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Assédio e estupro de mulheres trans* e consentimento fabricado.

[Aviso de conteúdo: Esse texto usa termos potencialmente desconfortáveis sobre práticas sexuais e dialoga abertamente sobre estupro e assédio].

Quando eu era mais jovem, participei de espaços de socialização que não eram ativistas. Em especial, quando comecei a transicionar, participava de espaços trans* e não raro também de fóruns crossdressers. A quantidade de assédio advinda de homens que se sentiam no direito de invadir nossos espaços para fazer propostas de todos os tipos era absurda - e, logicamente, quando eram negados, saiam proferindo todos os xingos possíveis, corriqueiramente transfóbicos a lá (literalmente) “você nem parecia mulher mesmo” ou “você tinha cara de homem” etc.

Sabemos como a cultura do estupro e o entitlement¹ masculino cria um ambiente onde negar os avanços de um homem é um ultraje. Nessa lógica, ou você é lésbica ou “feminazi” frígida - menos o fato de que simplesmente uma mulher pode não se interessar por um homem.

Da mesma forma, há um pensamento generalizado que mulheres trans* sempre estão dispostas a se relacionarem com homens cis héteros, que isso é o objetivo de todas nós.

Isso advém da interseção machismo e transfobia que, além de tornar nossos corpos públicos ao escrutínio de todxs, ainda nos coloca numa posição de mulheres desesperadas para arranjar um “macho alfa” que vai nos comer e então nos satisfazer enquanto mulheres (tem tanto absurdo nisso que deixo para xs leitorxs se indignarem).

Nem preciso comentar que existem mulheres trans* lésbicas, bissexuais, pansexuais, assexuais etc. Achar que estamos à disposição do tal “macho alfa” porque nosso objetivo é “enganar” os pobres homens héteros coitados é de uma soberba tão grande - como se homens fossem a última bolacha do pacote e como se nós vivêssemos somente para isso, como se nossa identidade existisse em função disso. Achar que, como algumas de nós só “temos um buraco” somos obrigadas a fazer sexo anal. É um cissexismo nojento.

Vou reservar uma postagem à parte para falar sobre a fetichização de mulheres trans*, que está muito ligada com isso. (Ah, os famosos “t-lovers”).

Não raro, há casos de abusos em relacionamentos onde existe disparidade de poder. No caso aqui me refiro aos relacionamentos entre uma pessoa cis e uma trans*. Conheço diversos casos onde um homem cis domina uma mulher trans* pelo uso da agressão física e psicológica. Sabemos que isso também ocorre com mulheres cis, então qual seria a diferença? Ocorre que passamos uma boa parte do nosso tempo tentado nos “provar” como mulheres socialmente. Lutando contra nossas disforias. Mulheres trans* têm uma vulnerabilidade em relação a seus corpos. Não raro eu ouvi meus parceiros homens dizerem preferir uma vulva. Dito às vezes como forma de ataque ou dito na “inocência”. O que pensamos nesses casos? Se eu não estivesse tão segura do meu genital, facilmente talvez eu tivesse novamente pensado em recorrer à CRS. Esse cissexismo nos faz aceitar essas coisas porque achamos que é um preço a se pagar para sermos aceitas. Estamos tão submetidas ao Outro, às expectativas do Outro em relação a nossos corpos, que nossa auto-estima sempre está por um fio. O que eu chamo de cissexismo estrutural é o conjunto de práticas em nível micro e macro que nos levam a odiar nossos corpos e a buscarmos um ideal de beleza em relação a nós e nossos corpos POR CAUSA do Outro.

As pessoas cis têm que nos aceitar como somos, e não nós que temos que nos adaptar a elxs. Nossa autonomia deve ser soberana sobre nossos corpos e sobre nossas identidades. Nos empoderar também é dizer não quando de fato não queremos. O que me leva à outra questão do cabeçalho dessa postagem: estupro.

Às vezes estamos tão obcecadas em agradar o Outro, porque do alto de nossa baixa-estima achamos que ninguém mais irá nos querer (afinal, vejam como somos representadxs na mídia, como nossos corpos são ojerizados), que muitas vezes dizemos sim quando queremos dizer não. Há um conceito sobre isso chamado Manufactured Consent que em tradução livre significa Consentimento Fabricado. Em poucas palavras, quer dizer que às vezes cedemos por cansaço, por convencimento(s), por que achamos que ninguém mais irá nos querer etc. Mas cedemos, e “ceder” não é consentimento - é você “aceitar mesmo não querendo”. E nessa situação qual prazer tiramos disso? Eu já passei por isso e me arrependi de todas as vezes que disse sim querendo dizer não. Não nos enganemos: isso também é estupro.

Mulheres trans*, precisamos retomar nossa autonomia sobre nossos corpos. Eu sei, é difícil, eu mesma também não consigo sempre, pois o fantasma da baixa estima me ronda como ronda a todxs nós. Mas não podemos dar ao Outro (mais) poder sobre nossos corpos. Queremos ter o direito de não gostar de sexo anal e não fazê-lo, afinal sexo é muito mais do que isso! Queremos ter o direito de não fazermos sexo de forma alguma. Queremos ditar nossas regras sobre o que NOS dá prazer e não o contrário. E quem não entende isso não é um/umx parceirx que queremos, porque não irá ter nenhum cuidado com nossos corpos.

E como eu costumo dizer por aí: WE ARE GOLDEN!² ;)

¹ Literalmente “direito”, nesse sentido significa a ideia machista de que homens têm “direito” a mulheres e isso configura, a meu ver, uma das raízes da cultura do estupro.

² Frase famosa do Mika da música e videoclipe “We are golden”.

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Sou mulher?

Estava olhando para minha minibiografia na página “Quem Faz”, deste site: “Mulher trans* e transfeminista em constante processo de transição e autodescoberta”. Leio novamente, e meus olhos se detêm na minha autodescrição: “Mulher trans*”. Releio novamente: “Mulher”. Sou mulher?

Há tempos tenho me questionado sobre minha identidade de gênero. Eu sou realmente uma mulher? Olho para minha foto, ao lado da minibiografia. Ela já é antiga. Na ocasião que a tirei eu estava muito feliz: eu me sentia uma mulher. Hoje, me sinto lutando diariamente para me sentir uma mulher.

Já antes da minha transição, me livrei das ilusões e fantasias sobre me tornar uma mulher linda e maravilhosa tal qual uma larva que ao sair de seu casulo se transformou numa borboleta, e entendi que, por mais que fizesse terapia hormonal e passasse pela CRS minha condição transgênera seria sempre óbvia e exposta, e eu talvez nunca fosse vista pelas pessoas como mulher, por toda a minha vida. As mudanças que buscaria seriam apenas para meu próprio bem-estar pessoal. Apenas eu mudaria, e não o mundo ao meu redor.

Fiz as contas e concluí que, tendo minha condição transgênera eternamente exposta, seria alvo de preconceito e ofensas, e precisava encontrar uma forma de lidar com isso. Tentei “aprender” a lidar com reações negativas por, no início da minha transição, enquanto ainda me apresentava como homem perante a sociedade, transgredir aquela imagem masculina que eu deveria seguir. Passei a usar batom, sapatilhas, lenços e outros acessórios “femininos”. Nessa época criei meus mecanismos para lidar com os olhares reprovadores e condenadores, as piadinhas, e os cochichos.

Esporadicamente me vesti e me apresentei como mulher, em público e em plena luz do dia. Eu não buscava ser lida como mulher pela sociedade porque, na minha cabeça, não tinha a menor chance de conseguir isso. Ao invés disso, me acostumei a fazer disso mais uma transgressão da imagem masculina que eu mesma via no meu corpo, e a fazer dessa transgressão minha forma de autoafirmação da minha identidade de gênero feminina. Usei o que tinha aprendido de minhas experiências anteriores para lidar com o preconceito.

Enfim, tive que fazer várias viagens de avião num intervalo curto de tempo, e coloquei um maior “empenho” em me apresentar como mulher. Aparentemente esse empenho foi “recompensado”: as pessoas me viam como mulher, ao menos até o momento que ouvissem a minha voz, e arregalassem os olhos de susto. Me chamavam de “moça” ou “senhora”, mesmo olhando diretamente na minha cara! Eu fiquei muito, muito feliz na ocasião.

Foi pouco depois disso que tirei a foto citada acima. Por isso estava tão feliz: tinha conseguido fazer minha imagem corresponder à minha identidade de gênero. Estava tão confiante na época, que passei a expressar publicamente minha identidade de gênero feminina em espaços desconhecidos. Até mesmo tive coragem para usar o banheiro feminino em locais públicos. Foi nessa ocasião que passei a viver como mulher em full time, isto é, não mais me apresentava esporadicamente como mulher ao sair na rua. Agora, eu realmente vivia como mulher, para mim mesma e para a sociedade, em casa, na rua, no trabalho… 24 horas por dia. E tenho vivido assim, há alguns meses.

Eu cheguei a pensar que minha passabilidade como mulher cis aumentaria com o tempo. Hoje, meses depois, percebi que não. Ao contrário, tem sido mais difícil hoje, do que naquela época, em que tinha muito menos chances de conseguir isso. Por algum tempo fiquei me perguntando o que eu estava fazendo errado. Por fim, me dei conta de um problema sério que deixei surgir durante a autodescoberta e construção da minha identidade feminina: ao contrário da época que era “transgressora”, em que me apegava à crença de que era uma mulher, independente da minha aparência e das opiniões alheias, eu passei a medir o quanto sou mulher em função do reconhecimento da sociedade. No passado, eu não esperava por esse reconhecimento. Lidava diariamente com a desvalidação da minha identidade feminina, e nas ocasiões que fui passável, como eu realmente não estava esperando por isso, essa “validação” veio como uma agradável surpresa. Porém, quando passei a viver como mulher em tempo integral, passei a procurar ativamente por essa passabilidade, por essa validação. Meu sensor interno, que identifica quando não estou conseguindo ser passável como mulher cis, antes permanecia desligado, mas agora está ativado e no máximo. Simplesmente estou mais atenta às situações cotidianas em que minha identidade de gênero feminina é invalidada. É como sempre foi – só fiquei mais sensível e perceptiva.

Me sinto mulher, mas parece que minha “feminilidade”, seja lá o que isso for, é como uma fantasia que tiro, todos os dias, ao voltar do trabalho: ao remover os sapatos, o vestido, o modelador, a peruca, a maquiagem e os acessórios, o que sobra? A resposta incômoda, que tem me atormentado há tempos, é: um corpo masculino. Nada mais. Sim, desde meu contato com o Transfeminismo, sei que não é um corpo que faz de alguém uma mulher, mas o que há de intangível por dentro: a personalidade, a identidade. Apesar de ter abraçado essa verdade como boia de salvação, ainda tenho que lidar com esses sentimentos todos os dias.

Quando venço essa luta diária para ser vista como mulher, a recompensa é deixar de ter homens rindo de mim por ser um “homem travestido”, para ter mulheres rindo de mim porque me acham gorda, feia, com cabelo ruim, mal vestida – enfim, por ser uma mulher feia. É nessa hora que sinto falta dos privilégios masculinos que já tive, principalmente do privilégio de não ser medida pela minha aparência. No fim, a pressão conjunta de ser passável como mulher cis, e daí sofrer opressão machista para me encaixar num determinado padrão de beleza e ser medida por isso, me sobrecarregou, e me derrubou, por mais que eu tenha tentando estar pronta, emocionalmente e psicologicamente, para quando isso acontecesse.

No inicio da minha transição, estava convicta que preferia mil vezes ser uma mulher feia, do que passar o resto da vida como homem. Hoje? Bom… eu fui levada a experimentar as consequências de me apresentar e ser lida como mulher, e acabei revendo esse conceito. Mas, no final das contas, concluí que sim, eu não poderia estar vivendo de outra forma, e não deixarei de expressar e defender minha identidade de gênero feminina, de forma alguma. Deixar de fazer isso seria a morte. Sou mulher? Sim, sou mulher. E, em adição à opressão que já sofro por ser uma pessoa transgênera, também sou oprimida por ser mulher. Vou me lembrar disso da próxima vez que eu me questionar se sou mulher.

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Violência Contra a Mulher também é Violência Discursiva

Muitas vezes (e/ou constantemente se você é um/uma leitor@ de blogs e jornais alternativos também) lemos nos jornais e blogs sobre casos de violência física contra mulheres (cis): estupros, assassinatos, espancamentos (dentro ou fora do ambiente doméstico) etc.

Muitos desses atos eu considero o ‘efeito’ ou a ‘prática’ de algo muito maior que está por trás embasando tudo isso; a ideologia machista, que como já sabemos produz efeito desumanizador da mulher garantindo assim sua subordinação como sujeito de categoria inferior na hierarquia das classes sociais. Porém para essa ideologia operar, ela irá encontrar na linguagem um lugar privilegiado para funcionar, através do que um teórico da linguística de nome Althusser chamou de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Esses AIE’s, seriam o meio pelo qual (digamos, a ‘ferramenta’), a ideologia opera (não só a machista, mas a ideologia em seu sentido amplo). Os AIE’s apareceriam na forma das instituições regulatórias, como a Escola, a Igreja, a Família e eu diria a Clínica (discurso médico; biopoder), a Politica (retórica política), e o próprio Estado em si.

Na base da violência física, a violência de origem ideológica, que opera atraves de AIE’s que por sua vez utilizam-se de discursos para regular e fazer a manutenção da ideologia. Dessa forma temos então discursos violentos machistas promovendo a manutenção do patriarcado. Todo discurso é por si mesmo violento porque não existe igualdade entre os sujeitos do discurso, por exemplo entre um locutor e um interlocutor sempre um discurso exercerá uma função de dominação sob o outro, e nunca haverá neutralidade, mas sempre relação de subordinação.

Dentro desse contexto, já podemos excluir obviamente a hipótese de que o discurso jornalístico poderia ser de algum modo remotamente neutro. Já sabemos que não o é, e adota posições de acordo com os sujeitos que escrevem a matéria, o editor que edita, posição ideológica-histórica do jornal, recorte que o jornal faz para incluir determinado assunto e não outro etc.

É por isso que nesse Dia de Eliminação da Violência Contra a Mulher lutaremos também contra a violência discursiva machista. Já falei em outro post sobre alguns xingamentos machistas, mas aquilo foi apenas um pequeno recorte.

Pensemos então. Quando usarmos xingamentos machistas, apagarmos as identidades femininas, usarmos pronomes masculinos quando poderíamos ter usado também femininos, quando desconsiderarmos a opinião de uma mulher apenas por ser mulher, enfim, quando utilizarmos de machismo em nossos discursos, vamos pensar na força desses discursos. Sim, porque o discurso machista tem sua força, e também seus efeitos; seu reforço promove a violência constante que vemos no dia a dia; o silenciamento ante a violência doméstica; a falta de solidariedade para com mulheres que sofreram abusos sexuais e/ou estupros; a desconsideração das opiniões e reivindicações de uma e/ou um grupo de mulheres; a arbitrariedade e falta de consideração em que se julga o feminicídio e dão o nome de “crime passional” mascarando sua real raiz que é o machismo, etc.

Seguem abaixo alguns links sobre o Dia da Eliminação da Violência contra a Mulher:

http://blogueirasfeministas.com/2011/11/violencia-inclusao-espacos-politicos/

http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2011/11/25/dia-internacional-pela-eliminacao-da-violencia-contra-as-mulheres/

http://pimentacomlimao.wordpress.com/2011/06/09/sobre-os-feminicidios/

http://www.audaciadaschicas.com/2011/11/pelo-fim-da-violencia-contra-as.html

http://feminismo.org/2011/11/contra-toda-mostra-de-patriarcado-tolerancia-zero/

http://www.adrianatorres.com.br/viajando-na-maionese/blogagem-coletiva-fimdaviolenciacontramulher.html

http://madrid.tomalaplaza.net/2011/11/24/comunicado-25-noviembre-2011-dia-internacional-contra-las-violencias-machistas/

http://brizas.wordpress.com/2011/11/15/25-de-noviembre-dia-internacional-contra-la-violencia-de-genero/

http://pimentacomlimao.wordpress.com/2011/11/18/feministas-em-ativismo-online-pelo-fim-da-violencia-contra-a-mulher-ii/

http://www.diarioliberdade.org/index.php?option=com_content&view=article&id=21823:o-machismo-nos-espacos-politicos-da-esquerda-socialista-brasileira&catid=315:a-segunda-luta&Itemid=21

EDIT:

Mais postagens:

http://foifeitopraisso.blogspot.com/2011/11/sorte-sua-que-e-perseguida-por-um.html

http://www.rubensjardim.com/blog.php?idb=29665

http://colunaecletica.wordpress.com/2011/11/25/voce-faz-a-sua-parte/

http://cynthiasemiramis.org/2011/11/25/seguranca-publica-politicas-publicas-e-violencia-contra-mulheres/

http://mayroses.wordpress.com/2011/11/25/mulheres-indigenas-violencia-opressao-e-resistencia/

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