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Um filho teu não foge à luta!

Recebemos esse texto semana passada, na ocasião do Dia da Visibilidade Trans. Infelizmente não foi possível publicá-lo no dia, porém acreditamos que o texto ainda se aplica, pois todos os dias deveriam ser Dia da Visibilidade Trans!

Por Menino Guerreiro

Não, eu não sou nacionalista. Aliás, bem antes de conhecer os debates sobre o tema eu já era avesso a esses sentimentos. O assunto é outro. Simplesmente comecei a escrever abordando o hino nacional porque desde pequenino adorava ouvir esta frase. Demorei quase a vida inteira pra entender por que.

Nem filho eu sou. Só tive mãe, mas aos 13 anos foi ela que fugiu. Desistiu da vida, e por mais que isso possa parecer estranho, foi sua desistência que me ensinou que isso não era pra mim. Para proteger quem deveria me cuidar, fiquei trancado no quarto, fingindo que nada sabia, para que minha avó não fosse tomada de desespero. E assim, sozinho, sem o direito de derramar uma única lágrima, aprendi que era mais forte. Eu não deveria ser, eu era. Não foi escolha, tampouco desejo. Era questão de sobrevivência: quer viver, então tem que ser assim!

E fui crescendo a cada tropeço ou rasteira que vivia. Não havia outra chance, era ser forte ou não era. E guerreiro aprendi a ser.

É disso que queria falar. Hoje - dia 29/01 - dia da visibilidade trans. Tenho minhas dúvidas quanto à tão falada visibilidade, mas como aprendi que “é incrível a força que as coisas têm quando elas realmente precisam acontecer“, hoje almoçando no RU fiz minha comemoração particular desta data.

Tinha ido almoçar com um colega que há tempos conversava sobre tudo, trivialidades até os gastos abusivos com xerox para o curso. Lá pelas tantas, calourxs chegam para desfrutar de sua primeira refeição no restaurante universitário, um autêntico ritual de passagem!

Talvez pela chegada dxs novatxs resolvemos falar sobre nossos projetos de pesquisa. Talvez, não sei ao certo. Ao terminar de explicitar meu projeto para o mestrado, este colega me pergunta sem delongas, usando apenas para “amaciar” a indagação a estratégica afirmação: “se você não quiser responder tudo bem (poderia ser diferente?), é só uma curiosidade… Com tanta “sutileza” nem minha ingenuidade conseguiu não adivinhar a pergunta que viria… Contudo, um filho teu não foge à luta

Veio o inquérito: - “Qual a sua relação com a transexualidade?

Relativizando o tempo, em segundos recordei todas as pessoas que conheci sem direitos a uma existência digna, que não ousam sair de suas casas por medo (ou cansaço) do que lhes acontece em espaços “públicos”, que são o alvo predileto de toda sorte de “piadinhas” e todas as porcarias reverenciadas na atualidade com o título de “bom humor”, que notoriamente são amigxs, colegas, parentes, “conhecidxs”, porém que algumas não tiveram a oportunidade de serem amores. E por tudo isso e um pouco mais, soube que não caberia a escapatória despretensiosa. Posso não ter orgulho de ser uma pessoa trans, porém não é uma alternativa válida a vergonha.

E naquele instante, abri meu armário tão fielmente trancafiado, meu cofre blindado tinha sido arrombado… Apenas respondi:

  • É a minha vida.

    Não contente, esperando uma confirmação menos segura, o colega tentou explicitar:

  • Você é transexual?
  • Sim.

    Com um singelo sim, sem apêndices, expressei minha história. Não sei se ele ficou (e ainda está) assustado, sentindo-se enganado (afinal, não serei mais tão amigO dele), confuso ou qualquer coisa que seja. Todavia, isto é assunto para ele. Em sua indiscrição, depois de algum tempo, questionou-me se desejo ter filhos. Minha resposta foi a mesma de sempre:

  • Sou feliz em ser pai de quatro gatos.

    Qual era a intenção da pergunta não descobrirei. Como ele vai lidar com isso não me interessa. Só sei que no meio da conversa, e ao lembrar que na maioria das vezes, para a maioria das pessoas, nossas dores não são tão dolorosas (ou até merecemos), percebi que ele deveria estar curioso com o nome que arbitrariamente me foi imposto. Não disse a ele nem o farei a qualquer outrx que estiver com a curiosidade inflamada.

    Para todxs ou para ninguém, e somente para mim sou o Menino Guerreiro. Este é o nome que sempre quis. Menino porque sempre me encantou a doçura e a genialidade da infância que se contenta em brincar de ser feliz e guerreiro porque aprendi a ser mais forte que o sofrimento, mais estratégico que os obstáculos e mais valente que o ódio e a aversão a mim desferidos. Esta é a minha (e de todxs nós guerreirxs) proeza, ainda não houve repugnância ou terror que me tire a essência de ser Guerreiro e Menino.

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QUAIS CAMINHOS PARA A CIDADANIA TRANS?

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.

Por Jaqueline Gomes de Jesus*1

“Se a mente do oprimido é manipulada (…) até o ponto dele se considerar inferior, não será capaz de fazer nada para enfrentar o seu opressor”, Steve Biko.

Esta será mais uma conversa sobre gênero, entretanto, falando de mulheres e homens que costumam ser esquecidos quando se fala de gênero.

Até muito pouco tempo atrás, no final do século XX, era comum ouvir pessoas falarem que “as mulheres começavam a se inserir no mercado de trabalho”. A tal afirmação, os mais atentos respondiam:

— Como assim, “cara pálida”? Mulheres sempre trabalharam!

Para esclarecer esse debate, vou transcrever um trecho de artigo que escrevi para o Observatório da Imprensa, por oportunidade do Dia Internacional da(s) Mulher(es) de 2012:

“As mulheres sempre participaram do mundo do trabalho: subalternizadas, mas estavam lá. A partir das novas ideias e comportamentos trazidos com o movimento feminista e a liberação sexual, a percepção sobre quem são as mulheres se ampliou, deixou de apenas se remeter à mulher branca, abastada, casada com filhos, e passou a acatar a humanidade e a feminilidade de mulheres outrora invisíveis: negras, indígenas, pobres, com necessidades especiais, idosas, lésbicas, bissexuais, solteiras…”*2.

Sojourner Truth (1797–1883), abolicionista e ativista dos direitos das mulheres, primeira negra norte-americana a ganhar um litígio judicial contra um branco, perguntou, durante uma Convenção dos Direitos das Mulheres do estado de Ohio, em dezembro de 1851:

“Aquele homem ali diz que mulheres precisam ser ajudadas para subir nas carruagens, e que têm de ser levantadas sobre as valas, e ter o melhor lugar, onde quer que estejam. Ninguém nunca me ajuda a subir nas carruagens, nem a passar pelo lamaçal, nem me dá qualquer lugar melhor! E eu não sou uma mulher?”*3

A imagem de “mulher” estava atrelada — e provavelmente continue estando — a um modelo específico de mulher: a mulher branca de classe média que pode reproduzir. Muitas vertentes do feminismo adotavam essa versão da história e da humanidade, com opositoras aqui e ali, até que, nos anos 70, surgiu o feminismo negro, com sua crítica ao racismo e ao essencialismo biológico nas discussões sobre gênero, afirmando que mulheres negras eram mulheres.

Semelhante afirmação pode parecer redundante hoje, porém, estranhamente, neste início de século XXI, ainda é preciso escrever e gritar que não existe uma mulher, mas mulheres, e que algumas mulheres são mulheres: estou falando das mulheres transexuais, e se pensarmos em homens, também estou falando dos homens transexuais.

A população transgênero, ou simplesmente trans, mas principalmente as travestis e os homens e as mulheres transexuais, têm muito a aprender com o feminismo negro. Esta vertente do feminismo que temos tecido há algumas décadas, e que aos poucos vem sendo reconhecida como um dos feminismos, o feminismo transgênero ou simplesmente “transfeminismo”, é herdeira das melhores críticas feministas negras.

Eu, pessoalmente, acredito que o pensamento transfeminista, mesmo que não seja aplicado estritamente da forma como o definimos, é um dos caminhos para a plena cidadania trans, uma cidadania que não começa outorgada por alguém, dada gentilmente por um “outro” generoso (comumente um poderoso cisgênero*4), uma cidadania tutelada, mas, isso sim, uma cidadania que começa dentro das pessoas trans, exigida individual e coletivamente, uma cidadania conquistada.

O cidadão, mais do que ser somente uma pessoa com um registro civil e direito a voto, é alguém que tem o direito sobre si mesmo, é sujeito de sua vida, e não objeto de outros.

Falo de uma cidadania que começa com o reconhecimento, por parte das próprias travestis e das mulheres e homens transexuais, de que são seres humanos tão dignos quanto quaisquer outros; passa pela constatação de que, apesar do truísmo, da verdade evidente, de que são pessoas, não são tratadas da mesma forma que as outras; e avança por meio da denúncia e do repúdio à injusta segregação cotidiana contra o direito à vida e à identidade de gênero das pessoas trans.

Quando um grupo social vai paulatinamente conquistando sua cidadania, não apenas ele e seus integrantes ganham com isso, mas, igualmente, toda sociedade que se pretende democrática. Não vivemos sequer próximos do mundo ideal, mas avançamos demais, como humanidade, com as lutas diárias contra qualquer forma de discriminação e pela isonomia entre os seres humanos.

Esta nova linha de frente, a batalha pelo reconhecimento da humanidade e do gênero das pessoas trans, não constrói tão-somente a cidadania trans, ela alcança todas e todos os cidadãos, transforma as nossas concepções limitadas acerca dos gêneros e de como eles podem ser vividos.

Enfim, estou falando da liberdade de sermos quem somos: há muitos caminhos para se chegar lá, no entanto, enquanto as pessoas cisgênero continuarem gozando dos seus direitos e, de forma egoísta, mantendo a guarda dos direitos e das vozes das pessoas transgênero, ambas continuarão longe de serem livres.

*1 Jaqueline Gomes de Jesus é doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília – UnB e pesquisadora do Laboratório de Trabalho, Diversidade e Identidade – LTDI/UnB.

*2 “Trabalhadoras Transexuais em Destaque”, artigo publicado em 13/03/2012, na edição 685 do Observatório da Imprensa, disponível em http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed685_trabalhadoras_transexuais_em_destaque.

*3 O texto completo do discurso original de Truth, “Ain’t I a Woman?”, está disponível no site http://www.fordham.edu/halsall/mod/sojtruth-woman.asp.

*4 Por “cisgênero” me refiro à população composta por pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascimento, diferentemente da população transgênero. Essas definições são aprofundadas no livro “Orientações sobre Identidade de Gênero”, disponível em http://www.sertao.ufg.br/pages/42117.

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Microagressões ou um dia como trans* na sociedade cissexista

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.

Por Hailey Kaas

A pessoa X é uma pessoa trans*. Mais especificamente, é uma mulher trans*. Todos os dias, quando acorda, sua primeira dificuldade é em tomar banho e se arrumar para sair. No banho, se vê como algo feio e indesejado; Na hora de escolher suas roupas, não consegue satisfazer-se, pois acredita que nenhuma lhe “cai bem”. Por “cair bem”, a pessoa x sabe que ela espera, mesmo que inconscientemente, que aquela roupa vá lhe garantir o “direito” de ser vista como mulher sem a questionarem ou importunarem. Ela olha seu rosto no espelho e repara, novamente, em como seus pêlos faciais estão aparentes, por mais que tenha passado a lâmina cuidadosamente. Pensa: “preciso juntar dinheiro urgentemente para fazer aquela tal de depilação a laser”.

Ela gosta de maquiagem, mas evita usar. Seu maior medo é ser vista como aquelas personagens do Zorra Total. Por outro lado, deseja avidamente esconder as marcas dos pêlos faciais e algumas curvas que ela considera masculinas.

A pessoa X sai para trabalhar. Na rua, coloca óculos de sol e fones de ouvido. Não quer olhar para as outras pessoas e perceber que estão lhe observando, julgando, criticando, ojerizando. Prefere pensar que não existe ninguém ao redor, e desesperadamente imerge nas músicas que ouve para desligar-se do mundo.

Eventualmente, acaba ouvindo algum xingamento aqui e ali, pois a força do grito ultrapassa a capacidade de abafo dos fones. Entre “traveco” e “bicha”; “que pouca vergonha” e cantadas em forma de piadas transfóbicas, ela pega o transporte público.

Ela trabalha em um Call Center. Lá, atende com o nome civil apesar dos pedidos feitos à administração para que pudesse atender com seu nome correto.

No trabalho, sente vontade de ir ao banheiro. Sabe muito bem que deve segurar, pois não a deixarão utilizar o banheiro feminino, e usar o masculino está fora de cogitação. Segurar a urina não é nada perto da humilhação e medo que tem de ir ao banheiro.

Após o trabalho, ela vai ao banco, uma vez que necessita sacar o valor do aluguel. No caixa, o atendente solicita seu RG; Logo vemos uma risadinha e um “Sr. tal” pronunciado em alto e bom tom na frente de todos.

Volta rapidamente para casa, pois tem medo de andar na rua quando escurece. Lembra bem de conhecidas que foram agredidas em ruas próximas. “Se nem os gays estão seguros naquele bairro chique”, pensa, ao lembrar-se do famigerado caso da lâmpada fluorescente.

Chega em casa e vai correndo ao banheiro. Depois, vê a novela e usa o computador que felizmente conseguiu adquirir depois de juntar algum dinheiro. Participa de grupos trans* e se informa sobre hormônios e cirurgias. Está ansiosa e feliz, pois amanhã irá a sua primeira consulta naquele centro famoso que abriu em São Paulo.

Mal sabe a pessoa X que os médicos do centro a olharão com desdém e com pouca, senão nenhuma preocupação real com sua saúde e bem estar. Em poucos meses ela irá ao tal centro apenas por obrigação e para obter a receita de hormônios (e assim pegar de graça na farmácia).

Antes de ir dormir, pensa, mais uma vez, como irá falar com seus pais sobre essa questão. Não sabe como irão reagir, mas tem quase certeza de que será negativamente.

A pessoa X sou eu, são minhas amigas trans*, são meus amigos trans*, somos todxs.

As situações vividas por muitas pessoas trans*, chamadas aqui de microagressões, ocasionam não raro estresse e depressão. As microagressões concorrem para nos expulsar cotidianamente dos espaços sociais, como se fôssemos um mal a ser extinto. As pessoas que nos maltratam, o fazem com o objetivo consciente ou inconsciente de realizar a assepsia social necessária para se livrarem das pessoas que consideram anormais. Desejam acabar com a “pouca vergonha” desses “sujeitos privilegiados”, como costuma dizer aquele famoso pastor.

Desde no espaço privado, em casa, até nos espaços de socialização, não estamos um minuto sequer em paz.

Por isso, nessa semana da visibilidade trans peço que, ativistas ou não, nos eduquemos sobre as questões trans* - em especial sob a ótica (trans)feminista. Dar um pouco de dignidade, paz e conforto para essas pessoas, significa transformar suas vidas em possíveis, em fazê-las vivíveis e consequentemente, um pouco menos desumanizadas.

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O que o Transfeminismo significa para mim

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.

Por Leda Ferreira

Eu ainda me lembro daqueles primeiros meses de pânico silencioso e desespero. Eu tinha me descoberto - e aceitado - como uma mulher transgênera, e minha mente estava cheia de dúvidas sobre como eu faria para transicionar. Como iria arranjar dinheiro para as cirurgias estéticas para me tornar uma mulher bonita. Quanto iria gastar em roupas. Tinha tantas coisas para fazer! Eu não sabia qual fazer primeiro.

Eu precisava começar a poupar dinheiro para fazer a Cirurgia de Readequação Sexual, obter acompanhamento psicológico que me desse laudo de transexualidade, comprar roupas, sapatos, aprender a me maquiar, ter sessões de fono para treinar a voz, etc etc etc. Precisava pensar no futuro. Em como faria para trabalhar e ganhar dinheiro, nessa nova condição em que eu enfrentaria ainda mais preconceito. Havia tantas escolhas para fazer! O caminho a seguir era sombrio e nebuloso.

Assim foram meus primeiros meses após me descobrir trans*. Foram noites sem dormir, angustiada, pensando no futuro, em como eu COMEÇARIA a trabalhar por esses objetivos, sem ter a menor idéia de como começar. Eu não conseguia pensar em outra coisa. Minha mente estava cheia de dúvidas e incertezas: eu conseguiria me hormonizar? Onde arranjaria dinheiro para fazer cirurgias estéticas? Eu realmente queria colocar silicone nos seios, mudar o rosto, fazer implante de cabelo, modelar a cintura e afins. De fato, ainda quero isso tudo exceto modelar a cintura.

Não foi uma época boa. Essa vida de dúvidas e incertezas já bastava para me esmagar. Cada vez que olhava para meu rosto, meu corpo, me odiava cada vez mais. Me via cada vez mais distante do que eu era por dentro. Cada dia era uma possibilidade de suicídio, como forma de terminar esse sofrimento.

Felizmente, entrei em contato com pessoas trans* na internet que me ajudaram a superar isso. O pessoal do Transfeminismo. Aprendi muita coisa com eles. A principal coisa que aprendi, e que me ajudou muito, foi a noção de que TODOS OS CORPOS TRANS* SÃO LINDOS. A noção de body-positive [corpo-positivo], adaptada para a realidade das pessoas transgêneras. A idéia de que o que faz um homem ou uma mulher não é exclusivamente sua anatomia.

Uma das coisas que mais me causava pânico era a idéia de que eu “ainda não era uma mulher”. Graças a essas idéias do Transfeminismo, eu consegui encontrar algum conforto. Entendi que, mesmo durante o tempo em que eu ainda não conseguisse iniciar minha transição, eu era uma mulher, e podia reivindicar esse reconhecimento.

Eu só pude começar a tomar hormônios, e por conta própria, sem acompanhamento, recentemente. Meu corpo está longe de parecer “feminino”, talvez nunca seja lido assim pela sociedade. Enquanto isso não acontece, eu tenho desejos legítimos e genuínos de me identificar como mulher da melhor forma possível, e me engajar nas expressões de gênero que a sociedade aceita como femininas: usar maquiagem, vestidos, sapatos etc. Me envolver em “coisas de mulher”. Enfim.

O fato de eu não fazer nada disso me causava tanto sofrimento quanto o meu corpo. Eu achava que só poderia fazer isso quanto parecesse uma mulher. Tinha medo de, tendo um “corpo masculino”, fazer essas coisas publicamente, e me tornar uma aberração, algo feio e ridículo, motivo de piada. E só tive coragem de fazer isso, e me sentir melhor, após absorver a noção do Transfeminismo de que um homem transexual continua sendo homem, mesmo que mantenha seus seios, e uma mulher transexual continua sendo mulher, mesmo que tenha pênis. Ou voz grossa. Ou seja, careca, como eu sou. Esse pensamento me deu força para, com todos esses atributos físicos, me vestir como mulher pela primeira vez, e passar a viver dessa forma. A trabalhar e sair na rua dessa forma.

Se não fosse pelo Transfeminismo, eu ainda estaria naquela fase de pânico e desespero, me sentindo presa em meu próprio corpo, como se ele me impedisse de ser o que sou. Hoje, posso ser o que sou, mesmo que meu corpo tente ser uma âncora que me impeça de sair do lugar. Eu tenho corpo, voz e resto “de homem”, as pessoas me vêem na rua como uma aberração. Elas nem me lêem como um gay afeminado “pintosinho”, se fosse isso já estaria bom, pois elas estariam, mesmo remotamente, reconhecendo que tudo está vagamente relacionado à minha sexualidade e identidade de gênero. Ao invés disso, elas preferem acreditar que estou sob o efeito de drogas. Ou que sou um maníaco.

Eu espero que algum dia tenha atributos que me permitam ser vista como mulher, ou algo próximo. Pelo menos, algo que as pessoas não precisam temer, uma pessoa inofensiva que só está sendo ela mesma. E só posso ter algum conforto enquanto isso não acontece, por me apegar à noção do Transfeminismo de que todos os corpos trans* são lindos, inclusive o meu. Ele não é como eu quero, e reivindico sim, o direito às mudanças do corpo que sinto que preciso - as que tenho direito por lei, e muitas outras. Porém, ao menos posso ter algum conforto por entender que sou uma mulher, não importa o quanto as pessoas me vejam como uma bizarrice, e meu corpo diga o contrário.

Outra idéia do Transfeminismo que me ajudou muito é a noção de empoderamento das pessoas trans*. Antes, eu acreditava que a única maneira de sensibilizar as pessoas e ter alguma chance de ser aceita seria tentando comover as pessoas contando minha história de pessoa que “nasceu no corpo errado”, e sofre por não ser vista pelas pessoas como uma mulher. Que sofre preconceitos, agressões cotidianas, e que tem mesmo as tarefas mais simples, como ir à padaria próxima, dificultadas ao máximo pelo medo. Com o contato com o Transfeminismo, aprendi que podia lutar para ser aceita, através de outra via: mostrar que, mesmo “incomum”, “esquisita” e “diferente”, eu continuo sim, sendo uma pessoa produtiva, capaz de trabalhar, se sustentar, interagir socialmente, pagar seus impostos, fazer circular a economia por ser consumidora (não paro de pensar nisso toda vez que entro num shopping e vejo os seguranças me rondando), e contribuir para a sociedade em geral.

E hoje só estou aqui, viva e seguindo meu caminho, prosseguindo na minha transição, porque obtive a força para não me matar, através do Transfeminismo, e suas idéias. A “ajuda” que a prática médica e convencional tem a oferecer, em relação às pessoas trans*, não teria me salvado. A face desumanizadora do processo teria me esmagado logo no começo. Eu teria ficado pior.

Eu entendo que cada pessoa trans* tem seu sofrimento distinto, e nem todo mundo pode encontrar tamanho conforto somente em idéias. Algumas pessoas trans* puderam encontrar conforto permanente, e não sentem qualquer necessidade de modificações corporais. Eu não. Preciso disso. Mas ao menos consigo me ver e me sentir mulher AGORA, enquanto não tenho isso, e isso me ajuda a continuar. Não posso falar por nenhuma outra pessoa trans*, muito menos pelos homens trans*, cuja realidade é BEM distinta da minha (por exemplo, eles não têm como se hormonizar por conta própria, ou isso é praticamente impossível. E caro), mas acho que assim como eu, alguns encontraram conforto na idéia de que são homens, mesmo que possam ter seios. Isso não significa que deixaram de sofrer por isso. Esse pequeno alívio não é permanente, e se suas necessidades ficarem sendo adiadas, eles vão se deprimir e possivelmente se matar (assim como eu), mas ao menos tem uma pequena, ínfima, fonte de força e motivação para continuar até que tenham o que precisam.

Então, é isso o que penso. Mesmo as pessoas com disforia mais acentuada, que não poderiam aceitar seus corpos de forma alguma, poderiam ter ALGUM conforto e alívio, por menor que seja, enquanto não obtém acesso aos procedimentos que precisam, por adotarem a postura body-positive do Transfeminismo: mesmo com seios, você é homem, e seu corpo é um lindo corpo masculino. Um dia, seus seios serão removidos, você terá pelos pelo corpo, mas você é um homem HOJE, e seu corpo, mesmo em transição, é lindo. Isso poderia dar a eles alguma motivação para continuar e se manter até o fim do processo. Nem todos conseguiriam se confortar com isso, mas acho que alguns já fizeram isso.

Eu devo muito ao Transfeminismo - um movimento, um conjunto de idéias, que me ajudou tanto. Ele pode não servir para todo mundo, mas isso não desmerece todo o movimento.

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Pensando além da (in)visibilidade

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.

Por Bia Pagliarini Bagagli

Mais um dia 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans.

Sinto-me impelida a escrever, nem que seja para desabafar. Afinal, sou trans*, e quem mais habilitadx para falar numa ocasião dessas? Mas afinal de contas, como as pessoas trans* são vistas pela sociedade? Mais importante: essa visão está de acordo com o que elas têm de si mesmas?

A mídia ao mesmo tempo em que constrói, reproduz o que todos nós entendemos sobre transgeneridade, o senso comum a cerca do tema. Não preciso me delongar sobre o quanto esse olhar, majoritariamente, é cis, além de masculino, branco, elitista… Pessoas trans* são retratadas, através desses poderosos meios, cotidianamente por homens brancos cisgêneros abastados que detém esse poder de voz. Será que eles são capazes de terem empatia com essas pessoas? O quanto, assim como um documentarista de vida selvagem observa suas feras, essas criaturas urbanas são tratadas como verdadeiros animais exóticos?

Falar sobre visibilidade trans* é também falar sobre minúcias e não-ditos. Sobre o que, a primeiro momento, parece óbvio, mas a partir de um olhar mais atento pode-se notar o quanto dessas obviedades se firmam em pilares cissexistas e transfóbicas. O teor obviedade é bastante relativo. Até mesmo coisas que para mim são tão escancaradamente transfóbicas, para pessoas cis podem ser mais uma inofensiva naturalidade da vida cotidiana. Seus olhares não foram treinados e nem haveriam de ser. São os olhares trans* que foram treinados a marra, sob constante violência. Isso não quer dizer que é agradável e fácil enxergar certas coisas.

É muito duro saber que nossos corpos são ao mesmo tempo hipersexualizados e ojerizados, e perceber o quanto sofremos na pele disforia e objetificação de nossos corpos impactando em todas as esferas das relações pessoais; duro saber da norma cis que rege as condutas mais aparentemente espontâneas e o quanto percebemos na pele a isolação ou ostracismo pela quais muitas pessoas trans passam; duro saber que se convencionou que documentos, definidos ao nascimento, podem definir seu sexo e nome e o quanto sofremos na pele para corrigi-los, enfrentando não raramente inúmeros percalços judiciais.

São essas vivências dolorosas que passamos que tornam possível um olhar no mínimo diferenciado a cerca dos nossos próprios problemas. Uma pessoa cis realmente pode ter empatia e perceber o quanto essas pessoas sofrem, e o quão é urgente a solução desses problemas na vida das pessoas trans*? Conseguem perceber o que, a princípio, são melindres e sutilezas? Espero que sim, claro, mas infelizmente não é isso que vemos todos os dias. Por isso, é importante que pessoas cis não tentem dizer o que pessoas trans* sofrem ou deixam de sofrer, ou como deveriam se sentir.

Acho relevante, ao falar de visibilidade, tocar na invisibilidade. Pessoas trans* são apagadas dos discursos oficiais das mais variadas formas e nas mais diversas esferas, vou dar um exemplo curioso: bulas de medicamento. Pois é, você pode estar se perguntando qual é a relação entre transfobia e bulas. Bula é um gênero textual que possui um interlocutor, os usuários, a fim de informá-los a cerca da posologia, efeitos colaterais, etc. Muitas pessoas trans* tomam hormônios com o fim de desenvolverem característica associadas ao gênero a que pertencem, não diferente dos homens e mulheres cis que necessitam de terapia de reposição hormonal. Nada mais esperado que se encontre nas bulas o “público alvo” de determinado medicamento: em uma bula de antidepressivos, os usuários possuem depressão, em uma bula de medicamentos para hipertensão, os usuários são hipertensos e por ai vai.

No entanto, não encontramos em nenhuma bula – tanto de antiandrógenos, medicamentos de reposição hormonal e pílulas que contenham hormônios (como os anticoncepcionais) – qualquer referência a pessoas transgêneras. É como se elas simplesmente não existissem, apesar de utilizarem amplamente esses medicamentos. Logo, não precisamos nos importar com a dose e com qual substância elas necessitam, quais são os efeitos colaterais e desejados, qual é a eficácia e os riscos etc. Não precisamos nos importar em como essas pessoas vão obter informação para preservar a saúde. Afinal, elas não existem. Cabe a elas se guiarem por dosagens e corpos cis, adaptando e interpretando em seus corpos, gerando quase que experimentos científicos.

É disso que estou falando quando aponto que o cissexismo e transfobia se materializam em todas as esferas de nossas vidas e estão infiltrados em estruturas tão profundas e inconscientes que podemos achar que é “normal”. Notem que o apagamento das bulas se tratar de uma materialização da transfobia ser um fato pouco óbvio não o faz menos preocupante e menos grave. Cabe a nós revelá-los. Só assim vamos deslocar os sentidos únicos que a sociedade ciscêntrica impõe.

Vamos também dizer não à violência médica que acredita ser capaz de diagnosticar nossas identidades de gênero. Vamos repudiar quem tenta deslegitimar nossa luta, não iremos aceitar que digam que privilégios cis não existem, e que pessoas trans* mereçam servir de escárnio de homens heterossexuais cisgêneros. Dizer que nós nos colocamos em posição de vítima é uma falácia que só corrobora o status quo. É fundamental que as pessoas trans* gritem e mostrem que não irão aturar mais violência. Denunciar a transfobia na sociedade, mostrar que ela existe sim e alertar aqueles que são céticos, são os primeiros passos para que possamos lutar contra ela.

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