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justo

Esta é uma tradução do texto “fair”, publicado originalmente no site Taking Steps, que pode ser lido neste link.

Então eu gostaria que você imaginasse algo. Vai ser bastante ruim, e provavelmente trará recordações ruins para algumas pessoas. Se você não deseja correr este risco, tome cuidado e pare de ler neste momento.

A primeira coisa que você precisa entender é que masculinidade, virilidade, são inculcadas e reforçadas através de violência. Tanto através de violência real, quanto pela ameaça de violência, ou pela ameaça implícita de violência. De forma constante. É assim que homens e meninos são ensinados a treinar a masculinidade uns dos outros. Isso é verdade mesmo na tenra idade; apenas vá a um parquinho de qualquer creche, e você verá meninos moldando a masculinidade uns dos outros, de acordo com as regras que lhes foram ensinadas por garotos mais velhos e por homens adultos, através de violência. Esse processo começa bem cedo.

Agora pegue uma garotinha e jogue-a nesse grupo de meninos. Deixe-a à mercê deles com uma única instrução: “Façam com ela o que acharem melhor. Moldem ela da forma que vocês desejarem. O seu bisturi é a violência.”. Imagine isso por um minuto: a imagem de uma menininha que ainda não entende o mundo sendo entregue para um grupo de garotos que recebem carta branca para usar violência para moldá-la no que quer que eles achem apropriado.

É uma imagem apavorante. É hedionda, perturbadora e errada e só de pensar nisso eu tenho calafrios. E é assim que nós, enquanto sociedade, devemos reagir; se algo semelhante a isso acontecer e vier a público, deve haver manchetes nos jornais.

Isso acontece todo dia. Toda hora. Mas enquanto qualquer pessoa decente automaticamente acharia este cenário maligno e chocante quando a garotinha que nós imaginamos é cisgênera, isso é considerado normal e a forma correta de tratar uma garotinha que é transgênera. Eu sabia que eu era uma menina já cedo; eu fui expulsa da pré-escola por me recusar a aceitar que fosse um garoto. E então eles entregaram aquela garotinha para os meninos pelos próximos quinze anos e disseram: “Façam com ela o que acharem melhor. Nós faremos vista grossa e incentivaremos à medida que vocês transformarem ela no que vocês desejarem. Seu bisturi é a violência. Só é apropriado se ela gritar”.

Essa é uma história aterrorizante. Este é o tipo de história que, se você pensar bem, representa o tipo de abuso que a pessoa comum responderia com: “Prendam esse criminoso doentio e joguem a chave fora”. Se fosse uma garota cis. Se ela for trans, as coisas apenas estão acontecendo como deveriam. Não há censura. Há aplausos.

Essa é uma das faces nuas e descobertas da opressão: se fosse feito com uma pessoa privilegiada, seria considerado abuso. Se é feito com uma pessoa marginalizada, é status quo. Mas não é só isso. Não se trata apenas da opressão; é sobre a como e por que nós internalizamos a opressão.

É uma história horrível. É o tipo de história que ameaçaria destruir a sua mente se fosse a sua história. E você tem que se proteger de alguma forma. Você precisa se manter de pé. Você tem que dar sentido à tudo isso. Porque um mundo em que algo assim pode ser feito com uma criancinha que nunca fez nada de mal à ninguém, que sequer é madura o bastante para entender porque ela está sendo ferida deste jeito até mesmo pelos pais até chegar no ponto em que nenhum local é seguro, não é um mundo legal. Não é um mundo que, penso eu, a maioria de nós, incluindo eu, seria forte o bastante para encarar como real. Então nós nos defendemos por acreditar no que nos falam.

Eu deixei o mundo mentir para mim. Eu me deixei acreditar que eu era tão ruim, errada e monstruosa e que eu merecia o que acontecia comigo, que até mesmo deixei que alguém me estuprasse [em inglês] apenas porque eu desejava desesperadamente que ser tocada, porque até mesmo abuso era mais proximidade do que eu acreditava merecer. Eu me deixei absorver a idéia de que eu estava completamente iludida, e que todo meu conhecimento sobre mim era um contorcionismo falacioso de uma mente doentia, porque a alternativa àquela mentira dolorosa, a mentira de que eu era um monstro vivendo em um mundo de fantasia, uma aberração indigna de receber amor? A alternativa era pior. A alternativa era que eu não merecia passar por aquilo, que eu não era repugnante nem indigna de receber amor, que eu era uma criança colocada em uma situação abusiva e forçada a permanecer dela sem qualquer justificativa. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade, quando era criança. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade quando era uma adolescente que não conseguia dormir, que treinava em um saco de pancadas todos os dias após a escola até que as mãos sangrassem, que passou cada dia pensando em formas novas e limpas de abandonar a vida. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade quando era uma colegial que foi exotificada, ridicularizada e tratada como um brinquedo sexual pornográfico e contaminado indigna de qualquer tipo de proximidade que não tivesse tons de “suja” ou “pervertida”, e que não podia abraçar pessoas ou dizer “eu te amo” sem temer que me achassem assustadora.

Eu não era forte o bastante para aceitar a verdade de o quanto eu era forte. Reconhecer e me apoderar da minha imensa força significava reconhecer que eu estava carregando um fardo imenso todo o tempo, que eu estava passando por sofrimento e não por uma vida normal, a ordem natural das coisas. O que eu não era forte o bastante para aceitar era que eu era uma criança boa, uma criança forte, uma criança corajosa, porque isso exigiria admitir que eu estava passando por algo que exigia virtude, força, e coragem, algo que poderia inspirar um documentário televisivo sobre resiliência humana se acontecesse a uma pessoa considerada real pela sociedade. Aceitar que não havia nada errado comigo, e até mesmo que eu era bela, significava aceitar que tudo aquilo que eu passava na escola e em casa, ao invés de normal e bom, era um show de horrores.

Então eu acreditei nas mentiras. Eu deixei que me convencessem durante boa parte da minha adolescência que eu era, realmente, um menino. A idéia me enojava e me aterrorizava, mas não tanto quanto a verdade, de que eu estava certa, de que eu era digna da minha própria confiança, de que não era minha culpa. Era melhor viver em um mundo em que eu era um menino — ou até mesmo um menino que desejava se tornar uma mulher algum dia — e que vivia uma vida normal, do que um mundo em que eu era uma garota que foi sistematicamente privada de se seu senso de si mesma, de sua realidade subjetiva, e de sua personalidade, sujeitada à constante violência ou ameaça de violência, e tratada como uma coisa contaminada e suja. A mentira — até mesmo a mentira de “menino que quer ser menina” ou “mulher em corpo de homem”, como se meu corpo pertencesse a alguma outra pessoa — por mais dolorosa que fosse, não era tão dolorosa quanto a verdade de ser uma garota tentando encontrar seu caminho para se tornar uma mulher e tendo que passar por isso no meio do caminho.

É assim nós internalizamos as mentiras. É dessa forma que nós aceitamos o jugo da opressão. Por viver em um mundo em que a verdade de que nós somos belas, que temos valor e que merecemos receber amor é mais dolorosa do que aceitar a mentira de que não somos nada disso, porque todo o senso de justiça ou ordem desaparece quando você olha para a verdade. Se nós somos belas, então nós estamos em um mundo que não se importa com a bossa beleza, e que até mesmo a joga na lama. Se nós somos fortes, então nós estamos vivendo em um mundo tão pesado que suga nossa força até estarmos cansadas todo o tempo. Se nós somos nós mesmas, então nós estamos vivendo em um mundo que sistematicamente nos arranca a nossa individualidade como uma carne assada arrancada de seus ossos queimados.

Até que nós sejamos fortes o suficiente para encarar isso de frente e reagir, para ficar de pé e lutarmos e nos tornamos parte do mundo em que vivemos de forma melhor, não importa o quão difícil isso seja ou o que isso exija — até que nós sejamos bastante fortes para nos lembrarmos de que somos fortes, e belas, e verdadeiras, e que somos dignas de receber amor — a verdade é pesada demais para suportar. Então, ao invés disso nós aceitamos as histórias falsas, de que nós somos sujas, feias, fracas e indignas de amor. Nós precisamos acreditar nisso. Eu precisei acreditar nisso.

Eu estou escrevendo isso porque eu sei que daqui a uma hora, ou amanhã, ou semana que vem, eu vou dar ouvidos à essas mentiras novamente, durante um tempo. De que outra forma seria possível viver? Como você poderia viver no mundo sem aceitar que a injustiça é justa, ou que não é problema seu, só por um momento, só por um instante? Como você pode caminhar no mundo em que a verdade é verdadeira ao invés de cair em pedaços e chorar? Então nós internalizamos as mentiras por um momento para que as coisas possam fazer sentido o suficiente para que seja possível viver este dia até o fim. A gravidade te puxa confortavelmente para baixo. A alternativa, a verdade pura, vulnerável e pulsante só pode ser aceita em doses pequenas, ainda que maiores a cada dia. É difícil demais simplesmente deixar que tudo seja real. Como você poderia deixar tudo isso ser real? Como você pode realmente remover a cobertura, olhar para as trevas abaixo e deixar escapar a verdade — de que você vive em um mundo em que você não é considerada inteiramente verdadeira, inteiramente humana, e que se você fosse considerada verdadeira, o que fizeram com você seria considerado inaceitável e nauseantes, mas você não é considerada verdadeira e o que fizeram com você é considerado aceitável?

Você precisa contar para si mesma aquelas histórias. Apenas por um momento. Apenas até que você esteja forte o bastante para suportar o peso da verdade e ver com clareza, se você conseguir alcançar essa força. Apenas até que você esteja repleta de coragem e força esmagadoras e que você possa finalmente insistir que é digna de amor e de ser amada, de que cada célula de seu corpo merece isso, de que beleza brilha através de você como uma gloriosa chama ardente. Quando você está de pé, resplandecendo maravilhosa e intimidadora, você pode mover o mundo. Você só precisa atravessar a dor de você é verdadeira, de que você sabe, de que você é tudo que precisa ser.

Dói dizer isso, e dói ouvir: você é digna de receber amor. Eu também. O abismo entre a verdade e o mundo em que nós nos permitimos viver a cada dia é escuro e profundo, mas ainda assim é a verdade e sempre será.

Você é tudo que você sempre esperou se tornar um dia, e eu amo você. Quando você for forte o bastante, por favor, brilhe.

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Você é homem, X, você é homem?

Por anônimx

O telefone toca, era pouco mais de um ano atrás. É o antigo líder da antiga comunidade religiosa da qual eu fazia parte. Eu havia publicado no meu blog textos contando sobre o que lá acontecia, e ele, evidentemente, não gostou nem um pouco. Inicialmente, estava calmo, mas, percebendo em mim a mesma fragilidade de antigamente, começou a gritar. A imagem do líder gritador daquela comunidade emergiu de sua tumba para me aterrorizar novamente. E eu, bicho acuado, voltei para minha toca, assustado, calado.

Tudo o que eu queria, X, é que você virasse homem! Você é homem, X, você é homem?

Você consegue ouvir este som, querid@? Este som de vidro se estilhaçando e se esparramando? Esta sou eu me despedaçando toda por dentro. Mas ele tinha razão, eu não sou um homem. Fosse homem, teria gritado de volta, mostrado todas as contradições, todos os absurdos naquilo que ele dizia - e eram vários. Mas, como uma mulher, sofri calada, sem coragem de responder nada. Afinal, é assim que as mulheres se comportam… Ou não?

Desliguei o telefone. Fosse mulher, teria chorado, derramado em lágrimas a minha dor. Mas permaneci calado, apenas transparecendo o terror em minha face, pudesse alguém ver-me naquela hora. As lágrimas escorriam por dentro. Sabe como é, homem não chora… Chora?

Nunca havia percebido, nunca havia me dado conta da verdadeira natureza dos fatos: era tudo uma questão de gênero! Como quando meus antigos colegas de classe me chamavam de gay, dando-me apelidos, dizendo diversas vezes que eu deveria chupar o pau deles. Algumas vezes faziam-no em coro, puxando palavras-de-ordem nas aulas de educação física. Não conseguia compreender, afinal, eu gostava de uma menina e todos sabiam disso! Mais do que isso, me zoavam por causa disso! E eu pensava: “Eu não sou gay, eles sabem disso, por que continuam a me encher o saco?”

Era tudo uma questão de gênero quando, anos mais tarde, naquela comunidade religiosa, diziam-me que eu era uma criança imatura e que eu tinha que virar homem. Não à toa, rezei pra Deus pedindo que eu nunca deixasse de ser criança. Aquela feminilidade-criança escondida à força fez com que eu criasse uma criança imaginária, uma menina chamada Pureza. Ela era livre, pura, feminina e carregava um ursinho ao qual ela tinha o poder de dar a vida. Frustrava-me a minha inabilidade em alcançá-la.

Certa vez queria jogar futebol com as meninas daquela comunidade, mas fui proibido, pois era a vez das meninas. Era uma questão de gênero quando respondi a elas:
- Mas ninguém mandou Deus fazer-me menino…

Eu me sentia como se estivesse dentro de um armário. Havia um armário, eu sabia, não conseguia esticar os braços! Mas onde estava o armário? Eu não conseguia ver armário algum!

Não era uma questão de orientação sexual, não tinha dúvidas. Seria uma questão de identidade de gênero? Mas eu não me sinto como uma mulher… Demorou muito tempo para eu me permitir perguntar: mas eu sou um homem? Eu me sinto como um homem?

Quantas vezes me senti com medo de ser classificado como uma menina ou mulher por meu comportamento? Quantas vezes me senti desconfortável por me enquadrarem como menino ou homem em diversas situações? Não me seria possível contá-las, mas ao menos agora posso entendê-las. Como quando não me sentia confortável em cruzar as pernas como uma mulher ou de tirar a camisa como um homem. Afinal, não sou uma mulher, mas também não sou um homem. O medo de ser classificado como uma ou outro tornou-me um androide sem que eu pudesse perceber.

Mas não sou um androide, sou um andrógino. Não sou inumano, não sou sem gêneros: sou, sim, um homem, mas também sou uma mulher! Ah, e eu que pensava que apenas homens homossexuais é que gostavam de soltar a franga! Sou colorida como o arco-íris, brilhante como a purpurina, gosto de usufruir do gênero andrógino.

Eu sou toda cheia de gêneros!

Tenho, sim, permissão para me comportar como quiser. Sou um homem que gosta de usar esmalte, sou uma mulher que gosta de sua própria barba. O armário já não prende mais a menina, finalmente consegui alcançar sua mão e beijar-lhe os doces lábios. A leoa está solta e quer lutar pelo seu direito à existência.

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