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justo

Esta é uma tradução do texto “fair”, publicado originalmente no site Taking Steps, que pode ser lido neste link.

Então eu gostaria que você imaginasse algo. Vai ser bastante ruim, e provavelmente trará recordações ruins para algumas pessoas. Se você não deseja correr este risco, tome cuidado e pare de ler neste momento.

A primeira coisa que você precisa entender é que masculinidade, virilidade, são inculcadas e reforçadas através de violência. Tanto através de violência real, quanto pela ameaça de violência, ou pela ameaça implícita de violência. De forma constante. É assim que homens e meninos são ensinados a treinar a masculinidade uns dos outros. Isso é verdade mesmo na tenra idade; apenas vá a um parquinho de qualquer creche, e você verá meninos moldando a masculinidade uns dos outros, de acordo com as regras que lhes foram ensinadas por garotos mais velhos e por homens adultos, através de violência. Esse processo começa bem cedo.

Agora pegue uma garotinha e jogue-a nesse grupo de meninos. Deixe-a à mercê deles com uma única instrução: “Façam com ela o que acharem melhor. Moldem ela da forma que vocês desejarem. O seu bisturi é a violência.”. Imagine isso por um minuto: a imagem de uma menininha que ainda não entende o mundo sendo entregue para um grupo de garotos que recebem carta branca para usar violência para moldá-la no que quer que eles achem apropriado.

É uma imagem apavorante. É hedionda, perturbadora e errada e só de pensar nisso eu tenho calafrios. E é assim que nós, enquanto sociedade, devemos reagir; se algo semelhante a isso acontecer e vier a público, deve haver manchetes nos jornais.

Isso acontece todo dia. Toda hora. Mas enquanto qualquer pessoa decente automaticamente acharia este cenário maligno e chocante quando a garotinha que nós imaginamos é cisgênera, isso é considerado normal e a forma correta de tratar uma garotinha que é transgênera. Eu sabia que eu era uma menina já cedo; eu fui expulsa da pré-escola por me recusar a aceitar que fosse um garoto. E então eles entregaram aquela garotinha para os meninos pelos próximos quinze anos e disseram: “Façam com ela o que acharem melhor. Nós faremos vista grossa e incentivaremos à medida que vocês transformarem ela no que vocês desejarem. Seu bisturi é a violência. Só é apropriado se ela gritar”.

Essa é uma história aterrorizante. Este é o tipo de história que, se você pensar bem, representa o tipo de abuso que a pessoa comum responderia com: “Prendam esse criminoso doentio e joguem a chave fora”. Se fosse uma garota cis. Se ela for trans, as coisas apenas estão acontecendo como deveriam. Não há censura. Há aplausos.

Essa é uma das faces nuas e descobertas da opressão: se fosse feito com uma pessoa privilegiada, seria considerado abuso. Se é feito com uma pessoa marginalizada, é status quo. Mas não é só isso. Não se trata apenas da opressão; é sobre a como e por que nós internalizamos a opressão.

É uma história horrível. É o tipo de história que ameaçaria destruir a sua mente se fosse a sua história. E você tem que se proteger de alguma forma. Você precisa se manter de pé. Você tem que dar sentido à tudo isso. Porque um mundo em que algo assim pode ser feito com uma criancinha que nunca fez nada de mal à ninguém, que sequer é madura o bastante para entender porque ela está sendo ferida deste jeito até mesmo pelos pais até chegar no ponto em que nenhum local é seguro, não é um mundo legal. Não é um mundo que, penso eu, a maioria de nós, incluindo eu, seria forte o bastante para encarar como real. Então nós nos defendemos por acreditar no que nos falam.

Eu deixei o mundo mentir para mim. Eu me deixei acreditar que eu era tão ruim, errada e monstruosa e que eu merecia o que acontecia comigo, que até mesmo deixei que alguém me estuprasse [em inglês] apenas porque eu desejava desesperadamente que ser tocada, porque até mesmo abuso era mais proximidade do que eu acreditava merecer. Eu me deixei absorver a idéia de que eu estava completamente iludida, e que todo meu conhecimento sobre mim era um contorcionismo falacioso de uma mente doentia, porque a alternativa àquela mentira dolorosa, a mentira de que eu era um monstro vivendo em um mundo de fantasia, uma aberração indigna de receber amor? A alternativa era pior. A alternativa era que eu não merecia passar por aquilo, que eu não era repugnante nem indigna de receber amor, que eu era uma criança colocada em uma situação abusiva e forçada a permanecer dela sem qualquer justificativa. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade, quando era criança. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade quando era uma adolescente que não conseguia dormir, que treinava em um saco de pancadas todos os dias após a escola até que as mãos sangrassem, que passou cada dia pensando em formas novas e limpas de abandonar a vida. Eu não era forte o bastante para deixar isso ser verdade quando era uma colegial que foi exotificada, ridicularizada e tratada como um brinquedo sexual pornográfico e contaminado indigna de qualquer tipo de proximidade que não tivesse tons de “suja” ou “pervertida”, e que não podia abraçar pessoas ou dizer “eu te amo” sem temer que me achassem assustadora.

Eu não era forte o bastante para aceitar a verdade de o quanto eu era forte. Reconhecer e me apoderar da minha imensa força significava reconhecer que eu estava carregando um fardo imenso todo o tempo, que eu estava passando por sofrimento e não por uma vida normal, a ordem natural das coisas. O que eu não era forte o bastante para aceitar era que eu era uma criança boa, uma criança forte, uma criança corajosa, porque isso exigiria admitir que eu estava passando por algo que exigia virtude, força, e coragem, algo que poderia inspirar um documentário televisivo sobre resiliência humana se acontecesse a uma pessoa considerada real pela sociedade. Aceitar que não havia nada errado comigo, e até mesmo que eu era bela, significava aceitar que tudo aquilo que eu passava na escola e em casa, ao invés de normal e bom, era um show de horrores.

Então eu acreditei nas mentiras. Eu deixei que me convencessem durante boa parte da minha adolescência que eu era, realmente, um menino. A idéia me enojava e me aterrorizava, mas não tanto quanto a verdade, de que eu estava certa, de que eu era digna da minha própria confiança, de que não era minha culpa. Era melhor viver em um mundo em que eu era um menino — ou até mesmo um menino que desejava se tornar uma mulher algum dia — e que vivia uma vida normal, do que um mundo em que eu era uma garota que foi sistematicamente privada de se seu senso de si mesma, de sua realidade subjetiva, e de sua personalidade, sujeitada à constante violência ou ameaça de violência, e tratada como uma coisa contaminada e suja. A mentira — até mesmo a mentira de “menino que quer ser menina” ou “mulher em corpo de homem”, como se meu corpo pertencesse a alguma outra pessoa — por mais dolorosa que fosse, não era tão dolorosa quanto a verdade de ser uma garota tentando encontrar seu caminho para se tornar uma mulher e tendo que passar por isso no meio do caminho.

É assim nós internalizamos as mentiras. É dessa forma que nós aceitamos o jugo da opressão. Por viver em um mundo em que a verdade de que nós somos belas, que temos valor e que merecemos receber amor é mais dolorosa do que aceitar a mentira de que não somos nada disso, porque todo o senso de justiça ou ordem desaparece quando você olha para a verdade. Se nós somos belas, então nós estamos em um mundo que não se importa com a bossa beleza, e que até mesmo a joga na lama. Se nós somos fortes, então nós estamos vivendo em um mundo tão pesado que suga nossa força até estarmos cansadas todo o tempo. Se nós somos nós mesmas, então nós estamos vivendo em um mundo que sistematicamente nos arranca a nossa individualidade como uma carne assada arrancada de seus ossos queimados.

Até que nós sejamos fortes o suficiente para encarar isso de frente e reagir, para ficar de pé e lutarmos e nos tornamos parte do mundo em que vivemos de forma melhor, não importa o quão difícil isso seja ou o que isso exija — até que nós sejamos bastante fortes para nos lembrarmos de que somos fortes, e belas, e verdadeiras, e que somos dignas de receber amor — a verdade é pesada demais para suportar. Então, ao invés disso nós aceitamos as histórias falsas, de que nós somos sujas, feias, fracas e indignas de amor. Nós precisamos acreditar nisso. Eu precisei acreditar nisso.

Eu estou escrevendo isso porque eu sei que daqui a uma hora, ou amanhã, ou semana que vem, eu vou dar ouvidos à essas mentiras novamente, durante um tempo. De que outra forma seria possível viver? Como você poderia viver no mundo sem aceitar que a injustiça é justa, ou que não é problema seu, só por um momento, só por um instante? Como você pode caminhar no mundo em que a verdade é verdadeira ao invés de cair em pedaços e chorar? Então nós internalizamos as mentiras por um momento para que as coisas possam fazer sentido o suficiente para que seja possível viver este dia até o fim. A gravidade te puxa confortavelmente para baixo. A alternativa, a verdade pura, vulnerável e pulsante só pode ser aceita em doses pequenas, ainda que maiores a cada dia. É difícil demais simplesmente deixar que tudo seja real. Como você poderia deixar tudo isso ser real? Como você pode realmente remover a cobertura, olhar para as trevas abaixo e deixar escapar a verdade — de que você vive em um mundo em que você não é considerada inteiramente verdadeira, inteiramente humana, e que se você fosse considerada verdadeira, o que fizeram com você seria considerado inaceitável e nauseantes, mas você não é considerada verdadeira e o que fizeram com você é considerado aceitável?

Você precisa contar para si mesma aquelas histórias. Apenas por um momento. Apenas até que você esteja forte o bastante para suportar o peso da verdade e ver com clareza, se você conseguir alcançar essa força. Apenas até que você esteja repleta de coragem e força esmagadoras e que você possa finalmente insistir que é digna de amor e de ser amada, de que cada célula de seu corpo merece isso, de que beleza brilha através de você como uma gloriosa chama ardente. Quando você está de pé, resplandecendo maravilhosa e intimidadora, você pode mover o mundo. Você só precisa atravessar a dor de você é verdadeira, de que você sabe, de que você é tudo que precisa ser.

Dói dizer isso, e dói ouvir: você é digna de receber amor. Eu também. O abismo entre a verdade e o mundo em que nós nos permitimos viver a cada dia é escuro e profundo, mas ainda assim é a verdade e sempre será.

Você é tudo que você sempre esperou se tornar um dia, e eu amo você. Quando você for forte o bastante, por favor, brilhe.

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Uma sinfonia social: Os Quatro Movimentos da Transfobia na Teoria (Parte I)

Por Katherine Cross

Tradução: Viviane V.

[primeira parte da tradução do texto “A Social Symphony: The Four Movements of Transphobia in Theory”, disponível em http://bit.ly/142Wzes]

Somente para dar ares mais, digamos, ‘tropicais’ a esta tradução, inicio com Chico Buarque:

“Hoje você é quem manda

Falou, tá falado

Não tem discussão

A minha gente hoje anda

Falando de lado

E olhando pro chão, viu”

(Chico Buarque - Apesar de você)

Esta tradução é particularmente importante para mim, por ter me permitido compreender as razões pelas quais me foi tão difícil encontrar referências e abordagens críticas sobre questões trans* em alguns meios acadêmicos. Tendo vindo das ciências econômicas, e iniciado meus estudos destas questões a partir da participação em fóruns trans* e da leitura de pessoas autoras trans* (como Julia Serano, por exemplo) – principalmente por uma questão de sobrevivência, neste processo de autoidentificação de gênero –, incomodou-me que parte significativa da produção acadêmica com que tive contato não dialogasse com estas perspectivas.

O texto de Katherine Cross me permitiu articular estes incômodos de maneira crítica, e espero que possa servir a outras pessoas que se preocupem com questões políticas trans*, seja na academia, seja ‘fora’ dela. Esta tradução está dividida em duas partes.

* * *

img_vivi_texto

Analisando o lugar de pessoas trans* [nota da tradução (nt): transgender and transsexual people, no original] na teorização de várias disciplinas, podem-se encontrar diversas linhas comuns que articulam todo este projeto [nt: acadêmico]. As sociedades podem ser, com certa frequência, bastante confusas e, ainda assim, de forma paradoxal, podem ter nelas mecanismos identificáveis de operação que engendram certas forças sociais inexoravelmente adiante. Aonde pretendo chegar com isso? Quais são estas linhas comuns? Bem, com o indispensável apoio de uma renomada teorista social que é uma mulher trans*, acredito ter encontrado quatro.

Pessoas trans* não são o único grupo de pessoas tratadas de formas problemáticas pela teoria social e política; há muito a ser aprendido da análise de como paradigmas teóricos explicitamente excluíram outras pessoas marginalizadas. Em seu livro Southern Theory, a socióloga Raewyn Connell articula uma excelente exegese da teoria social ocidental que traz à tona suas premissas profundamente eurocêntricas, bem como o projeto colonial que a fundamenta. O mundo colonizado, ela diz, era somente uma mina de dados cujos números brutos seriam exportados à ‘metrópole’ (Europa e Estados Unidos) para produção teórica que trabalha na formação de uma visão definitiva da(s) pessoa(s) colonizada(s). Nesse sentido, a relação entre colonizador e colonizada não é diferente quando se considera a esfera acadêmica em oposição às esferas política ou industrial, por exemplo.

As relações com as maneiras através das quais pessoas acadêmicas conceituam e, principalmente, utilizam pessoas trans* ficam muito claras, aqui. Metáforas de colonização também são muito úteis para se discutirem dinâmicas sociais imensamente desiguais dentro de países ocidentais; histórias de apropriação e exploração certamente não se limitam ao ‘mundo em desenvolvimento’ [nt: majority world, no original], e ‘minas de dados’ podem ser encontradas na rua ao lado de onde estou [nt: a autora escreve do 'mundo desenvolvido'] bem como em Gana, Paquistão, ou na Austrália aborígene. O que é mais preocupante sobre tal teorização é que não somente ela se apropria, utiliza mal, e distorce as experiências da pessoa colonizada, mas em outras instâncias elas também são, como um todo, ignoradas (particularmente no tecer de teorias genéricas sobre a sociedade). Connell identificou quatro movimentos da academia colonialista que, segundo ela, caracterizam a maior parte dos intentos de teorização sobre a sociedade: a pretensão de universalidade, a leitura desde o centro, gestos de exclusão, e o grande apagamento. Passarei por cada um destes movimentos, discutindo sua relevância para teorias de gênero e, mais especificamente, para pessoas trans*.

Em seu fundacional artigo ‘O Império Contra-Ataca: um Manifesto Transexual’ [nt: tradução livre de 'The Empire Strikes Back: A Posttranssexual Manifesto'] (1991), a teórica, mulher trans e ciborgue-feminista Sandy Stone articula resumidamente uma ideia que estrutura tanto este artigo quanto meu pensamento geral sobre as relações de pessoas trans* com instituições médico-jurídicas dominantes e com a academia:

Gostaria de apontar as amplas similaridades que esta justaposição peculiar tem com aspectos de discursos coloniais com os quais podemos ter alguma familiaridade: o fascínio inicial com o exótico, que se estende a pessoas pesquisadoras profissionais; a negação da subjetividade e o cerceamento do acesso ao discurso dominante; seguido por uma espécie de reabilitação. […]

Corpos são telas em que vemos projetados os assentamentos momentâneos que emergem dos embates correntes acerca de crenças e práticas realizados nas comunidades acadêmicas e médicas. Estes embates ocorrem em arenas muito distantes do corpo. Cada um deles é uma tentativa de adquirir um posicionamento altivo de caráter profundamente moral, de trazer uma explicação oficial e final para como as coisas são e, consequentemente, para como elas devem continuar a ser. Em outras palavras, cada um destes embates representa a cultura falando através da voz de uma pessoa. As pessoas que não têm voz nessa teorização são as pessoas trans* [nt: transsexuals, no original]. Da mesma forma que homens [nt: cis] teorizam sobre mulheres desde o início dos tempos, pessoas teóricas de gênero veem pessoas trans* como possuidoras de algo aquém de agência.

Tudo isto se faz manifestar no fascínio que algumas pessoas teóricas têm conosco, fetichizando as exóticas pessoas trans* que elas veem em suas mentes como inerentemente radicais ou conservadoras, negando que as autocompreensões individuais das pessoas trans* são importantes (a não ser que elas se alinhem com uma narrativa cis dominante), e crendo que as ideias articuladas tanto na medicina, na psiquiatria ou na academia patriarcalmente controladas podem de alguma forma nos salvar. Permeando tudo isso como uma camada de suporte, está a ideia de que nós não podemos falar ou agir por conta própria, de que nós nunca poderemos ser pessoas produtoras adequadas de conhecimento sobre nossas próprias vidas.

Isto é realizado das seguintes formas:

A pretensão de universalidade

Certamente, seu significado pode ser facilmente compreendido. Raewyn Connell diz deste tropo:

Em cada um dos textos discutidos até agora, há uma forte e repetida pretensão de relevância universal. Para estas pessoas autoras, e para muitas outras, a ideia mesma de teoria envolve dialogar em termos universais. Presume-se que todas as sociedades sejam conhecíveis, e conhecíveis da mesma forma e desde o mesmo ponto de vista.

Em relação a teorias feministas, isso acontece da seguinte maneira. Tudo se inicia com a tendência a se universalizar gênero como um todo posicionado no binômio macho-fêmea: assim, todas mulheres [nt: cis] são relacionadas entre si, bem como os homens [nt: cis], e cada grupo tem interesses idênticos e corpos idênticos. Da mesma forma que a teorização metropolitana sobre sistemas sociais de maneira mais geral é excludente de tudo que não se encaixa neste paradigma, assim também acontece com este tipo particular de teorização, que é excludente de todas pessoas cujos gêneros não possam ser assim categorizados.

Considere-se a seguinte passagem da filósofa feminista Elizabeth Grosz em ‘Corpos Voláteis’ [nt: tradução livre de 'Volatile Bodies']:

Sempre haverá uma espécie de exterioridade ou estranheza nas experiências e na realidade vividas de cada sexo em relação ao outro. Homens, contrariamente à fantasia do transexual [nt: sic], não podem nunca, mesmo com intervenções cirúrgicas, sentir ou experienciar o que é ser e viver como mulher. No máximo, o transexual [nt: sic] pode viver sua fantasia de feminilidade – uma fantasia que em si mesma é frequentemente frustrada com as transformações toscas [nt: sic] resultantes de intervenções cirúrgicas e químicas. O transexual [nt: sic] pode parecer uma mulher, mas não pode nunca se sentir como ou ser uma mulher.

Temos, assim, uma colocação teórica que pressupõe a universalidade de três conceitos: mulher, homem, e transexual. Os problemas ficam rapidamente explícitos. Em primeiro lugar, este tríptico é um desenho da própria Grosz. Não deve surpreender ninguém que ela seja uma mulher cis. Nesse sentido, “o transexual” se torna uma espécie de terceiro gênero, o que é algo que despreza completamente a realidade vivida e corporificada de [nt: diversas pessoas] homens e mulheres trans*. Considerar homens trans* é particularmente interessante aqui, pois Grosz fala somente de pessoas que parte considerável das pessoas leitoras entenderá como mulheres transexuais. No entanto, ela fala no termo universalizante “o transexual” como se estas pessoas [nt: mulheres] trans* fossem tudo que pudesse estar incluído neste conceito.

Então, evidentemente, ela precisa utilizar uma premissa sobre o caráter existencial da hombridade ou mulheridade [nt: manhood e womanhood, no original]. Há, ela infere, uma poderosa experiência universal inerente à ontologia da mulher. Ser mulher, ela argumenta, significa algo que aquelas pessoas que ela generifica como homens não podem acessar. O problema é que sua definição desta experiência universal ignora a sua própria posição subjetiva – o tipo de mulher que ela é molda o que a mulheridade é para ela, para começar. A sua mulher existencial seria o mesmo tipo de mulher em Nova Iorque, Dubai, ou Jacarta? Em uma Reserva Hopi ou ao sul do Bronx? Em um subúrbio francês ou em Estocolmo? A resposta, naturalmente, é não. O mesmo se aplica a mim. E se isto é verdadeiro, então todo o projeto se desmonta, bem como as bases para se promulgar firmemente que “o transexual” é ou não pode ser x, y ou z.

Para fornecer uma contraposição sobre o assunto, podemos analisar a teórica feminista Linda Nicholson, que teve o seguinte a dizer sobre a premissa do gênero universal:

Quero sugerir que pensemos sobre o significado de mulher da mesma forma que Wittgenstein sugeriu pensarmos sobre o significado de jogo [nt: game, no original], como uma palavra cujo significado não se encontra através da elucidação de alguma característica específica, mas sim através da elaboração de uma complexa rede de características. […] Isso também permite que se considere o uso desta palavra em contextos onde tais características [biológicas] não estão presentes, como por exemplo em países de língua inglesa anteriormente à adoção do conceito de vagina, ou em sociedades contemporâneas de língua inglesa onde se refere àquelas pessoas que não têm vaginas mas ainda se sentem como mulheres, isto é, a transexuais antes de operação médica.

Para que fique bem claro, a sua definição de “transexual” feita aqui pode ser retrabalhada, mas seu argumento central é que mulheres trans* são mulheres e que qualquer definição viável de “mulher” deve incluir grupos que teorias universalizantes excluíram pela sua própria construção.

A leitura desde o centro

Este movimento é mais complexo. O argumento de Connell, aqui, é de que teoristas ocidentais (ou setentrionais, como ela se refere a estas pessoas neste texto) investem esforços consideráveis determinando ou se posicionando em meio a dicotomias que nós criamos e que têm pouca, se alguma, relevância para pessoas não ocidentais ou meridionais [nt: o contexto da autora é 'do norte', 'setentrional', 'ocidental', por isso o 'nós']. Isto se origina na perspectiva de pessoas teoristas dedicadas a problemas que surgem somente na literatura de suas próprias pessoas, desta maneira perpetuando conceitos equivocados e paradigmas irrelevantes.

No caso das pessoas trans*, encontramos os paradigmas e antinomias de gênero criados por pessoas cis impostas sobre nós, e assim tornadas assustadoramente relevantes em nossas vidas. Frequentemente somos utilizadas como peças em discussões de ‘natureza versus socialização’, uma das maiores antinomias em que somos consideradas como de alguma relevância. Precisa-se somente analisar o infame experimento John/Joan de John Money [http://en.wikipedia.org/wiki/David_Reimer], em que ele toma um garoto cujo pênis fora removido através de um acidente cirúrgico e recomenda às suas pessoas progenitoras que o socializem como garota. O experimento, apesar de suas enormes falhas metodológicas e, sobretudo, éticas, teria o objetivo de resolver o debate extremamente alardeado entre ‘natureza versus socialização’ – uma antinomia eterna nas ciências sociais e naturais. Seu fracasso trágico se tornou bastante famoso, e foi utilizado por muitas pessoas (incluindo-se pessoas trans*) para provar esta ou aquela teoria.

Para além disso, podemos nos encontrar em teorias sobre como a socialização predomina (ver: ‘Problemas de Gênero’, de Judith Butler) e outras pessoas propondo, seja para nos apoiar ou para se opor a nós, que nós demonstramos (ou que estamos tentando provar) que o sexo é inato. Muitas críticas feministas nos desprezam por esta última linha de pensamento, e dizem que reificamos o binário de gênero ao reivindicarmos sermos objetivamente homens ou mulheres, mas somente em um corpo inapropriado. Já foram extensamente discutidas as razões pelas quais esta é uma ideia problemática [http://quinnae.wordpress.com/2010/10/21/a-cliche-trapped-in-a-metaphor%E2%80%99s-body/], e ela representa bem como teorias criadas por pessoas cis são projetadas de volta sobre nós como uma verdade acerca de nossas existências pelas quais supostamente lutamos.

Se as dicotomias como ‘homem e mulher’ ou ‘natureza e socialização’ são tornadas problemas de existências trans*, é porque nós somos com frequência recrutadas nos debates como ‘Figura A’ em favor de um lado ou de outro, muitas vezes contra nossas vontades. Judith Butler tenta utilizar pessoas trans* para provar suas próprias teorias (com as quais, registre-se, concordo em muitas partes, embora ainda assim reconhecendo sua posição e expropriação tácita), enquanto outras pessoas tentam demonstrar que pessoas trans* provam que um “sexo cerebral” inato. Porém, muitas de nós temos autocompreensões complexas que complicam ou tornam inúteis tais dicotomias, e ao invés disso nos encontramos utilizadas em tentativas vãs de resolvê-las.

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Arquivado em Acadêmico, Traduções, Trans*

Sobre questões trans dentro do feminismo e o fortalecimento da análise de gênero a partir do movimento

A blogueira Jos Truitt do Feministing comenta sobre a situação das questões trans* no feminismo mainstream, defendendo uma abordagem intersecional e transfeminista para se pensar gênero e feminismo. Os links estão em inglês. A fonte original encontra-se no fim do texto.

Por Jos | Originalmente Publicado em: 11 de junho de 2013.

Tradução: Hailey Kaas

Eu parei de blogar por um tempo enquanto estava na pós-graduação e isso abriu oportunidade para dar um ponto de vista sobre a blogosfera feminista. Eu comecei a trabalhar no Feministing em 2009 com o objetivo de centrar questões trans dentro do feminismo. Eu penso que a opressão que colegas trans sofrem, especialmente a extrema marginalização e violência direcionada a mulheres trans nessa cultura misógina, é exatamente uma das coisas pelas quais o feminismo existe para mudar. Eu entendo o feminismo como uma resposta à opressão de gênero em um contexto patriarcal onde o feminino é desvalorizado. Eu vejo o pior de nossa hierarquia de gênero recaindo sob as pessoas que falham em cumprir regras rígidas do binário de gênero compulsório, de uma forma percebida como feminina. Isso se revela quando, por exemplo, há violência específica direcionada a homens queer e mulheres trans. Dessa forma, vejo a exclusão tanto de mulheres trans quanto de nossas questões do feminismo (ou a contínua reprodução de transmisoginia dentro movimento feminista) como um problema que necessita ser posto em pauta.

Contudo, centrar as questões de pessoas trans e não-conformes de gênero exige uma mudança de pensamento para as pessoas cujo feminismo está baseado em normas cisgêneras. A norma em nossa cultura é supor que uma pessoa irá se identificar com o gênero designado ao nascer com base nx médicx olhando para sua genitália. O que significa que supomos que existe uma conexão entre gênero e genitália, que leva a uma suposta conexão entre gênero e os papeis sexuais, e também às capacidades reprodutivas de uma pessoa. Como demonstrei no que diz respeito à retórica da “Guerra às Mulheres”, sobre os ataques aos direitos reprodutivos, a maioria das organizações para direitos reprodutivos coloca a suposição de que mulher = pessoa com vagina que pode gerar filhxs. Isso é verdade para muitas mulheres, mas não é a experiência de todas as mulheres. E colocar todas as mulheres como fundamentalmente máquinas de fazer filhxs é exatamente o que o movimento anti-escolha deseja. Um feminismo que se baseia na conexão entre gênero e genitais não só exclui pessoas cujos corpos não se encaixam - é também uma análise fundamentalmente falha que perpetua uma ideia essencialista a qual o feminismo parcialmente existe para combater. Um feminismo que centraliza uma abordagem trans feminista sobre gênero, que reconhece que mulher ≠ vagina, oferece uma análise de gênero mais precisa no geral que beneficia todxs.

Um número crescente de mulheres trans, incluindo eu mesma, têm trabalhado na blogosfera feminista e de justiça social agora já faz algum tempo. Ouvi várias escritoras feministas famosas dizerem que realmente gostam do meu trabalho. O que é legal, mas sinceramente estou aqui para realizar uma mudança dentro do feminismo, logo isso não significa nada para mim se meus textos não estiverem encorajando uma mudança em suas análises. Isso é a continuação de um problema familiar: Quando mulheres negras introduziram a ideia de intersecionalidade, elas reforçaram o ponto de que suas experiências não eram as experiências das mulheres brancas somadas de raça. Para o feminismo levar suas questões a sério, necessitou centrar as experiências das mulheres negras. O extraordinário dessa abordagem é que continua beneficiando mulheres brancas, mas não exclui as experiências que ocorrem na interseção de raça e gênero. No entanto, feministas brancas continuam a tratar as questões das mulheres negras como algo a ser adicionado ao feminismo, o “especialmente mulheres negras” que faz com que seus argumentos sejam mais fortes. Mas o argumento continua começando majoritariamente com as experiências das mulheres brancas (e comumente com privilégio de classe - o mesmo ocorre quando se fala sobre as questões das mulheres trans; e fui completamente cúmplice nisso).

Vejo a continuação desse padrão em um momento no qual mulheres trans estão tentando levantar suas questões dentro do feminismo. Reconhecer nossa humanidade e nossa opressão exige mudar a conexão entre gênero e genitais. Um feminismo que não realiza tal mudança continuará a perpetuar nossa exclusão. Eu fiquei especialmente surpresa no outono passado com a cobertura do livro Vagina da Naomi Wolf. A crítica feminista pareceu ser de que Wolf reduziu mulheres a suas vaginas, ou mesmo a própria experiência específica de sua vagina. Assim, com base nessa leitura feminista, o fato de que o livro é cisnormativo é a primeira crítica mais óbvia. No entanto, essa crítica estava em falta na maioria das discussões feministas na imprensa sobre o livro. O argumento de Wolf foi constantemente chamado a atenção por essencializar vaginas e mulheres de uma forma heterossexista e racista. Fiquei sabendo que questões trans foram cortadas por motivos de espaço de uma mesa-redonda absurdamente grande sobre o livro entre um grupo de famosas feministas na mídia. Algo que é honestamente ridículo. Como Jaclyn Friedman demonstrou em um dos poucos artigos que de fato mencionou a questão, o assunto requer pouco espaço para destaque:

“Mulheres que não tem vaginas, e pessoas com vaginas que não são mulheres? [Wolf] Nunca ouviu falar delas.”

Bem simples, certo? O fato de que a crítica mais óbvia não foi uma prioridade para muitas feministas que escreveram sobre o livro, diz muito sobre o lugar das questões trans dentro de seu feminismo. Não é algo de fato importante. É algo que se faz um adendo quando estamos falando especificamente sobre pessoas trans. Mas não é central em relação a como pensam gênero.

As vozes das pessoas trans dentro do feminismo definitivamente vêm tendo um impacto. O tumblr é um excelente exemplo - muito da base feminista está refletindo bastante seriamente sobre como nosso entendimento do mundo está enraizado em normas cisgêneras, e estão criando espaço dentro do gênero para outras formas de se ter corpos. Mas a maioria das feministas famosas, as pessoas que estão escrevendo nas grandes publicações, participando de programas de TV e adquirindo oportunidades para publicação de livros, não mudaram suas análises baseadas em experiências cis. Sinceramente, o movimento poderia deixar muitas dessas pessoas famosas a ver navios.

Então, constantemente eu leio uma versão de feminismo que me deixa de fora. Isso acontece regularmente nesse mesmo blog, algo que estamos começando a trabalhar diretamente para mudar. As suposições cisnormativas também são uma parcela padrão de conversas pessoais as quais eu participei entre feministas com visibilidade pública (eu fico frequentemente impressionada com o que as pessoas não percebem que estão dizendo na minha frente). Isso se destaca na linguagem que define mulheres como produtoras de filhxs. Mas é também um conjunto de suposições em um nível enraizado que determina quais problemas são considerados importantes problemas feministas e como tais problemas serão pautados. Violência sexual e de gênero, opressão reprodutiva, acesso à saúde, empregos, imagem corporal… Questões que são frequentemente delimitadas de forma a ignorar as experiências particulares de pessoas trans e não-conformes de gênero, especialmente as pessoas dentro do espectro feminino. Isso não é um problema apenas retórico - o feminismo atuou no estabelecimento de abrigos para vítimas de violência doméstica que excluem mulheres trans, por exemplo.

Pessoas trans e não-conformes de gênero enfrentam uma discriminação absurda que deveria ser um foco feminista, mas ainda é uma questão marginal, na melhor das hipóteses. Isso precisa mudar. Está mudando. Não é suficiente para feministas aproveitarem os textos das pessoas que experienciam a marginalização que as mesmas não sofrem. Para encarar tais questões seriamente, é necessário pensar em como são diferentes de sua experiência, como mudam a base sob a qual trabalham, e as suposições que você tem que pode terminar por perpetuar exclusão. Esse é o trabalho que todxs temos de fazer como parte de um movimento feminista intersecional onde todxs temos diferentes experiências de privilégio e opressão.

Texto original

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Divagações dxs Leitorxs: Explicando Genderqueer Para aquelxs que o não são

Por Maddox

Tradução: Jamal

“Eu tenho uma prima que acaba de sair do armário como genderqueer. Ela e eu fomos melhores amigas enquanto crescíamos e, naturalmente, eu quero entender o que sua experiência é, mas eu simplesmente não entendo. (Eu também não sei se me é permitido referir-me a minha prima enquanto ela / dela.)

Eu posso entender o sentimento de que você devesse ser de um gênero diferente de seu corpo, ou do que você foi criado, mas eu não entendo como seria não se sentir como pertencente a nenhum dos sexos. É sobre as construções sociais em torno de que a sociedade diz que meninas e meninos / homens e mulheres devem ser? Porque eu entendo aqueles que rejeitam estereótipos, não gostam de cozinhar / cor-de-rosa / salto alto / etc.

Acho que eu deveria perguntar a ela, mas eu não quero incomodá-la muito. Você pode fornecer material on-line para eu ler sobre a experiência de ser genderqueer?”

Obrigadx por vir aqui e fazer um esforço para compreender seu/sua primx. Elx se mostrou valente em sair do armário e em confiar em você informações pessoais, e um sinal de que elx confia em você uma informação pessoal preciosa.

O que é Genderqueer?

Primeiro, cada pessoa que se identifica como genderqueer define seu gênero de forma diferente. Isso ocorre porque genderqueer tornou-se um termo genérico que engloba uma grande gama de gênero de forma que a ser realmente diferente para cada indivíduo.

Eu estou usando pronomes de gênero neutro “elxs” para seu/sua primx, pois é a opção mais segura em minha mente. Nós não sabemos as preferências de pronome delx: você vai ter que perguntar. Sério, é só dizer “que pronome você prefere?” Você vai ter que perguntar um monte de coisas, como o nome que de preferência, como você deve abordá-lx em público e em privado (porque elx podem estar fora do armário ou não para pessoas diferentes) e, mais importante, o que genderqueer significa para elx.

Para um grande número de pessoas que se identificam como genderqueer, sua identidade de gênero – e a forma como expressá-la - continua a evoluir com o passar dos anos. Isso inclui roupas, pronomes, nomes, transição, transição física, médica, e outras coisas. Não é necessariamente que as pessoas genderqueer estão confusxs; apenas que descobrir o que você entende sobre sua própria identidade pode ser um processo longo, que muitas vezes envolve desaprender o que deveríamos ser.

Sair do armário não significa que necessariamente elx irá compartilhar todo o processo com você, ou porque elx optou por manter algumas coisas privadas (por qualquer motivo), ou elx pode ser apenas tímidx em relação ao assunto. Eu não falo muito sobre o assunto com qualquer 1 de meus/minhas amigxs há anos. Como alguém de fora, pode ser frustrante ver as mudanças e se sentir como se estivesse sendo mantido no escuro. Seja paciente com essas mudanças. Se elx se sentiu confortável o suficiente para falar com você, é melhor conversar sobre o assunto do que presumir alguma identidade.

Fazendo perguntas

A melhor coisa que você pode fazer agora é fazer perguntas: para outrxs (como eu, ou outrxs blogueiros), para si mesmx (você ficaria surpresx com o quanto você pode aprender sobre si mesmx no processo), e seu/sua primx (embora não todas as perguntas devem ser dirigidas a elx, não tente invadir a privacidade pessoal).

Sei que você provavelmente vai cometer um monte de erros ao longo do caminho, mas todos começaram do início, e finalmente aprenderam. Contanto que você seja respeitosx e honestx com suas intenções, suas ações serão apreciadas.

Explicando Genderqueer para alguém que não é

Agora, para chegar ao cerne de sua pergunta:

“Eu posso entender o sentimento de que você devesse ser de um gênero diferente do que você foi criado como, mas eu não entendo como seria se sentir de ambos os sexos.”

Como eu disse, comece com algumas perguntas. Eu estou supondo que você é uma menina, e que você se sinta confortável ao se identificar como uma menina. Mas talvez você não goste de usar salto alto, ou cozinhar, ou odeia rosa - rejeitando coisas “femininas”, como você apontou. No entanto, você ainda se sente como uma menina. Por quê? O que faz você se sentir desse jeito? Espero que você possa entender que pode ser extremamente difícil explicar sua identidade de gênero para outra pessoa.

E se eu lhe disser que amanhã você vai se sentir exatamente a mesma, e se ver da mesma forma. No entanto, todas as pessoas lhe veem como um homem, lhe tratam como um homem, e esperam que você faça coisas de homem. É realmente difícil imaginar isso, eu sei, por isso vamos fazer um experimento.

Tente caminhar para o banheiro dos homens. Sério, experimente na próxima vez que você está no cinema. Avalie o seu nível de conforto e o seu senso de segurança. Tente andar no vestiário dos homens. Apresente-se a alguém como “John” - Como se sente (errado, estranho)? Como as pessoas vão tratá-la (com desdém, com surpresa, com o ridículo)? Agora imagine olhando para si mesmo no espelho e tendo barba ou barba por fazer, ou usando um barbeador elétrico. Ninguém está olhando para o espelho, exceto você, mas como você se sente?

Transgênerxs tem uma experiência semelhante: a desconexão entre o seu sexo de nascimento e o sexo com o qual se identificam, além de como as pessoas as veem e o que se espera delxs. Pessoas transexuais que estão dentro do binário encontram conforto no outro lado do espectro: se elxs nasceram homens, elxs se vêem como mulheres, e se sentem bem tendo a aparência de mulheres e sendo visto como meninas ou mulheres.

No entanto, algumas pessoas trans * sentem angústia ou desconforto ao colocar-se no lado feminino, bem como o lado masculino. Não se sentem muito bem em nenhuma caixa. Outras pessoas sentem que pertencem a ambos os lados, ou mais de um lado do que o outro. Esta é apenas uma pequena parte de como as pessoas genderqueer experimentam o seu gênero.

Eu como Trans / Gênero / Queer

Eu escrevi algumas postagens sobre como eu sinto o meu gênero como neutro. E apesar do jeito de eu expressar e representar o meu gênero no mundo ter mudado, a minha identidade de gênero não mudou. Ainda é neutro - e minha experiência dele- é apenas um de uma infinidade de variações de experiências genderqueer e transgênerxs.

N.E. Artigo original: http://neutrois.me/2013/04/17/explaining-genderqueer-to-those-who-are-not/

Confira também o material do Coletivo Safira sobre Gênero-Queer: http://coletivosafira.org/post/49865695756

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Tropos Transfóbicos Nº 7 - Socialização infantil

[N.T. As siglas utilizadas no texto foram traduzidas e estão devidamente explicadas no fim do texto. Os grifos em itálico são da autora; os grifos em negrito são da tradutora].

Por Lisa Harney

Tradução: Hailey Kaas

Eu escrevi isso em algum outro lugar, como resposta a uma questão sobre homens trans e privilégio masculino. A resposta, em específico, se dirigia para alguém que sugeriu que homens trans não recebem privilégio masculino por que são aparentemente socializados como meninas e treinados para serem mulheres. Com isso em vista, a maior parte desse texto é uma resposta a esses comentários.

Além disso, coloquei links para o little light’s Fair [blog em inglês] e para um artigo sobre sexismo e pessoas trans [em inglês] relacionado com as experiências da Dra. Joan Roughgarden e do Dr. Ben Barres no que diz respeito à transição, privilégio masculino e sexismo.

A questão da socialização é um daqueles tópicos de discussão bizantina e perda de tempo, e focar-se na socialização como se todxs fôssemos programadxs como pequenos computadores na infância durante nosso crescimento, como se a socialização de gênero fosse direcionada a nós como mísseis teleguiados, e que crianças CAFAB [Coercitivamente designadx mulher ao nascer - CODEMAN] recebem apenas socialização direcionada para meninas e crianças CAMAB [Coercitivamente designadx homem ao nascer - CODEHAN] recebem apenas socialização direcionada para meninos, e todxs nós trans somos, então, como pessoas cis compartilhando nossa CASAB [Socialização Coercitivamente designadx ao nascer - SOCDAN] até o dia que começamos a transicionar.

Isso não só não é verdade como também é irrelevante. Nessa linha, pode-se argumentar também que deus implantou instruções no seu cérebro acerca do seu gênero.

Primeiramente, eu argumentaria que a natureza da socialização muda ao longo do tempo. Por exemplo, eu duvido que uma criança de dois anos esteja sendo socializada para apoiar cultura do estupro. Eu suspeito que a maioria da socialização nesse caso envolva treinamento para ir ao banheiro, brincadeiras e assistir a vídeos infantis. Claro, pode-se argumentar que está na cultura - e de fato está. Mas isso é algo que ambas as crianças CODEHAN e CODEMAN recebem. A única diferença é se as crianças se percebem ou não como alvos de atitudes que estão por trás dessa socialização. Ate porque os homens não mantêm uma patente exclusiva sob culpabilização das vítimas mulheres para casos de estupro ou violência doméstica, não é mesmo?

Todxs somos socializadxs para uma cultura machista. Somos ensinadxs que ser homem significa X e que ser mulher, Y. Não há um “lá fora” para nenhum de nós. Mulheres, assim como homens, são socializadas para serem machistas.

A discussão sobre o que essa socialização significa, no entanto, sempre coloca crianças (e eventualmente pré-adolescentes, e depois adolescentes) como receptorxs passivxs que nunca reagem àquela socialização. Nós nem discutimos se as crianças que recebem essas mensagens percebem-se como o alvo, o instigador ou ambos. Não falamos sobre o que essas mensagens significam para crianças trans que podem não se perceber como possuindo um gênero, ou podem se perceber como possuindo um gênero que difere de sua SOCDAN.

Por exemplo, eu vi várias mulheres cis presumindo que meninas trans quando eram crianças e adolescentes, interagiram com imagens de ideal de beleza (modelos ou capas de revista, por exemplo) da mesma forma que meninos cis, e não percebem que esse ideal tem um grande impacto sobre nós e nossa autoimagem, e que isso combinado com disforias de corpo/gênero é uma das razões pelas quais somos potenciais suicidas. Eu conheço várias mulheres trans que na pré-transição desenvolveram diversas compulsões alimentares com o objetivo de desenvolver uma aparência mais feminina.

Socialização não é um privilégio. É um meio pelo qual o privilégio é perpetuado. Privilégio é baseado em várias coisas, a maioria relaciona-se em como você é percebidx e como outras pessoas te tratam. Homens trans que passam como cis recebem privilégio masculino. Muitos homens trans que nem sempre passam como cis recebem privilégio masculino, dependendo da situação e contexto.

Da mesma forma, mulheres trans durante ou depois da transição que passam como cis, não recebem privilégio masculino. Mas mulheres trans que são lidas como trans também não recebem privilégio masculino, em nenhum contexto, no geral. Ser uma mulher trans não é algo sustentado culturalmente, porque ser mulher não é algo sustentado culturalmente da mesma forma que ser um homem é sustentado culturalmente, e parece que em vários (mas não em todos) contextos, homens trans recebem um “passe-livre” em coisas que mulheres trans não, muitas vezes de forma explícita. Eu já ouvi Adam Carolla dizer isso explicitamente no Lovelines mais de uma vez, anos atrás. Eu ouvi feministas cis (feministas radicais e outras de linhas diferentes) fazerem caracterizações grosseiras acerca de mulheres trans e caracterizações mais amenas de homens trans, enquanto eram transfóbicas com ambxs. Eu ouvi homens trans falarem coisas do tipo.

Não estou argumentando aqui que homens trans recebem coisas boas para todo o sempre e que mulheres trans recebem só coisas ruins sempre, mas sim que existe um privilégio em ser vistx como alguém indo em direção à masculinidade (de acordo com perspectivas cis) comparado com ser vistx como alguém indo em direção à feminilidade (novamente, de acordo com perspectivas cis) e a socialização não é o fator central em ambos os casos.

Eu gostaria de completar que nós não discutimos as pressões diárias em relação à conformidade de gênero e à cisnormatividade, em relação às narrativas corretas, em relação ao cumprimento das expectativas das pessoas cis no que diz respeito a como homens e mulheres devem ser, e como isso nos afeta diariamente.

Poder - nesse caso sexismo, heterossexismo, cissexismo - se normatiza através da constante execução, e as mulheres - tanto cis quanto trans - estão sempre falhando na feminilidade. Para as mulheres trans, essa falha perceptível tem consequências (cissexistas) mais severas e padrões de imposição mais altos. Mulheres trans que são muito femininas são ridicularizadas por tentarem demais, e por isso são consideradas, na verdade, homens. Mulheres trans que não são femininas o suficiente ou mesmo as que são masculinas, são ridicularizadas por não tentarem o suficiente, e por isso são consideradas, na verdade, homens. Mulheres trans que são lésbicas são ridicularizadas por falharem em sua “condição de ser mulher”, porque as expectativas são que mulheres se atraiam por homens.

Os psiquiatras nos dão dress codes e maneiras de se comportar. Nós damos a eles as histórias que eles desejam ouvir - cisnormativas, heteronormativas, narrativas que estabelecem nossos gêneros como estáticos. Várias vezes nós cumprimos de fato um dress code apenas para sermos atendidas dentro de nossa condição trans. Mulheres trans são disciplinadas nos modos de se vestir, no comportamento e orientação, assim como qualquer outra mulher cis, e as penalidades podem ser desde violência, negação de atendimento médico necessário, até o erro ou apagamento dos nossos pronomes e/ou gêneros de forma constante e maldosa. Quando passamos como cis, o melhor que recebemos é machismo e os julgamentos a partir dos olhares masculinos. Não importa se estamos nos comportando com o que quer que sejam ou deveriam ser as tais “socializações masculinas” ou “direitos masculinos”, nós não estamos recebendo nenhum privilégio masculino. Nós somos mulheres, ou somos coisas sem gênero falhando tanto na “condição de ser mulher” quanto na de “ser homem”.

E, sabe, quando você lida com isso todos os dias isso irá te afetar. Eu fiz quatro anos de teatro no ensino médio, e nesse período eu aprendi como falar e projetar minha voz, e basicamente me fazer ouvida - eu era péssima nisso até que meu primeiro professor de teatro se colocou para me ensinar como fazer isso. No meu primeiro ano fora do ensino médio, eu morei com outra mulher trans que me criticava incansavelmente por “falar alto demais” e durante anos eu perdi tudo o que tinha conquistado. Não deu nem um mês até eu já estar falando bem baixo novamente. Não podemos subestimar o impacto do machismo diário ou do privilégio masculino, e como isso influencia na socialização independente da sua idade. E isso acontece com todas as mulheres adultas, nos policiam todos os dias em como ser mulher, dizem como devemos nos comportar, vestir, falar. Todo mundo faz isso - homens e mulheres - ambxs fazem isso com mulheres. Isso ocorre em todos os níveis. Está difundido.

Socialmente e culturalmente, homens são incentivados enquanto homens. Mulheres não são incentivadas enquanto mulheres. Sim, existe policiamento de gênero direcionado a homens, mas também existem coisas como o Old Spice Guy, que valoriza e apenas ridiculariza levemente a hipermasculinidade*. Mas olhem para os comerciais da Axe. Olhem para os filmes de ação. Os programas de TV de todos os tipos. As revistas. Olhem para tudo.

Isso está para além da transição. Os andaimes sociais para a identidade feminina que deveriam ajudar uma mulher trans a ser tornar uma mulher de acordo com as definições sociais, são estruturalmente o oposto de um apoio. O processo pelo qual você se torna mulher envolve tornar você um abjeto, ensinar que apoio é algo que mulheres não merecem; e isso é algo que mulheres trans têm dificuldade de se defender, pois ser trans também está envolvido num status de abjeção - seu sucesso é determinado através da aprovação de outrxs.

No entanto, embora homens trans também sejam policiados enquanto homens, e têm de cumprir com as narrativas trans e tentar ser “adequadamente” homens, ser homem é algo valorizado. A masculinidade (e considerando que homens são associados/relacionados com masculinidade) é valorizada e admirada, ao contrário da feminilidade e de ser mulher. Enquanto ser trans é, como eu disse previamente, um status de abjeção, ser homem é exaltado como algo bom, a melhor de todas as opções.

Esse contraste afeta homens e mulheres trans de diferentes formas. Homens trans recebem uma liberdade e respeito que mulheres trans não recebem. Isso acontece diariamente. Se você ganha $100 por dia, durante 30 dias, você esperaria ganhar esses $100 no dia 31? Ou você confiaria na experiência da sua infância, quando o dinheiro era mais apertado? E quanto a receber esse dinheiro por 365 dias? Você o esperaria no dia 366? Os sistemas imediatos de punição e recompensa superam os sistemas do passado?

Não é possível reduzir nossa socialização aos nossos primeiros 18 anos, primeiros 12 anos, aos nossos primeiros dois anos (como eu vi uma pessoa tentar fazer recentemente). Nós não podemos discutir pessoas trans e privilégio masculino de forma coerente enquanto tratamos pessoas trans como se fossem pessoas cis, enquanto ignoramos nossas vidas durante e após a transição, nos focando estritamente na pré-transição. Isso é cissexismo e direto sexismo – tentar excluir experiências inconvenientes à suposição de que mulheres trans são na realidade supostamente homens e homens trans são na realidade supostamente mulheres.

Nota: Eu não desejo que ninguém tire dessa postagem a ideia de que homens trans não experienciam sexismo. Eles experienciam sim, especialmente antes e durante a transição. Existem diferenças em como a misoginia se manifesta em relação a mulheres trans em virtude de como a interseção transfobia-misoginia difere para homens trans e mulheres trans.

*Nota²: Jane LaPlain aponta que essa parte está relacionada com brancura, nesse comentário [em inglês].

N.T. CAFAB: Em inglês: coercively assigned female at birth. Tradução: Coercitivamente designadx mulher ao nascer. A sigla correpondente é CODEMAN.

CAMAB: Coercively assigned male at birth. Tradução: Coercitivamente designadx homem ao nascer – CODEHAN.

CASAB: Em inglês: Coercively socialized at birth. Tradução: Socialização Coercitivamente designadx ao nascer – SOCDAN.

Texto original: http://www.questioningtransphobia.com/?p=2884

Agradeço Juno Cremonini e Nicholas Rizzaro pela ajuda na tradução.

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