Hoje temos a participação de Sara Jhones, com seu relato. Devemos proporcionar um espaço para que nós, pessoas trans*, possamos ter nossas vozes ouvidas e publicizadas. Precisamos de mais relatos como esse aqui no transfeminismo. Precisamos também, sobretudo, garantir através dessas “novas” vozes, a construção contínua de diálogos entre nós mesmxs, tanto para discutirmos questões mais teóricas como para garantir nossa própria sobrevivência física e emocional. Porque nós sabemos que para nós, não existe o privilégio de pensarmos as teorias separadas das práticas (de resistência, já adianto).
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Meu nome é Sara e sou uma mulher trans*
Venho nesse momento expor alguns fatores que fazem parte da minha história/vivência enquanto pessoa trans*.
O “ser mulher” e “ser homem” sempre me foi ensinado tanto no núcleo familiar em que cresci (assim como na maioria dos lares brasileiros), quanto nas escolas que frequentei e a todo o tempo, pelas pessoas que conheci. Pessoas cisgêneras que faziam questão de separar muito bem o gênero, assim como as cores, brinquedos, brincadeiras, roupas, hábitos, comportamentos e costumes. Não questionava, pois pensava: “Acho que ninguém gosta de ser homem”. Impressionava-me constantemente com a forma de pensar dos meninos e tentava ao máximo compreender o que motivava os pensamentos parecidos, sendo que sentia só o meu ser completamente diferente. Procurava sempre fazer amizade com outras garotas, para ter com quem compartilhar ideias e pensamentos parecidos, mas na hora de formar a fila para cantar o hino nacional ou para passeios da escola, sempre me colocavam na fila errada. Cresci de certa forma “conformada” com a situação, pois não era apenas a minha família ou funcionários da escola que “supervisionavam” a minha adequação ao gênero designado, mas a sociedade como um todo. E isso é algo realmente infeliz de se perceber aos 7/8 anos de idade. Parecia a sociedade protegendo-me da própria sociedade, como se me dissessem aos sussurros: “Faça isso, para que nós não te punamos e consigas viver em paz”. Pensava que queriam o “meu bem”, mesmo que o “meu bem” não me fizesse bem.
Não estou replicando aquela história: “Quando eu era criança gostava de brincar de boneca e não de carrinho”, estou dizendo que a não similaridade com o gênero masculino sempre me foi bastante nítida. E se há algo que me lembra isso é o fato de que adorava subir no palco da escola todos os dias na hora do *recreio* para cantar as músicas de “Sandy&Junior” (obviamente só cantava as partes da Sandy rsrs).
Não tive uma infância sofrida nem com episódios de automutilação como muitos psicólogos e psiquiatras adorariam que fosse para inserir no meu prontuário médico e dessa forma compor um diagnóstico de “transsexualismo irrefutável”. Um caso fácil. CID 10 F 64.0 na ficha médica e pronto.
Por sorte, e MUITA sorte faço hoje acompanhamento com uma excelente ginecologista que acima de tudo leva em consideração minha intenção com tratamento hormonal e objetivos reais. Que não me tratou como um objeto a ser estudado ou me trouxe formulários pré-estabelecidos para hormonização pré-cirúrgica, afinal, muitos médicos nem nos questionam a intenção da hormonoterapia e pensam que todas as pessoas trans* obrigatoriamente fazem seu uso com fins de redesignação sexual,*mesmo que a hormonização seja totalmente desnecessária para a realização da mesma*, mas o protocolo adotado exige hormonoterapia, então uma trans (que não é o meu caso) que deseja realizá-la terá de seguir o protocolo querendo ou não.
Protocolos, normas, regras, exigências, paramentos, métricas, processos, tratamentos.
Chegamos a um ponto e na verdade nunca saímos dele, de que se pessoas cisgêneras nos dizem que devemos ser atestadas(os) como doentes para nos tratarem, tudo bem. Se precisamos de laudos, provas e tudo mais que nos identifiquem possuidoras(es) de transtorno mental/comportamental necessários à retificação dos documentos, faremos o quê? Colocaremos-nos mais uma vez nas mãos de um (cis)tema que nos obriga a pedir permissão de existir. Se um erro aconteceu no momento do nascimento por avaliação da morfologia genital, não nos dão o direito de corrigir esse erro. Não nos dão o direito de corrigir sem depender de uma pessoa cisgênera para dar ou não a permissão para que isso ocorra, para ter minha vida em meu poder. Não nos dão direitos simplesmente.
Não só param aí as decisões tomadas por nós, pois mesmo nas relações permeadas pelo “teórico” afeto, também se vê a sobreposição de poder, quando homens cis héteros dizem para mulheres trans*: “Gostei de você, quero você”. Como se a decisão fosse a deles, nunca a nossa, pois na nossa cultura não deveríamos “escolher” e já seria um verdadeiro “milagre” atrairmos uma pessoa sem ela estar bêbada ou sem a enganarmos escondendo nossa “verdadeira identidade” (identidade essa que não se verifica psiquicamente mas compulsoriamente). Não é inteligível nem aceitável nossa opção de revelar ou não nossa condição trans*, afinal, o mundo precisa saber e se defender de nós, que existimos para “enganar”, né? E precisamos ser resumidas(dos) a um genital, para tornar as coisas simples, muito simples, o mais simples possível até chegar no religioso e científico “macho” e “fêmea” que tantos discursos transfóbicos amam se sustentar.
Parem com isso. Devem-nos o direito de decidirmos por nós mesm@s, de corrigir erros que não fomos nós quem cometemos, de decidir o que fazer com nossos corpos, de decidir o que fazer com nossas vidas! Não vou pedir permissão para existir assim como não vou pedir permissão para me aceitar! Não irei faltar-lhes com respeito, porém não vou permitir que me subjuguem ou que me resumam, pois não posso ser resumida, principalmente não irei ser resumida a um órgão, a um gênero que não me define, nem a um monte de conceitos cisnormativos que me impuseram.
Se não tivesse meus cabelos longos “de mulher”, minhas saias “de mulher”, meus sapatos “de mulher”, meu rosto “de mulher”, seria “mulher” mesmo assim. Podem me tirar e negar o que não tenho. Mas não podem tirar minha essência, minha alma e minha vida, pois senhoras e senhores CIS, sinto informá-los, mas são puramente e naturalmente “de mulher”.