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Sara, por Sara (e mais ninguém)

Hoje temos a participação de Sara Jhones, com seu relato. Devemos proporcionar um espaço para que nós, pessoas trans*, possamos ter nossas vozes ouvidas e publicizadas. Precisamos de mais relatos como esse aqui no transfeminismo. Precisamos também, sobretudo, garantir através dessas “novas” vozes, a construção contínua de diálogos entre nós mesmxs, tanto para discutirmos questões mais teóricas como para garantir nossa própria sobrevivência física e emocional. Porque nós sabemos que para nós, não existe o privilégio de pensarmos as teorias separadas das práticas (de resistência, já adianto).

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Meu nome é Sara e sou uma mulher trans*

Venho nesse momento expor alguns fatores que fazem parte da minha história/vivência enquanto pessoa trans*.

O “ser mulher” e “ser homem” sempre me foi ensinado tanto no núcleo familiar em que cresci (assim como na maioria dos lares brasileiros), quanto nas escolas que frequentei e a todo o tempo, pelas pessoas que conheci. Pessoas cisgêneras que faziam questão de separar muito bem o gênero, assim como as cores, brinquedos, brincadeiras, roupas, hábitos, comportamentos e costumes. Não questionava, pois pensava: “Acho que ninguém gosta de ser homem”. Impressionava-me constantemente com a forma de pensar dos meninos e tentava ao máximo compreender o que motivava os pensamentos parecidos, sendo que sentia só o meu ser completamente diferente. Procurava sempre fazer amizade com outras garotas, para ter com quem compartilhar ideias e pensamentos parecidos, mas na hora de formar a fila para cantar o hino nacional ou para passeios da escola, sempre me colocavam na fila errada. Cresci de certa forma “conformada” com a situação, pois não era apenas a minha família ou funcionários da escola que “supervisionavam” a minha adequação ao gênero designado, mas a sociedade como um todo. E isso é algo realmente infeliz de se perceber aos 7/8 anos de idade. Parecia a sociedade protegendo-me da própria sociedade, como se me dissessem aos sussurros: “Faça isso, para que nós não te punamos e consigas viver em paz”. Pensava que queriam o “meu bem”, mesmo que o “meu bem” não me fizesse bem.

Não estou replicando aquela história: “Quando eu era criança gostava de brincar de boneca e não de carrinho”, estou dizendo que a não similaridade com o gênero masculino sempre me foi bastante nítida. E se há algo que me lembra isso é o fato de que adorava subir no palco da escola todos os dias na hora do *recreio* para cantar as músicas de “Sandy&Junior” (obviamente só cantava as partes da Sandy rsrs).

Não tive uma infância sofrida nem com episódios de automutilação como muitos psicólogos e psiquiatras adorariam que fosse para inserir no meu prontuário médico e dessa forma compor um diagnóstico de “transsexualismo irrefutável”. Um caso fácil. CID 10 F 64.0 na ficha médica e pronto.

Por sorte, e MUITA sorte faço hoje acompanhamento com uma excelente ginecologista que acima de tudo leva em consideração minha intenção com tratamento hormonal e objetivos reais. Que não me tratou como um objeto a ser estudado ou me trouxe formulários pré-estabelecidos para hormonização pré-cirúrgica, afinal, muitos médicos nem nos questionam a intenção da hormonoterapia e pensam que todas as pessoas trans* obrigatoriamente fazem seu uso com fins de redesignação sexual,*mesmo que a hormonização seja totalmente desnecessária para a realização da mesma*, mas o protocolo adotado exige hormonoterapia, então uma trans (que não é o meu caso) que deseja realizá-la terá de seguir o protocolo querendo ou não.

Protocolos, normas, regras, exigências, paramentos, métricas, processos, tratamentos.

Chegamos a um ponto e na verdade nunca saímos dele, de que se pessoas cisgêneras nos dizem que devemos ser atestadas(os) como doentes para nos tratarem, tudo bem. Se precisamos de laudos, provas e tudo mais que nos identifiquem possuidoras(es) de transtorno mental/comportamental necessários à retificação dos documentos, faremos o quê? Colocaremos-nos mais uma vez nas mãos de um (cis)tema que nos obriga a pedir permissão de existir. Se um erro aconteceu no momento do nascimento por avaliação da morfologia genital, não nos dão o direito de corrigir esse erro. Não nos dão o direito de corrigir sem depender de uma pessoa cisgênera para dar ou não a permissão para que isso ocorra, para ter minha vida em meu poder. Não nos dão direitos simplesmente.

Não só param aí as decisões tomadas por nós, pois mesmo nas relações permeadas pelo “teórico” afeto, também se vê a sobreposição de poder, quando homens cis héteros dizem para mulheres trans*: “Gostei de você, quero você”. Como se a decisão fosse a deles, nunca a nossa, pois na nossa cultura não deveríamos “escolher” e já seria um verdadeiro “milagre” atrairmos uma pessoa sem ela estar bêbada ou sem a enganarmos escondendo nossa “verdadeira identidade” (identidade essa que não se verifica psiquicamente mas compulsoriamente). Não é inteligível nem aceitável nossa opção de revelar ou não nossa condição trans*, afinal, o mundo precisa saber e se defender de nós, que existimos para “enganar”, né? E precisamos ser resumidas(dos) a um genital, para tornar as coisas simples, muito simples, o mais simples possível até chegar no religioso e científico “macho” e “fêmea” que tantos discursos transfóbicos amam se sustentar.

Parem com isso. Devem-nos o direito de decidirmos por nós mesm@s, de corrigir erros que não fomos nós quem cometemos, de decidir o que fazer com nossos corpos, de decidir o que fazer com nossas vidas! Não vou pedir permissão para existir assim como não vou pedir permissão para me aceitar! Não irei faltar-lhes com respeito, porém não vou permitir que me subjuguem ou que me resumam, pois não posso ser resumida, principalmente não irei ser resumida a um órgão, a um gênero que não me define, nem a um monte de conceitos cisnormativos que me impuseram.

Se não tivesse meus cabelos longos “de mulher”, minhas saias “de mulher”, meus sapatos “de mulher”, meu rosto “de mulher”, seria “mulher” mesmo assim. Podem me tirar e negar o que não tenho. Mas não podem tirar minha essência, minha alma e minha vida, pois senhoras e senhores CIS, sinto informá-los, mas são puramente e naturalmente “de mulher”.

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justo

Esta é uma tradução do texto “fair”, publicado originalmente no site Taking Steps, que pode ser lido neste link.

Então eu gostaria que você imaginasse algo. Vai ser bastante ruim, e provavelmente trará recordações ruins para algumas pessoas. Se você não deseja correr este risco, tome cuidado e pare de ler neste momento.

A primeira coisa que você precisa entender é que masculinidade, virilidade, são inculcadas e reforçadas através de violência. Tanto através de violência real, quanto pela ameaça de violência, ou pela ameaça implícita de violência. De forma constante. É assim que homens e meninos são ensinados a treinar a masculinidade uns dos outros. Isso é verdade mesmo na tenra idade; apenas vá a um parquinho de qualquer creche, e você verá meninos moldando a masculinidade uns dos outros, de acordo com as regras que lhes foram ensinadas por garotos mais velhos e por homens adultos, através de violência. Esse processo começa bem cedo.

Agora pegue uma garotinha e jogue-a nesse grupo de meninos. Deixe-a à mercê deles com uma única instrução: “Façam com ela o que acharem melhor. Moldem ela da forma que vocês desejarem. O seu bisturi é a violência.”. Imagine isso por um minuto: a imagem de uma menininha que ainda não entende o mundo sendo entregue para um grupo de garotos que recebem carta branca para usar violência para moldá-la no que quer que eles achem apropriado.

É uma imagem apavorante. É hedionda, perturbadora e errada e só de pensar nisso eu tenho calafrios. E é assim que nós, enquanto sociedade, devemos reagir; se algo semelhante a isso acontecer e vier a público, deve haver manchetes nos jornais.

Isso acontece todo dia. Toda hora. Mas enquanto qualquer pessoa decente automaticamente acharia este cenário maligno e chocante quando a garotinha que nós imaginamos é cisgênera, isso é considerado normal e a forma correta de tratar uma garotinha que é transgênera. Eu sabia que eu era uma menina já cedo; eu fui expulsa da pré-escola por me recusar a aceitar que fosse um garoto. E então eles entregaram aquela garotinha para os meninos pelos próximos quinze anos e disseram: “Façam com ela o que acharem melhor. Nós faremos vista grossa e incentivaremos à medida que vocês transformarem ela no que vocês desejarem. Seu bisturi é a violência. Só é apropriado se ela gritar”.

Essa é uma história aterrorizante. Este é o tipo de história que, se você pensar bem, representa o tipo de abuso que a pessoa comum responderia com: “Prendam esse criminoso doentio e joguem a chave fora”. Se fosse uma garota cis. Se ela for trans, as coisas apenas estão acontecendo como deveriam. Não há censura. Há aplausos.

Essa é uma das faces nuas e descobertas da opressão: se fosse feito com uma pessoa privilegiada, seria considerado abuso. Se é feito com uma pessoa marginalizada, é status quo. Mas não é só isso. Não se trata apenas da opressão; é sobre a como e por que nós internalizamos a opressão.

É uma história horrível. É o tipo de história que ameaçaria destruir a sua mente se fosse a sua história. E você tem que se proteger de alguma forma. Você precisa se manter de pé. Você tem que dar sentido à tudo isso. Porque um mundo em que algo assim pode ser feito com uma criancinha que nunca fez nada de mal à ninguém, que sequer é madura o bastante para entender porque ela está sendo ferida deste jeito até mesmo pelos pais até chegar no ponto em que nenhum local é seguro, não é um mundo legal. Não é um mundo que, penso eu, a maioria de nós, incluindo eu, seria forte o bastante para encarar como real. Então nós nos defendemos por acreditar no que nos falam.

Eu deixei o mundo mentir para mim. Eu me deixei acreditar que eu era tão ruim, errada e monstruosa e que eu merecia o que acontecia comigo, que até mesmo deixei que alguém me estuprasse [em inglês] apenas porque eu desejava desesperadamente que ser tocada, porque até mesmo abuso era mais proximidade do que eu acreditava merecer. Eu me deixei absorver a idéia de que eu estava completamente iludida, e que todo meu conhecimento sobre mim era um contorcionismo falacioso de uma mente doentia, porque a alternativa àquela mentira dolorosa, a mentira de que eu era um monstro vivendo em um mundo de fantasia, uma aberração indigna de receber amor? A alternativa era pior. A alternativa era que eu não merecia passar por aquilo, que eu não era repugnante nem indigna de receber amor, que eu era uma criança colocada em uma situação abusiva e forçada a permanecer dela sem qualquer justificativa. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade, quando era criança. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade quando era uma adolescente que não conseguia dormir, que treinava em um saco de pancadas todos os dias após a escola até que as mãos sangrassem, que passou cada dia pensando em formas novas e limpas de abandonar a vida. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade quando era uma colegial que foi exotificada, ridicularizada e tratada como um brinquedo sexual pornográfico e contaminado indigna de qualquer tipo de proximidade que não tivesse tons de “suja” ou “pervertida”, e que não podia abraçar pessoas ou dizer “eu te amo” sem temer que me achassem assustadora.

Eu não era forte o bastante para aceitar a verdade de o quanto eu era forte. Reconhecer e me apoderar da minha imensa força significava reconhecer que eu estava carregando um fardo imenso todo o tempo, que eu estava passando por sofrimento e não por uma vida normal, a ordem natural das coisas. O que eu não era forte o bastante para aceitar era que eu era uma criança boa, uma criança forte, uma criança corajosa, porque isso exigiria admitir que eu estava passando por algo que exigia virtude, força, e coragem, algo que poderia inspirar um documentário televisivo sobre resiliência humana se acontecesse a uma pessoa considerada real pela sociedade. Aceitar que não havia nada errado comigo, e até mesmo que eu era bela, significava aceitar que tudo aquilo que eu passava na escola e em casa, ao invés de normal e bom, era um show de horrores.

Então eu acreditei nas mentiras. Eu deixei que me convencessem durante boa parte da minha adolescência que eu era, realmente, um menino. A idéia me enojava e me aterrorizava, mas não tanto quanto a verdade, de que eu estava certa, de que eu era digna da minha própria confiança, de que não era minha culpa. Era melhor viver em um mundo em que eu era um menino — ou até mesmo um menino que desejava se tornar uma mulher algum dia — e que vivia uma vida normal, do que um mundo em que eu era uma garota que foi sistematicamente privada de se seu senso de si mesma, de sua realidade subjetiva, e de sua personalidade, sujeitada à constante violência ou ameaça de violência, e tratada como uma coisa contaminada e suja. A mentira — até mesmo a mentira de “menino que quer ser menina” ou “mulher em corpo de homem”, como se meu corpo pertencesse a alguma outra pessoa — por mais dolorosa que fosse, não era tão dolorosa quanto a verdade de ser uma garota tentando encontrar seu caminho para se tornar uma mulher e tendo que passar por isso no meio do caminho.

É assim nós internalizamos as mentiras. É dessa forma que nós aceitamos o jugo da opressão. Por viver em um mundo em que a verdade de que nós somos belas, que temos valor e que merecemos receber amor é mais dolorosa do que aceitar a mentira de que não somos nada disso, porque todo o senso de justiça ou ordem desaparece quando você olha para a verdade. Se nós somos belas, então nós estamos em um mundo que não se importa com a bossa beleza, e que até mesmo a joga na lama. Se nós somos fortes, então nós estamos vivendo em um mundo tão pesado que suga nossa força até estarmos cansadas todo o tempo. Se nós somos nós mesmas, então nós estamos vivendo em um mundo que sistematicamente nos arranca a nossa individualidade como uma carne assada arrancada de seus ossos queimados.

Até que nós sejamos fortes o suficiente para encarar isso de frente e reagir, para ficar de pé e lutarmos e nos tornamos parte do mundo em que vivemos de forma melhor, não importa o quão difícil isso seja ou o que isso exija — até que nós sejamos bastante fortes para nos lembrarmos de que somos fortes, e belas, e verdadeiras, e que somos dignas de receber amor — a verdade é pesada demais para suportar. Então, ao invés disso nós aceitamos as histórias falsas, de que nós somos sujas, feias, fracas e indignas de amor. Nós precisamos acreditar nisso. Eu precisei acreditar nisso.

Eu estou escrevendo isso porque eu sei que daqui a uma hora, ou amanhã, ou semana que vem, eu vou dar ouvidos à essas mentiras novamente, durante um tempo. De que outra forma seria possível viver? Como você poderia viver no mundo sem aceitar que a injustiça é justa, ou que não é problema seu, só por um momento, só por um instante? Como você pode caminhar no mundo em que a verdade é verdadeira ao invés de cair em pedaços e chorar? Então nós internalizamos as mentiras por um momento para que as coisas possam fazer sentido o suficiente para que seja possível viver este dia até o fim. A gravidade te puxa confortavelmente para baixo. A alternativa, a verdade pura, vulnerável e pulsante só pode ser aceita em doses pequenas, ainda que maiores a cada dia. É difícil demais simplesmente deixar que tudo seja real. Como você poderia deixar tudo isso ser real? Como você pode realmente remover a cobertura, olhar para as trevas abaixo e deixar escapar a verdade — de que você vive em um mundo em que você não é considerada inteiramente verdadeira, inteiramente humana, e que se você fosse considerada verdadeira, o que fizeram com você seria considerado inaceitável e nauseantes, mas você não é considerada verdadeira e o que fizeram com você é considerado aceitável?

Você precisa contar para si mesma aquelas histórias. Apenas por um momento. Apenas até que você esteja forte o bastante para suportar o peso da verdade e ver com clareza, se você conseguir alcançar essa força. Apenas até que você esteja repleta de coragem e força esmagadoras e que você possa finalmente insistir que é digna de amor e de ser amada, de que cada célula de seu corpo merece isso, de que beleza brilha através de você como uma gloriosa chama ardente. Quando você está de pé, resplandecendo maravilhosa e intimidadora, você pode mover o mundo. Você só precisa atravessar a dor de você é verdadeira, de que você sabe, de que você é tudo que precisa ser.

Dói dizer isso, e dói ouvir: você é digna de receber amor. Eu também. O abismo entre a verdade e o mundo em que nós nos permitimos viver a cada dia é escuro e profundo, mas ainda assim é a verdade e sempre será.

Você é tudo que você sempre esperou se tornar um dia, e eu amo você. Quando você for forte o bastante, por favor, brilhe.

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Tropos Transfóbicos Nº 7 - Socialização infantil

[N.T. As siglas utilizadas no texto foram traduzidas e estão devidamente explicadas no fim do texto. Os grifos em itálico são da autora; os grifos em negrito são da tradutora].

Por Lisa Harney

Tradução: Hailey Kaas

Eu escrevi isso em algum outro lugar, como resposta a uma questão sobre homens trans e privilégio masculino. A resposta, em específico, se dirigia para alguém que sugeriu que homens trans não recebem privilégio masculino por que são aparentemente socializados como meninas e treinados para serem mulheres. Com isso em vista, a maior parte desse texto é uma resposta a esses comentários.

Além disso, coloquei links para o little light’s Fair [blog em inglês] e para um artigo sobre sexismo e pessoas trans [em inglês] relacionado com as experiências da Dra. Joan Roughgarden e do Dr. Ben Barres no que diz respeito à transição, privilégio masculino e sexismo.

A questão da socialização é um daqueles tópicos de discussão bizantina e perda de tempo, e focar-se na socialização como se todxs fôssemos programadxs como pequenos computadores na infância durante nosso crescimento, como se a socialização de gênero fosse direcionada a nós como mísseis teleguiados, e que crianças CAFAB [Coercitivamente designadx mulher ao nascer - CODEMAN] recebem apenas socialização direcionada para meninas e crianças CAMAB [Coercitivamente designadx homem ao nascer - CODEHAN] recebem apenas socialização direcionada para meninos, e todxs nós trans somos, então, como pessoas cis compartilhando nossa CASAB [Socialização Coercitivamente designadx ao nascer - SOCDAN] até o dia que começamos a transicionar.

Isso não só não é verdade como também é irrelevante. Nessa linha, pode-se argumentar também que deus implantou instruções no seu cérebro acerca do seu gênero.

Primeiramente, eu argumentaria que a natureza da socialização muda ao longo do tempo. Por exemplo, eu duvido que uma criança de dois anos esteja sendo socializada para apoiar cultura do estupro. Eu suspeito que a maioria da socialização nesse caso envolva treinamento para ir ao banheiro, brincadeiras e assistir a vídeos infantis. Claro, pode-se argumentar que está na cultura - e de fato está. Mas isso é algo que ambas as crianças CODEHAN e CODEMAN recebem. A única diferença é se as crianças se percebem ou não como alvos de atitudes que estão por trás dessa socialização. Ate porque os homens não mantêm uma patente exclusiva sob culpabilização das vítimas mulheres para casos de estupro ou violência doméstica, não é mesmo?

Todxs somos socializadxs para uma cultura machista. Somos ensinadxs que ser homem significa X e que ser mulher, Y. Não há um “lá fora” para nenhum de nós. Mulheres, assim como homens, são socializadas para serem machistas.

A discussão sobre o que essa socialização significa, no entanto, sempre coloca crianças (e eventualmente pré-adolescentes, e depois adolescentes) como receptorxs passivxs que nunca reagem àquela socialização. Nós nem discutimos se as crianças que recebem essas mensagens percebem-se como o alvo, o instigador ou ambos. Não falamos sobre o que essas mensagens significam para crianças trans que podem não se perceber como possuindo um gênero, ou podem se perceber como possuindo um gênero que difere de sua SOCDAN.

Por exemplo, eu vi várias mulheres cis presumindo que meninas trans quando eram crianças e adolescentes, interagiram com imagens de ideal de beleza (modelos ou capas de revista, por exemplo) da mesma forma que meninos cis, e não percebem que esse ideal tem um grande impacto sobre nós e nossa autoimagem, e que isso combinado com disforias de corpo/gênero é uma das razões pelas quais somos potenciais suicidas. Eu conheço várias mulheres trans que na pré-transição desenvolveram diversas compulsões alimentares com o objetivo de desenvolver uma aparência mais feminina.

Socialização não é um privilégio. É um meio pelo qual o privilégio é perpetuado. Privilégio é baseado em várias coisas, a maioria relaciona-se em como você é percebidx e como outras pessoas te tratam. Homens trans que passam como cis recebem privilégio masculino. Muitos homens trans que nem sempre passam como cis recebem privilégio masculino, dependendo da situação e contexto.

Da mesma forma, mulheres trans durante ou depois da transição que passam como cis, não recebem privilégio masculino. Mas mulheres trans que são lidas como trans também não recebem privilégio masculino, em nenhum contexto, no geral. Ser uma mulher trans não é algo sustentado culturalmente, porque ser mulher não é algo sustentado culturalmente da mesma forma que ser um homem é sustentado culturalmente, e parece que em vários (mas não em todos) contextos, homens trans recebem um “passe-livre” em coisas que mulheres trans não, muitas vezes de forma explícita. Eu já ouvi Adam Carolla dizer isso explicitamente no Lovelines mais de uma vez, anos atrás. Eu ouvi feministas cis (feministas radicais e outras de linhas diferentes) fazerem caracterizações grosseiras acerca de mulheres trans e caracterizações mais amenas de homens trans, enquanto eram transfóbicas com ambxs. Eu ouvi homens trans falarem coisas do tipo.

Não estou argumentando aqui que homens trans recebem coisas boas para todo o sempre e que mulheres trans recebem só coisas ruins sempre, mas sim que existe um privilégio em ser vistx como alguém indo em direção à masculinidade (de acordo com perspectivas cis) comparado com ser vistx como alguém indo em direção à feminilidade (novamente, de acordo com perspectivas cis) e a socialização não é o fator central em ambos os casos.

Eu gostaria de completar que nós não discutimos as pressões diárias em relação à conformidade de gênero e à cisnormatividade, em relação às narrativas corretas, em relação ao cumprimento das expectativas das pessoas cis no que diz respeito a como homens e mulheres devem ser, e como isso nos afeta diariamente.

Poder - nesse caso sexismo, heterossexismo, cissexismo - se normatiza através da constante execução, e as mulheres - tanto cis quanto trans - estão sempre falhando na feminilidade. Para as mulheres trans, essa falha perceptível tem consequências (cissexistas) mais severas e padrões de imposição mais altos. Mulheres trans que são muito femininas são ridicularizadas por tentarem demais, e por isso são consideradas, na verdade, homens. Mulheres trans que não são femininas o suficiente ou mesmo as que são masculinas, são ridicularizadas por não tentarem o suficiente, e por isso são consideradas, na verdade, homens. Mulheres trans que são lésbicas são ridicularizadas por falharem em sua “condição de ser mulher”, porque as expectativas são que mulheres se atraiam por homens.

Os psiquiatras nos dão dress codes e maneiras de se comportar. Nós damos a eles as histórias que eles desejam ouvir - cisnormativas, heteronormativas, narrativas que estabelecem nossos gêneros como estáticos. Várias vezes nós cumprimos de fato um dress code apenas para sermos atendidas dentro de nossa condição trans. Mulheres trans são disciplinadas nos modos de se vestir, no comportamento e orientação, assim como qualquer outra mulher cis, e as penalidades podem ser desde violência, negação de atendimento médico necessário, até o erro ou apagamento dos nossos pronomes e/ou gêneros de forma constante e maldosa. Quando passamos como cis, o melhor que recebemos é machismo e os julgamentos a partir dos olhares masculinos. Não importa se estamos nos comportando com o que quer que sejam ou deveriam ser as tais “socializações masculinas” ou “direitos masculinos”, nós não estamos recebendo nenhum privilégio masculino. Nós somos mulheres, ou somos coisas sem gênero falhando tanto na “condição de ser mulher” quanto na de “ser homem”.

E, sabe, quando você lida com isso todos os dias isso irá te afetar. Eu fiz quatro anos de teatro no ensino médio, e nesse período eu aprendi como falar e projetar minha voz, e basicamente me fazer ouvida - eu era péssima nisso até que meu primeiro professor de teatro se colocou para me ensinar como fazer isso. No meu primeiro ano fora do ensino médio, eu morei com outra mulher trans que me criticava incansavelmente por “falar alto demais” e durante anos eu perdi tudo o que tinha conquistado. Não deu nem um mês até eu já estar falando bem baixo novamente. Não podemos subestimar o impacto do machismo diário ou do privilégio masculino, e como isso influencia na socialização independente da sua idade. E isso acontece com todas as mulheres adultas, nos policiam todos os dias em como ser mulher, dizem como devemos nos comportar, vestir, falar. Todo mundo faz isso - homens e mulheres - ambxs fazem isso com mulheres. Isso ocorre em todos os níveis. Está difundido.

Socialmente e culturalmente, homens são incentivados enquanto homens. Mulheres não são incentivadas enquanto mulheres. Sim, existe policiamento de gênero direcionado a homens, mas também existem coisas como o Old Spice Guy, que valoriza e apenas ridiculariza levemente a hipermasculinidade*. Mas olhem para os comerciais da Axe. Olhem para os filmes de ação. Os programas de TV de todos os tipos. As revistas. Olhem para tudo.

Isso está para além da transição. Os andaimes sociais para a identidade feminina que deveriam ajudar uma mulher trans a ser tornar uma mulher de acordo com as definições sociais, são estruturalmente o oposto de um apoio. O processo pelo qual você se torna mulher envolve tornar você um abjeto, ensinar que apoio é algo que mulheres não merecem; e isso é algo que mulheres trans têm dificuldade de se defender, pois ser trans também está envolvido num status de abjeção - seu sucesso é determinado através da aprovação de outrxs.

No entanto, embora homens trans também sejam policiados enquanto homens, e têm de cumprir com as narrativas trans e tentar ser “adequadamente” homens, ser homem é algo valorizado. A masculinidade (e considerando que homens são associados/relacionados com masculinidade) é valorizada e admirada, ao contrário da feminilidade e de ser mulher. Enquanto ser trans é, como eu disse previamente, um status de abjeção, ser homem é exaltado como algo bom, a melhor de todas as opções.

Esse contraste afeta homens e mulheres trans de diferentes formas. Homens trans recebem uma liberdade e respeito que mulheres trans não recebem. Isso acontece diariamente. Se você ganha $100 por dia, durante 30 dias, você esperaria ganhar esses $100 no dia 31? Ou você confiaria na experiência da sua infância, quando o dinheiro era mais apertado? E quanto a receber esse dinheiro por 365 dias? Você o esperaria no dia 366? Os sistemas imediatos de punição e recompensa superam os sistemas do passado?

Não é possível reduzir nossa socialização aos nossos primeiros 18 anos, primeiros 12 anos, aos nossos primeiros dois anos (como eu vi uma pessoa tentar fazer recentemente). Nós não podemos discutir pessoas trans e privilégio masculino de forma coerente enquanto tratamos pessoas trans como se fossem pessoas cis, enquanto ignoramos nossas vidas durante e após a transição, nos focando estritamente na pré-transição. Isso é cissexismo e direto sexismo – tentar excluir experiências inconvenientes à suposição de que mulheres trans são na realidade supostamente homens e homens trans são na realidade supostamente mulheres.

Nota: Eu não desejo que ninguém tire dessa postagem a ideia de que homens trans não experienciam sexismo. Eles experienciam sim, especialmente antes e durante a transição. Existem diferenças em como a misoginia se manifesta em relação a mulheres trans em virtude de como a interseção transfobia-misoginia difere para homens trans e mulheres trans.

*Nota²: Jane LaPlain aponta que essa parte está relacionada com brancura, nesse comentário [em inglês].

N.T. CAFAB: Em inglês: coercively assigned female at birth. Tradução: Coercitivamente designadx mulher ao nascer. A sigla correpondente é CODEMAN.

CAMAB: Coercively assigned male at birth. Tradução: Coercitivamente designadx homem ao nascer – CODEHAN.

CASAB: Em inglês: Coercively socialized at birth. Tradução: Socialização Coercitivamente designadx ao nascer – SOCDAN.

Texto original: http://www.questioningtransphobia.com/?p=2884

Agradeço Juno Cremonini e Nicholas Rizzaro pela ajuda na tradução.

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