: “Mulher trans* e transfeminista em constante processo de transição e autodescoberta”. Leio novamente, e meus olhos se detêm na minha autodescrição: “Mulher trans*”. Releio novamente: “Mulher”. Sou mulher?

Há tempos tenho me questionado sobre minha identidade de gênero. Eu sou realmente uma mulher? Olho para minha foto, ao lado da minibiografia. Ela já é antiga. Na ocasião que a tirei eu estava muito feliz: eu me sentia uma mulher. Hoje, me sinto lutando diariamente para me sentir uma mulher.

Já antes da minha transição, me livrei das ilusões e fantasias sobre me tornar uma mulher linda e maravilhosa tal qual uma larva que ao sair de seu casulo se transformou numa borboleta, e entendi que, por mais que fizesse terapia hormonal e passasse pela CRS minha condição transgênera seria sempre óbvia e exposta, e eu talvez nunca fosse vista pelas pessoas como mulher, por toda a minha vida. As mudanças que buscaria seriam apenas para meu próprio bem-estar pessoal. Apenas eu mudaria, e não o mundo ao meu redor.

Fiz as contas e concluí que, tendo minha condição transgênera eternamente exposta, seria alvo de preconceito e ofensas, e precisava encontrar uma forma de lidar com isso. Tentei “aprender” a lidar com reações negativas por, no início da minha transição, enquanto ainda me apresentava como homem perante a sociedade, transgredir aquela imagem masculina que eu deveria seguir. Passei a usar batom, sapatilhas, lenços e outros acessórios “femininos”. Nessa época criei meus mecanismos para lidar com os olhares reprovadores e condenadores, as piadinhas, e os cochichos.

Esporadicamente me vesti e me apresentei como mulher, em público e em plena luz do dia. Eu não buscava ser lida como mulher pela sociedade porque, na minha cabeça, não tinha a menor chance de conseguir isso. Ao invés disso, me acostumei a fazer disso mais uma transgressão da imagem masculina que eu mesma via no meu corpo, e a fazer dessa transgressão minha forma de autoafirmação da minha identidade de gênero feminina. Usei o que tinha aprendido de minhas experiências anteriores para lidar com o preconceito.

Enfim, tive que fazer várias viagens de avião num intervalo curto de tempo, e coloquei um maior “empenho” em me apresentar como mulher. Aparentemente esse empenho foi “recompensado”: as pessoas me viam como mulher, ao menos até o momento que ouvissem a minha voz, e arregalassem os olhos de susto. Me chamavam de “moça” ou “senhora”, mesmo olhando diretamente na minha cara! Eu fiquei muito, muito feliz na ocasião.

Foi pouco depois disso que tirei a foto citada acima. Por isso estava tão feliz: tinha conseguido fazer minha imagem corresponder à minha identidade de gênero. Estava tão confiante na época, que passei a expressar publicamente minha identidade de gênero feminina em espaços desconhecidos. Até mesmo tive coragem para usar o banheiro feminino em locais públicos. Foi nessa ocasião que passei a viver como mulher em full time, isto é, não mais me apresentava esporadicamente como mulher ao sair na rua. Agora, eu realmente vivia como mulher, para mim mesma e para a sociedade, em casa, na rua, no trabalho… 24 horas por dia. E tenho vivido assim, há alguns meses.

Eu cheguei a pensar que minha passabilidade como mulher cis aumentaria com o tempo. Hoje, meses depois, percebi que não. Ao contrário, tem sido mais difícil hoje, do que naquela época, em que tinha muito menos chances de conseguir isso. Por algum tempo fiquei me perguntando o que eu estava fazendo errado. Por fim, me dei conta de um problema sério que deixei surgir durante a autodescoberta e construção da minha identidade feminina: ao contrário da época que era “transgressora”, em que me apegava à crença de que era uma mulher, independente da minha aparência e das opiniões alheias, eu passei a medir o quanto sou mulher em função do reconhecimento da sociedade. No passado, eu não esperava por esse reconhecimento. Lidava diariamente com a desvalidação da minha identidade feminina, e nas ocasiões que fui passável, como eu realmente não estava esperando por isso, essa “validação” veio como uma agradável surpresa. Porém, quando passei a viver como mulher em tempo integral, passei a procurar ativamente por essa passabilidade, por essa validação. Meu sensor interno, que identifica quando não estou conseguindo ser passável como mulher cis, antes permanecia desligado, mas agora está ativado e no máximo. Simplesmente estou mais atenta às situações cotidianas em que minha identidade de gênero feminina é invalidada. É como sempre foi – só fiquei mais sensível e perceptiva.

Me sinto mulher, mas parece que minha “feminilidade”, seja lá o que isso for, é como uma fantasia que tiro, todos os dias, ao voltar do trabalho: ao remover os sapatos, o vestido, o modelador, a peruca, a maquiagem e os acessórios, o que sobra? A resposta incômoda, que tem me atormentado há tempos, é: um corpo masculino. Nada mais. Sim, desde meu contato com o Transfeminismo, sei que não é um corpo que faz de alguém uma mulher, mas o que há de intangível por dentro: a personalidade, a identidade. Apesar de ter abraçado essa verdade como boia de salvação, ainda tenho que lidar com esses sentimentos todos os dias.

Quando venço essa luta diária para ser vista como mulher, a recompensa é deixar de ter homens rindo de mim por ser um “homem travestido”, para ter mulheres rindo de mim porque me acham gorda, feia, com cabelo ruim, mal vestida – enfim, por ser uma mulher feia. É nessa hora que sinto falta dos privilégios masculinos que já tive, principalmente do privilégio de não ser medida pela minha aparência. No fim, a pressão conjunta de ser passável como mulher cis, e daí sofrer opressão machista para me encaixar num determinado padrão de beleza e ser medida por isso, me sobrecarregou, e me derrubou, por mais que eu tenha tentando estar pronta, emocionalmente e psicologicamente, para quando isso acontecesse.

No inicio da minha transição, estava convicta que preferia mil vezes ser uma mulher feia, do que passar o resto da vida como homem. Hoje? Bom… eu fui levada a experimentar as consequências de me apresentar e ser lida como mulher, e acabei revendo esse conceito. Mas, no final das contas, concluí que sim, eu não poderia estar vivendo de outra forma, e não deixarei de expressar e defender minha identidade de gênero feminina, de forma alguma. Deixar de fazer isso seria a morte. Sou mulher? Sim, sou mulher. E, em adição à opressão que já sofro por ser uma pessoa transgênera, também sou oprimida por ser mulher. Vou me lembrar disso da próxima vez que eu me questionar se sou mulher.

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Ambiguidades desejáveis e o estar prontx

Por Juno

Quando aquilo que nós desejamos, como parte integral da nossa identidade, é sermos lidxs de uma determinada forma, então imediatamente podemos começar a desenvolver expectativas sobre um ponto exato a partir do qual estamos confortáveis em apresentar esta expressão para que alguém a contemple. Queiramos ou não, nossa expressão de gênero será analisada e desígnios (determinações sobre pertencermos a um determinado gênero, sem consulta alguma) serão feitos. Nossos olhos são treinados pelos estereótipos de gênero a identificar quem pertence a um lado e quem pertence a outro. Aprendemos quais signos são masculinos, quais são femininos e não só começamos a ser capazes de identificar imediatamente, com grande facilidade, qual o gênero da pessoa para a qual olhamos, como também utilizamos esse conhecimento para executar e vestir os signos do gênero que nos foi designado. Assim construímos e reproduzimos o gênero, socialmente, conjuntamente. Tão bons ficamos em encaixar pessoas nos moldes binários que qualquer pessoa que está exposta a estes olhos socialmente treinados é uma pessoa sujeita à inspeção e à designação (tardia e constante) de seu gênero.

Enquanto trabalhamos dentro de uma visão cisgênera e com sujeitxs cis, estamos trabalhando com uma expressão esperada pela cisnorma: elas são fluidas, corriqueiras e irrelevantes. Tudo corre bem. Porque a cisnorma é homogênea e dominante, mas também coercitiva, seu treinamento é rigoroso: aquelxs que apresentam ambiguidade são condenadxs à condição de problemáticas essenciais. Para esta norma, isto é, para a forma como a sociedade ciscêntrica percebe os corpos e seus signos (como roupas, cortes de cabelo, pelos, vozes, andares, trejeitos, acessórios, anatomias), a ambiguidade é um problema daquele corpo que veste e executa signos ambíguos ou mistos. Ela não é uma evidência do problema que ela própria cria, como deveria, pois a mera existência de um campo de ambiguidades (ou androginia) significa que algo a mais pode ser expresso pelxs sujeitxs que estão fabricando e reproduzindo gêneros. O problema está, ao invés, nx corpo ambíguo. Isso faz parte de manter as coisas correndo de acordo com a cisnormatividade, porque empurra as expressões de gênero das pessoas que desviam da binária de volta para os moldes.

Quando lidamos conosco, isto é, com sujeitxs trans*, trabalhamos com diferentes expectativas da nossa parte e também com diferentes expectativas da parte daquelxs que fazem julgamentos sobre estas identidades. Porque nós estamos expressando um gênero, estamos criando algo que queremos expressar e, coletivamente, a sociedade está lendo essa expressão com a sua visão. Infelizmente, essa visão é cissexista. Falo de expectativas porque não somente estamos produzindo e exibindo um gênero, mas antes mesmo de fazê-lo nós temos algo que queremos expressar, e antes mesmo de sermos vistos nós temos algo que a sociedade deseja ver¹. Trabalhamos com estereótipos cissexistas de uma mulher e de um homem autênticxs, com desígnios compulsórios e morfologizantes, com estereótipos machistas e heteronormativos de uma mulher “apresentável” e de um homem “másculo”. Lidamos com problemáticas que não são apresentadas às pessoas cisgêneras; com critérios com as quais estas pessoas não são confrontadas. Lidamos, ademais, com uma binária opressiva que deixa à margem desta ótica qualquer identidade que não se encaixa ou se aproxima dos seus moldes.

Estas dinâmicas sistemáticas são o que irá condicionar as ansiedades e receios que algumas de nós, pessoas trans* com identidades não-binárias, sentimos de expor nossa expressão de gênero publicamente, e de colocar a nossa identidade de gênero como pública. Isto se dará independentemente do quanto já assimilamos, nós mesmxs, o que estamos expressando e o que desejamos expressar. Mais do que a leitura feita pela sociedade, nós temos a leitura que nós mesmxs fazemos do que é ideal para nós de acordo com o que queremos expressar e expressamos. E estes conceitos se dinamizam exatamente porque existe então um segundo conflito entre aquilo que é aceito ou negado pela sociedade, independentemente de nossos entendimentos pessoais sobre nossa identidade de gênero e nossa expressão de gênero. Estes conceitos parecem estar expostos para análise quer nós já estejamos ou não em harmonia com nossa própria expressão.

Isto é problemático não somente porque estamos sendo analisadxs, mas precisamente porque esta harmonia não parece ser relevante para quem faz a análise. O binarismo nos lê e imediatamente nos empurra para um dos lados diametrais dos seus moldes limitados e se enfurece se não consegue fazê-lo. Isto é, ou ele nos devolve para onde não sentimos pertencer, ou ele nos empurra para de onde estamos fugindo, ou ele nos considera a anomalia por não ter conseguido violentar-nos. O binarismo não está interessado nxs sujeitxs que lê, no que elxs têm a dizer, porque ele funciona com base numa lógica mecânica, objetiva e automática. Ele torna físico, imutável e natural algo imaterial, fluido e social.

Esta mecânica é o que impulsiona vários de nós na direção de uma expressão de gênero ambígua. Esta necessidade é, como podemos ver então, algo criado socialmente (e não inato, como se fosse uma patologia, tal qual as ciências psi adorariam chamar). E se nós temos uma expressão de gênero ideal, nós temos então um processo até alcançá-la. Como se pode presumir, para as pessoas cisgêneras isto flui muito bem: a expressão de gênero normatizada e esperada é a que sempre lhes constou, e basta-lhes expressar-se, vestir-se como sempre fizeram e continuar suas vidas como sempre as viveram. Para nós, pessoas trans* com identidades não-binárias, isto pode significar que precisamos buscar um certo grau de ambiguidade, um determinado grau de incerteza que não permita mera presunção de pertencimento a um gênero. Isso significa que apesar de confortos pessoais sobre nossa apresentação, ainda se sobreporá a isto a dissonância da cisnorma com o que estamos expressando “de fato”. Ela nos corrige sobre o que estamos expressando para nós mesmxs, e não só para o mundo que queremos habitar.

E buscar este determinado grau significa procurar um momento exato onde ele está acertado. Significa procurar uma determinada quantidade de ambiguidade que nos conforte no sentido de não permitir os empurrões mecânicos da cisnorma na direção de um dos lados da binária. Estas ambiguidades desejáveis são mecanismos de resistência e subversão, mas infelizmente elas possuem um ponto a ser atingido. Precisamos “estar prontxs” para habitar o mundo com nosso gênero exposto. E quando começamos a entrar em concordância com a nossa identidade nós percebemos como esta é uma faca de vários gumes, porque aqui entrará a autoridade classista do Capital, posto o fato de que investimentos precisam ser feitos — de resiliência, de tempo e de dinheiro — para que consigamos expressar a quantidade de ambiguidade necessária (caso sintamos a necessidade de expressar-nos assim) para que não causemos certezas sobre pertencermos exclusivamente a qualquer um dos dois gêneros binários: para que não nos leiam nem exclusivamente como homens, nem exclusivamente como mulheres.

Isto é especialmente problemático porque significa que a cisnorma está criando mais uma narrativa legítima da transgeneridade, desta vez para as pessoas trans* com identidades não-binárias. Uma narrativa capitalista, mediada pelo dinheiro, que exige uma certa forma de se vestir, uma certa falta de obviedade na sua expressão de gênero. Mas esta obviedade é ela própria fabricada pelos mesmos estereótipos binários que nos coíbem. Algumas pessoas trans* com identidades não-binárias vestem-se de formas que nós presumiríamos pertencer ao gênero masculino ou feminino. E isto não as torna mais ou menos binárias, mais ou menos trans*. É importante percebermos que parte da sensação de que precisamos estar prontxs/ambíguxs vem da imposição para que desviemos de como estávamos antes, e que esta imposição também é cisnormativa e social. Mas que, ao mesmo tempo, o desejo de estarmos prontxs também é uma manifestação de nossa identidade trans*, e do caminho que estamos traçando para a nossa própria subjetividade. Esta interpolação que parece contraditória só se resolve (e deixa de parecer contraditória) se soubermos aceitar ambas estas narrativas trans* (e todas as outras) como perfeitamente legítimas; se soubermos conferir a estas pessoas trans* a devida agência sobre suas identidades.

Não podemos criar uma estética não-binária, uma estética queer, porque estas criações são capitais e violentas, e porque elas não fariam sentido mesmo que não o fossem. A forma como você se veste não lhe torna mais ou menos genderqueer, mais ou menos de um ou mais gêneros, ou agênerx, porque estas são narrativas possíveis, e não há narrativas legítimas da experiência trans*. Uma pessoa precisa ter acesso à sua dignidade. Grande parte do trabalho de instituições cisnormativas, principalmente das ciências psi, é a regulamentação do que é uma narrativa trans*. Do que caracteriza a transgeneridade e de quais elementos precisamos para podermos de fato ser trans*. Isto cria uma narrativa científica, tradicional e medicalizada que simplesmente faz a manutenção de nossos entendimentos sobre nosso gênero enclausurados dentro do espaço apertado e sujo que a cisnorma nos reserva, espremidxs entre as duas experiências por ela enaltecidas: a de homens cis e mulheres cis. Mas esta não é uma autoridade que a Ciência possui: esta autoridade é nossa, e somente nossa. É ideal que nós, pessoas trans*, possamos viver nossas experiências e estar bem com nossos gêneros vestindo as roupas que quisermos vestir, quer o Capital nos autorize, quer não; quer a cisnorma leia isto como ambíguo, quer não (sendo esta nossa vontade ou não). E para isto é central que não criemos uma segunda normatividade: uma experiência queer/ambígua/andrógina que seja estática e comparativa; que nos permita desautorizar alguém de sua própria identidade, ou fazer com que se sinta desautorizadx mesmo que indiretamente.

Eu, pessoa genderqueer, estou prontx. Nasci prontx. Estava prontx antes da puberdade e continuo o estando agora. Mas algo me impede de estar lá, onde eu gostaria de me apresentar com meu nome correto, com minha falta de gênero, com minhas roupas do gênero ao qual fui designadx. Sinto que serei designadx, como sou em todo lugar. Sinto que todos os olhos lerão minha experiência como a experiência de um gênero ao qual não pertenço. Sinto que se explicar-me, não irão acreditar. E sinto que tudo isso só acontecerá porque irão me encaixar, através de uma ótica binarista, a um gênero específico porque eu ainda não atingi a ambiguidade que desejo. O principal fator que contribui para esta falta é o da minha posição enquanto desempregadx. E isso significa que não me sinto prontx. Este sentimento não é inato, biológico, patológico: ele é social, capital e patriarcal. Me sinto incompletx, embora inteirx. Não consigo expressar meu gênero como de fato é, embora possa.

Mas quem é que não está prontx? Eu ou estes olhos que me leem?

E quem é que está prontx?

¹Aqui, podemos aplicar a noção de Ideologia muito claramente, pois sabemos que as percepções binárias-cissexistas sobre nossos gêneros, as de que “naturalmente” existem apenas dois; de que “naturalmente” os percebemos nxs outrxs; de que “naturalmente” estão inscritos nos nossos cérebros/genitais/cromossomos são ideias enraizadas num senso-comum que favorece e, em certa medida, advém da cisnormatividade, e que é justificado como se a natureza simplesmente fosse desta forma: binária e evidente. Esta naturalização do gênero está diretamente conectada, alimentada e construída pela Ciência, num conjunto de biologia-anatomia e medicina-ciências psi. A agência das pessoas trans* está, portanto, novamente retirada, e a sua “natureza” precisa ser entendida pela Ciência, como se esta fosse imparcial e não reproduzisse as noções binaristas e cissexistas que ela mesma produz juntamente com a religião, com o patriarcado, com o Estado. Este último, que, para justificar as violências que cometerá contra as pessoas trans* ao mediar os serviços que irá fornecer ou deixar de fornecer-lhes (gatekeeping), usará da própria Ciência numa retroalimentação apropriativa.

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