Recebemos esse texto semana passada, na ocasião do Dia da Visibilidade Trans. Infelizmente não foi possível publicá-lo no dia, porém acreditamos que o texto ainda se aplica, pois todos os dias deveriam ser Dia da Visibilidade Trans!
Por Menino Guerreiro
Não, eu não sou nacionalista. Aliás, bem antes de conhecer os debates sobre o tema eu já era avesso a esses sentimentos. O assunto é outro. Simplesmente comecei a escrever abordando o hino nacional porque desde pequenino adorava ouvir esta frase. Demorei quase a vida inteira pra entender por que.
Nem filho eu sou. Só tive mãe, mas aos 13 anos foi ela que fugiu. Desistiu da vida, e por mais que isso possa parecer estranho, foi sua desistência que me ensinou que isso não era pra mim. Para proteger quem deveria me cuidar, fiquei trancado no quarto, fingindo que nada sabia, para que minha avó não fosse tomada de desespero. E assim, sozinho, sem o direito de derramar uma única lágrima, aprendi que era mais forte. Eu não deveria ser, eu era. Não foi escolha, tampouco desejo. Era questão de sobrevivência: quer viver, então tem que ser assim!
E fui crescendo a cada tropeço ou rasteira que vivia. Não havia outra chance, era ser forte ou não era. E guerreiro aprendi a ser.
É disso que queria falar. Hoje - dia 29/01 - dia da visibilidade trans. Tenho minhas dúvidas quanto à tão falada visibilidade, mas como aprendi que “é incrível a força que as coisas têm quando elas realmente precisam acontecer“, hoje almoçando no RU fiz minha comemoração particular desta data.
Tinha ido almoçar com um colega que há tempos conversava sobre tudo, trivialidades até os gastos abusivos com xerox para o curso. Lá pelas tantas, calourxs chegam para desfrutar de sua primeira refeição no restaurante universitário, um autêntico ritual de passagem!
Talvez pela chegada dxs novatxs resolvemos falar sobre nossos projetos de pesquisa. Talvez, não sei ao certo. Ao terminar de explicitar meu projeto para o mestrado, este colega me pergunta sem delongas, usando apenas para “amaciar” a indagação a estratégica afirmação: “se você não quiser responder tudo bem (poderia ser diferente?), é só uma curiosidade… Com tanta “sutileza” nem minha ingenuidade conseguiu não adivinhar a pergunta que viria… Contudo, ♫ um filho teu não foge à luta ♫…
Veio o inquérito: - “Qual a sua relação com a transexualidade?“
Relativizando o tempo, em segundos recordei todas as pessoas que conheci sem direitos a uma existência digna, que não ousam sair de suas casas por medo (ou cansaço) do que lhes acontece em espaços “públicos”, que são o alvo predileto de toda sorte de “piadinhas” e todas as porcarias reverenciadas na atualidade com o título de “bom humor”, que notoriamente são amigxs, colegas, parentes, “conhecidxs”, porém que algumas não tiveram a oportunidade de serem amores. E por tudo isso e um pouco mais, soube que não caberia a escapatória despretensiosa. Posso não ter orgulho de ser uma pessoa trans, porém não é uma alternativa válida a vergonha.
E naquele instante, abri meu armário tão fielmente trancafiado, meu cofre blindado tinha sido arrombado… Apenas respondi:
-
É a minha vida.
Não contente, esperando uma confirmação menos segura, o colega tentou explicitar:
-
Você é transexual?
-
Sim.
Com um singelo sim, sem apêndices, expressei minha história. Não sei se ele ficou (e ainda está) assustado, sentindo-se enganado (afinal, não serei mais tão amigO dele), confuso ou qualquer coisa que seja. Todavia, isto é assunto para ele. Em sua indiscrição, depois de algum tempo, questionou-me se desejo ter filhos. Minha resposta foi a mesma de sempre:
-
Sou feliz em ser pai de quatro gatos.
Qual era a intenção da pergunta não descobrirei. Como ele vai lidar com isso não me interessa. Só sei que no meio da conversa, e ao lembrar que na maioria das vezes, para a maioria das pessoas, nossas dores não são tão dolorosas (ou até merecemos), percebi que ele deveria estar curioso com o nome que arbitrariamente me foi imposto. Não disse a ele nem o farei a qualquer outrx que estiver com a curiosidade inflamada.
Para todxs ou para ninguém, e somente para mim sou o Menino Guerreiro. Este é o nome que sempre quis. Menino porque sempre me encantou a doçura e a genialidade da infância que se contenta em brincar de ser feliz e guerreiro porque aprendi a ser mais forte que o sofrimento, mais estratégico que os obstáculos e mais valente que o ódio e a aversão a mim desferidos. Esta é a minha (e de todxs nós guerreirxs) proeza, ainda não houve repugnância ou terror que me tire a essência de ser Guerreiro e Menino.