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Uma sinfonia social: Os Quatro Movimentos da Transfobia na Teoria (Parte I)

Por Katherine Cross

Tradução: Viviane V.

[primeira parte da tradução do texto “A Social Symphony: The Four Movements of Transphobia in Theory”, disponível em http://bit.ly/142Wzes]

Somente para dar ares mais, digamos, ‘tropicais’ a esta tradução, inicio com Chico Buarque:

“Hoje você é quem manda

Falou, tá falado

Não tem discussão

A minha gente hoje anda

Falando de lado

E olhando pro chão, viu”

(Chico Buarque - Apesar de você)

Esta tradução é particularmente importante para mim, por ter me permitido compreender as razões pelas quais me foi tão difícil encontrar referências e abordagens críticas sobre questões trans* em alguns meios acadêmicos. Tendo vindo das ciências econômicas, e iniciado meus estudos destas questões a partir da participação em fóruns trans* e da leitura de pessoas autoras trans* (como Julia Serano, por exemplo) – principalmente por uma questão de sobrevivência, neste processo de autoidentificação de gênero –, incomodou-me que parte significativa da produção acadêmica com que tive contato não dialogasse com estas perspectivas.

O texto de Katherine Cross me permitiu articular estes incômodos de maneira crítica, e espero que possa servir a outras pessoas que se preocupem com questões políticas trans*, seja na academia, seja ‘fora’ dela. Esta tradução está dividida em duas partes.

* * *

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Analisando o lugar de pessoas trans* [nota da tradução (nt): transgender and transsexual people, no original] na teorização de várias disciplinas, podem-se encontrar diversas linhas comuns que articulam todo este projeto [nt: acadêmico]. As sociedades podem ser, com certa frequência, bastante confusas e, ainda assim, de forma paradoxal, podem ter nelas mecanismos identificáveis de operação que engendram certas forças sociais inexoravelmente adiante. Aonde pretendo chegar com isso? Quais são estas linhas comuns? Bem, com o indispensável apoio de uma renomada teorista social que é uma mulher trans*, acredito ter encontrado quatro.

Pessoas trans* não são o único grupo de pessoas tratadas de formas problemáticas pela teoria social e política; há muito a ser aprendido da análise de como paradigmas teóricos explicitamente excluíram outras pessoas marginalizadas. Em seu livro Southern Theory, a socióloga Raewyn Connell articula uma excelente exegese da teoria social ocidental que traz à tona suas premissas profundamente eurocêntricas, bem como o projeto colonial que a fundamenta. O mundo colonizado, ela diz, era somente uma mina de dados cujos números brutos seriam exportados à ‘metrópole’ (Europa e Estados Unidos) para produção teórica que trabalha na formação de uma visão definitiva da(s) pessoa(s) colonizada(s). Nesse sentido, a relação entre colonizador e colonizada não é diferente quando se considera a esfera acadêmica em oposição às esferas política ou industrial, por exemplo.

As relações com as maneiras através das quais pessoas acadêmicas conceituam e, principalmente, utilizam pessoas trans* ficam muito claras, aqui. Metáforas de colonização também são muito úteis para se discutirem dinâmicas sociais imensamente desiguais dentro de países ocidentais; histórias de apropriação e exploração certamente não se limitam ao ‘mundo em desenvolvimento’ [nt: majority world, no original], e ‘minas de dados’ podem ser encontradas na rua ao lado de onde estou [nt: a autora escreve do 'mundo desenvolvido'] bem como em Gana, Paquistão, ou na Austrália aborígene. O que é mais preocupante sobre tal teorização é que não somente ela se apropria, utiliza mal, e distorce as experiências da pessoa colonizada, mas em outras instâncias elas também são, como um todo, ignoradas (particularmente no tecer de teorias genéricas sobre a sociedade). Connell identificou quatro movimentos da academia colonialista que, segundo ela, caracterizam a maior parte dos intentos de teorização sobre a sociedade: a pretensão de universalidade, a leitura desde o centro, gestos de exclusão, e o grande apagamento. Passarei por cada um destes movimentos, discutindo sua relevância para teorias de gênero e, mais especificamente, para pessoas trans*.

Em seu fundacional artigo ‘O Império Contra-Ataca: um Manifesto Transexual’ [nt: tradução livre de 'The Empire Strikes Back: A Posttranssexual Manifesto'] (1991), a teórica, mulher trans e ciborgue-feminista Sandy Stone articula resumidamente uma ideia que estrutura tanto este artigo quanto meu pensamento geral sobre as relações de pessoas trans* com instituições médico-jurídicas dominantes e com a academia:

Gostaria de apontar as amplas similaridades que esta justaposição peculiar tem com aspectos de discursos coloniais com os quais podemos ter alguma familiaridade: o fascínio inicial com o exótico, que se estende a pessoas pesquisadoras profissionais; a negação da subjetividade e o cerceamento do acesso ao discurso dominante; seguido por uma espécie de reabilitação. […]

Corpos são telas em que vemos projetados os assentamentos momentâneos que emergem dos embates correntes acerca de crenças e práticas realizados nas comunidades acadêmicas e médicas. Estes embates ocorrem em arenas muito distantes do corpo. Cada um deles é uma tentativa de adquirir um posicionamento altivo de caráter profundamente moral, de trazer uma explicação oficial e final para como as coisas são e, consequentemente, para como elas devem continuar a ser. Em outras palavras, cada um destes embates representa a cultura falando através da voz de uma pessoa. As pessoas que não têm voz nessa teorização são as pessoas trans* [nt: transsexuals, no original]. Da mesma forma que homens [nt: cis] teorizam sobre mulheres desde o início dos tempos, pessoas teóricas de gênero veem pessoas trans* como possuidoras de algo aquém de agência.

Tudo isto se faz manifestar no fascínio que algumas pessoas teóricas têm conosco, fetichizando as exóticas pessoas trans* que elas veem em suas mentes como inerentemente radicais ou conservadoras, negando que as autocompreensões individuais das pessoas trans* são importantes (a não ser que elas se alinhem com uma narrativa cis dominante), e crendo que as ideias articuladas tanto na medicina, na psiquiatria ou na academia patriarcalmente controladas podem de alguma forma nos salvar. Permeando tudo isso como uma camada de suporte, está a ideia de que nós não podemos falar ou agir por conta própria, de que nós nunca poderemos ser pessoas produtoras adequadas de conhecimento sobre nossas próprias vidas.

Isto é realizado das seguintes formas:

A pretensão de universalidade

Certamente, seu significado pode ser facilmente compreendido. Raewyn Connell diz deste tropo:

Em cada um dos textos discutidos até agora, há uma forte e repetida pretensão de relevância universal. Para estas pessoas autoras, e para muitas outras, a ideia mesma de teoria envolve dialogar em termos universais. Presume-se que todas as sociedades sejam conhecíveis, e conhecíveis da mesma forma e desde o mesmo ponto de vista.

Em relação a teorias feministas, isso acontece da seguinte maneira. Tudo se inicia com a tendência a se universalizar gênero como um todo posicionado no binômio macho-fêmea: assim, todas mulheres [nt: cis] são relacionadas entre si, bem como os homens [nt: cis], e cada grupo tem interesses idênticos e corpos idênticos. Da mesma forma que a teorização metropolitana sobre sistemas sociais de maneira mais geral é excludente de tudo que não se encaixa neste paradigma, assim também acontece com este tipo particular de teorização, que é excludente de todas pessoas cujos gêneros não possam ser assim categorizados.

Considere-se a seguinte passagem da filósofa feminista Elizabeth Grosz em ‘Corpos Voláteis’ [nt: tradução livre de 'Volatile Bodies']:

Sempre haverá uma espécie de exterioridade ou estranheza nas experiências e na realidade vividas de cada sexo em relação ao outro. Homens, contrariamente à fantasia do transexual [nt: sic], não podem nunca, mesmo com intervenções cirúrgicas, sentir ou experienciar o que é ser e viver como mulher. No máximo, o transexual [nt: sic] pode viver sua fantasia de feminilidade – uma fantasia que em si mesma é frequentemente frustrada com as transformações toscas [nt: sic] resultantes de intervenções cirúrgicas e químicas. O transexual [nt: sic] pode parecer uma mulher, mas não pode nunca se sentir como ou ser uma mulher.

Temos, assim, uma colocação teórica que pressupõe a universalidade de três conceitos: mulher, homem, e transexual. Os problemas ficam rapidamente explícitos. Em primeiro lugar, este tríptico é um desenho da própria Grosz. Não deve surpreender ninguém que ela seja uma mulher cis. Nesse sentido, “o transexual” se torna uma espécie de terceiro gênero, o que é algo que despreza completamente a realidade vivida e corporificada de [nt: diversas pessoas] homens e mulheres trans*. Considerar homens trans* é particularmente interessante aqui, pois Grosz fala somente de pessoas que parte considerável das pessoas leitoras entenderá como mulheres transexuais. No entanto, ela fala no termo universalizante “o transexual” como se estas pessoas [nt: mulheres] trans* fossem tudo que pudesse estar incluído neste conceito.

Então, evidentemente, ela precisa utilizar uma premissa sobre o caráter existencial da hombridade ou mulheridade [nt: manhood e womanhood, no original]. Há, ela infere, uma poderosa experiência universal inerente à ontologia da mulher. Ser mulher, ela argumenta, significa algo que aquelas pessoas que ela generifica como homens não podem acessar. O problema é que sua definição desta experiência universal ignora a sua própria posição subjetiva – o tipo de mulher que ela é molda o que a mulheridade é para ela, para começar. A sua mulher existencial seria o mesmo tipo de mulher em Nova Iorque, Dubai, ou Jacarta? Em uma Reserva Hopi ou ao sul do Bronx? Em um subúrbio francês ou em Estocolmo? A resposta, naturalmente, é não. O mesmo se aplica a mim. E se isto é verdadeiro, então todo o projeto se desmonta, bem como as bases para se promulgar firmemente que “o transexual” é ou não pode ser x, y ou z.

Para fornecer uma contraposição sobre o assunto, podemos analisar a teórica feminista Linda Nicholson, que teve o seguinte a dizer sobre a premissa do gênero universal:

Quero sugerir que pensemos sobre o significado de mulher da mesma forma que Wittgenstein sugeriu pensarmos sobre o significado de jogo [nt: game, no original], como uma palavra cujo significado não se encontra através da elucidação de alguma característica específica, mas sim através da elaboração de uma complexa rede de características. […] Isso também permite que se considere o uso desta palavra em contextos onde tais características [biológicas] não estão presentes, como por exemplo em países de língua inglesa anteriormente à adoção do conceito de vagina, ou em sociedades contemporâneas de língua inglesa onde se refere àquelas pessoas que não têm vaginas mas ainda se sentem como mulheres, isto é, a transexuais antes de operação médica.

Para que fique bem claro, a sua definição de “transexual” feita aqui pode ser retrabalhada, mas seu argumento central é que mulheres trans* são mulheres e que qualquer definição viável de “mulher” deve incluir grupos que teorias universalizantes excluíram pela sua própria construção.

A leitura desde o centro

Este movimento é mais complexo. O argumento de Connell, aqui, é de que teoristas ocidentais (ou setentrionais, como ela se refere a estas pessoas neste texto) investem esforços consideráveis determinando ou se posicionando em meio a dicotomias que nós criamos e que têm pouca, se alguma, relevância para pessoas não ocidentais ou meridionais [nt: o contexto da autora é 'do norte', 'setentrional', 'ocidental', por isso o 'nós']. Isto se origina na perspectiva de pessoas teoristas dedicadas a problemas que surgem somente na literatura de suas próprias pessoas, desta maneira perpetuando conceitos equivocados e paradigmas irrelevantes.

No caso das pessoas trans*, encontramos os paradigmas e antinomias de gênero criados por pessoas cis impostas sobre nós, e assim tornadas assustadoramente relevantes em nossas vidas. Frequentemente somos utilizadas como peças em discussões de ‘natureza versus socialização’, uma das maiores antinomias em que somos consideradas como de alguma relevância. Precisa-se somente analisar o infame experimento John/Joan de John Money [http://en.wikipedia.org/wiki/David_Reimer], em que ele toma um garoto cujo pênis fora removido através de um acidente cirúrgico e recomenda às suas pessoas progenitoras que o socializem como garota. O experimento, apesar de suas enormes falhas metodológicas e, sobretudo, éticas, teria o objetivo de resolver o debate extremamente alardeado entre ‘natureza versus socialização’ – uma antinomia eterna nas ciências sociais e naturais. Seu fracasso trágico se tornou bastante famoso, e foi utilizado por muitas pessoas (incluindo-se pessoas trans*) para provar esta ou aquela teoria.

Para além disso, podemos nos encontrar em teorias sobre como a socialização predomina (ver: ‘Problemas de Gênero’, de Judith Butler) e outras pessoas propondo, seja para nos apoiar ou para se opor a nós, que nós demonstramos (ou que estamos tentando provar) que o sexo é inato. Muitas críticas feministas nos desprezam por esta última linha de pensamento, e dizem que reificamos o binário de gênero ao reivindicarmos sermos objetivamente homens ou mulheres, mas somente em um corpo inapropriado. Já foram extensamente discutidas as razões pelas quais esta é uma ideia problemática [http://quinnae.wordpress.com/2010/10/21/a-cliche-trapped-in-a-metaphor%E2%80%99s-body/], e ela representa bem como teorias criadas por pessoas cis são projetadas de volta sobre nós como uma verdade acerca de nossas existências pelas quais supostamente lutamos.

Se as dicotomias como ‘homem e mulher’ ou ‘natureza e socialização’ são tornadas problemas de existências trans*, é porque nós somos com frequência recrutadas nos debates como ‘Figura A’ em favor de um lado ou de outro, muitas vezes contra nossas vontades. Judith Butler tenta utilizar pessoas trans* para provar suas próprias teorias (com as quais, registre-se, concordo em muitas partes, embora ainda assim reconhecendo sua posição e expropriação tácita), enquanto outras pessoas tentam demonstrar que pessoas trans* provam que um “sexo cerebral” inato. Porém, muitas de nós temos autocompreensões complexas que complicam ou tornam inúteis tais dicotomias, e ao invés disso nos encontramos utilizadas em tentativas vãs de resolvê-las.

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Sobre ser mulher trans* e bissexual – uma experiência pessoal

Hoje é o dia da visibilidade lésbica e bissexual, e como bissexual desejo comentar brevemente sobre minha identidade – uma identidade que por sinal costuma ser apagada com frequência das discussões gerais sobre sexualidade. Me identifico também como pansexual, mas para fins políticos, desejo falar somente de bissexualidade.

A bissexualidade sempre enfrentou vários mitos, inclusive na interseção monogamia/bissexualidade, onde pessoas bissexuais são vistas como infiéis ou promíscuas por ser capazes/desejarem se relacionar com dois ou mais gêneros. Além disso, o estigma da promiscuidade sempre recaiu mais fortemente às mulheres bissexuais.

Contudo, certamente as mulheres trans* sempre tiveram uma grande dificuldade em se assumir como lésbicas ou bissexuais. Isso acontece porque dentro da norma heterossexual se uma pessoa “deseja ser de outro gênero” automaticamente ela é heterossexual (heterossexualidade compulsória é inclusive uma das premissas dos compêndios médicos que patologizam a transexualidade). Por isso, ser uma mulher trans* que se relaciona com outras mulheres (cis ou trans*) era/é a “prova” de que a pessoa não era/é mulher de verdade, e sim homem. A ideia heteronormativa de “completude” heterossexual, inclusive, se estende aos relacionamentos gays/lésbicos onde sempre se perguntam “quem é o homem/mulher da relação”, mesmo sabendo-se de que se trata de duas mulheres ou dois homens.

Minha experiência pessoal sempre foi que, enquanto eu me identificava como homem (mas não necessariamente me via como homem), eu sempre achei que fosse gay. Sempre tive uma forte atração por homens, desde a adolescência - e enquanto essa é a experiência de muitas mulheres trans*(antes de se identificarem como mulheres), não significa que todas são ou deveriam ser heterossexuais. O estigma da deslegitimação identitária (mulheres trans* não são mulheres ou são menos mulheres porque se relacionam com outras mulheres) sempre foi (e é) muito forte nos espaços médicos e nos grupos trans*. Só comecei a repensar minha sexualidade quando entrei em contato com o feminismo, alguns anos atrás - e então fui me livrando de certos preconceitos, entre eles uma espécie de “translesbofobia” que eu tinha, me impedindo de relacionar com outras mulheres.

O feminismo foi essencial para essa descoberta, me permiti amar e ser amada por outras mulheres, sentir os prazeres do sexo lésbico, as maravilhas dos “ambientes femme” cheios de carinhos e afetos. Isso não quer dizer que eu ache que esse “ambiente” não possa existir entre homens ou entre pessoas de gêneros diferentes, mas nunca foi essa minha experiência com homens cis – até porque, infelizmente, minha experiência com homens cis sempre foi dentro do espectro fetichista. Os homens cis héteros e inclusive bissexuais sempre me pareceram estar muito mais focados na genitália do que as mulheres - e essas relações genitalizadas sempre me foram muito caras.

Eu escrevi sobre a genitalização dos relacionamentos em outra postagem. A importância que as pessoas dão à genitália de outra, como elemento fundante das relações, elemento essencial dos afetos e do “gostar” romanticamente, é algo que talvez eu jamais entenda – e não acho que isso tem a ver com bissexualidade, mas sim com a importância que colocamos em certos signos corporais que se tornam premissas para nossas relações (inclusive heterossexuais). O que citei brevemente sobre fetiche acima é, inclusive, um bom exemplo. Os homens por quem eu me interessava (com reciprocidade) ora encerravam seu interesse romântico por mim no momento que “descobria” que eu sou trans* (e non-op), ora o interesse se intensificava, pois o que essa pessoa buscava em mim era tão somente essa diferença genitalizada em relação a outras mulheres.

Sempre quis ser vista por mim mesma e não pelo corpo que eu tenho.

No meu mundo ideal todxs seriam bissexuais (e/ou pansexuais). Acredito que as corporalidades são empecilhos que nos previnem de relacionarmos com pessoas maravilhosas. O gênero e o corpo de alguém são, de fato, parte daquela pessoa – mas haveríamos de nos perguntar se isso é tudo o que aquela pessoa é. Desejo conhecer as pessoas – todas elas – em suas particularidades, seus gostos, suas idéias, seus modos. Desejo conhecer as pessoas em outros espectros que não (só) gênero e corpo.

Sou uma mulher trans* e bissexual.

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Algo cheira mal nos trópicos, ou: Ciscos em sapatos trans* (Parte II de II)

Por viviane v.

[link para a Parte I]

dead prez – ‘Propaganda’ http://tny.gs/13JUG3m
dead prez – ‘Walk like a warrior’ http://tny.gs/13JSSrc
dead prez – ‘Hell yeah’ http://tny.gs/13JXXzD
Caetano Veloso – ‘Alegria, alegria’ http://tny.gs/13JY26A
Perota Chingo – ‘Soy el verbo’ http://tny.gs/13JX7TK

“Deve-se lutar pela porra do poder”

“Gotta struggle for the motherfucking power”

Após o almoço, sentamos para um café e um providencial reasoning. Chegamos ao GT alguns minutos após o início, o que me faz perder a apresentação que mais me interessava. A segunda apresentação se inicia, e é sobre “um transgênero”, pessoa descrita como alguém nascida do “sexo feminino” (sic) e identificada com o gênero masculino. Conforme Kate (uso pseudônimo, novamente) descreve a vida de seu ‘objeto’, insistentemente utiliza ‘ela’ para se referir a ele (objeto). Relevo como quem se acostuma a relevar instâncias cissexistas para não ser chamada de ‘impaciente’ e problemática [1], e também por imaginar que Kate se refere a seu ‘objeto’ como ‘ela’ por estar tratando de algum momento ‘gênero conforme’ de sua vida, como a infância. Quando Kate insiste demais em utilizar ‘ela’, levanto minha mão e pergunto se se trataria de ‘ele’ ou ‘ela’. Continuar lendo

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Algo cheira mal nos trópicos, ou: Ciscos em sapatos trans* (Parte I de II)

Por viviane v.

Trilha sonora:
dead prez – ‘Propaganda’ http://tny.gs/13JUG3m
dead prez – ‘Walk like a warrior’ http://tny.gs/13JSSrc
dead prez – ‘Hell yeah’ http://tny.gs/13JXXzD
Caetano Veloso – ‘Alegria, alegria’ http://tny.gs/13JY26A
Perota Chingo – ‘Soy el verbo’ http://tny.gs/13JX7TK

Ideias intersecionais:
José Ribamar Bessa Freire – ‘Morte e vida Amarilda’ http://bit.ly/13JTY6h
Idelber Avelar – ‘Crítica:Trabalho é tão ideológico quanto a ideologia que quer combater’ http://on.fb.me/13JU262

Primeiramente, gostaria de enfatizar o caráter de opinião pessoal deste texto, o que significa que ele, embora inspirado em perspectivas transfeministas, não necessariamente expressa a opinião das pessoas que compõem este coletivo Transfeminismo.

Participei, nos últimos dias, do I Seminário Internacional Desfazendo Gênero: Subjetividade, Cidadania e Transfeminismo, em Natal (RN), organizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Diversidade Social, Gênero e Direitos Humanos Tirésias, da UFRN, coordenado pela Profa. Dra. Berenice Bento. É uma iniciativa extremamente importante e corajosa, a de lutar academicamente por um evento que se proponha a pensar questões de gênero a partir “do protagonismo de pessoas trans*” e de lentes transfeministas. Infelizmente, talvez não tenhamos pessoas trans* em suficiente número na academia para atender ao chamado, mas é plenamente louvável que se potencializem as reflexões e posicionamentos políticos sobre questões historicamente marginalizadas nos movimentos gggg e tratadas a partir de perspectivas colonizatórias+inferiorizantes+patologizantes em parte significativa do meio acadêmico – medicina, psiquiatria, direito e quetais incluídos com muito ‘carinho’ nisso. Fico muito feliz, neste sentido, por todos os momentos em que pessoas trans* puderam construir, junto a outras pessoas acadêmicas, perspectivas e documentos críticos relativos às questões trans*. Continuar lendo

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Que homem eu era?

NOTA: Esse texto é uma continuação de “Sou Mulher?“, publicado em 8 de abril de 2013.

Certa vez eu conversava com uma amiga, que assim como eu é mulher trans*, sobre objetivos futuros. Contei que pretendia iniciar curso de maquiagem e manicure, para saber como me maquiar corretamente, e como pintar minhas unhas – e talvez trabalhar com isso. Segui contando sobre como desde a adolescência tenho interesse por coisas do tipo: “É algo que tenho vontade desde a infância, sabe? Quando adolescente, gostava dessas coisinhas… No fundo sempre me identifiquei com essas coisas… mas como isso ‘não é coisa de mulher’, apaguei da minha mente”.

Minha amiga respondeu, sem entender: “Como assim não é coisa de mulher?”. Depois de alguns segundos, percebi ao que ela estava se referindo: “Ah, desculpe! ‘Coisa de homem, eu quis dizer’: como manicure e maquiagem não são ‘coisas de homem’, eu não fui atrás isso durante minha adolescência.”. Eu cometo esse tipo de engano com frequência.

Até um determinado ponto da minha transição, eu conseguia ver claramente na minha mente uma fronteira, separando o período em que era homem, do momento em que me descobri mulher e me aceitei dessa forma. Essa fronteira ocupava um espaço curto e bem delimitado no tempo. Eu podia usar os pronomes masculinos para me referir a mim mesma, quando falava de algo no passado, antes de me identificar como mulher. Isso não acontece mais, hoje em dia.

É paradoxal. Antes de me aceitar como mulher, eu rejeitava em mim mesma tudo aquilo que significasse ser homem. Ser homem era uma condição com a qual eu tinha que conviver. Eu abominava o rótulo e os papéis de gênero que me foram designados, e os evitava o quanto pudesse. Depois que me aceitei como mulher, essa rejeição desapareceu (tenha em mente que não estou falando do meu corpo). Ao contrário, ao mesmo tempo em que estava ansiosa para descobrir e explorar cada vez mais minha identidade feminina, eu também fiquei curiosa para entender o que era antes disso – entender o homem que era. “Que homem eu era?”, “Que tipo de homem eu era?” são perguntas que ocuparam minha mente por um bom tempo. Eu acreditava que encontraria naturalmente a resposta para essas perguntas: à medida que minha transição prosseguisse e eu me descobrisse cada vez mais, a mulher que sou se tornaria cada vez mais visível e evidente, e as diferenças dessa mulher em relação ao que eu era antes tornariam mais visível e identificável o homem que fui um dia.

Essa era a teoria. Na prática, não foi isso que aconteceu. O tempo não tornou mais fácil entender que homem eu era; ao contrário, tornou mais difícil. À medida que a mulher se tornou evidente, o homem começou a desaparecer. Claro, o objetivo da minha transição era exatamente esse, que o homem que fui um dia desaparecesse para dar lugar à mulher que sou. Porém, eu esperava de esse desaparecimento se desse a partir do momento que me identifiquei e me aceitei como mulher. Eu não esperava que o homem também fosse desaparecer antes, no passado.

Eu nunca me importei que questionassem minha “masculinidade” nem que colocassem em dúvida que eu era homem. Tampouco me importava que me comparassem às garotas. O problema, para mim, não era que me questionassem – eu os ignorava, apenas – mas sim que me cobrassem que fosse um homem. Odeio cobranças, mas não podia ignorá-las porque as pessoas que as faziam tinham poder sobre minha vida. Eu tinha que ser um homem, por necessidade. Mas não tinha a menor afinidade ou identificação com os referenciais masculinos ao meu redor, somente com os femininos. Eu tive que buscar referenciais em outro lugar: na televisão. Nos heróis.

Dentre os vários heróis, existe um tipo de herói não apenas resiste à dor e ao medo, ele simplesmente não sente dor e medo de qualquer forma. Ele não tem sentimentos, emoções, nem qualquer tipo de ambição ou objetivo. Por isso, tende a cumprir ordens cegamente, sem questionar. A negação dos sentimentos, fraquezas e vulnerabilidades é algo exigido de qualquer homem na sociedade em que vivemos, mas esse herói tem uma característica bem particular: ele não é sociável de forma alguma. Ele não tem amigos, nem os deseja. Ele não vive entre homens. Você jamais o verá sentar-se com outros homens numa mesa de bar para beber e falar sobre futebol ou mulheres. Ele vive sozinho, e não se sente mal por isso. No final do filme, ele não fica com a mocinha (se é que existiu alguma): ele termina sozinho, e está bem dessa forma. Na minha mente infantil, isso significou que, de tudo o que alguém pode fazer para “ser” um homem, viver em isolamento também é uma forma de ser homem. Entre todas as alternativas que eu poderia ter escolhido, esta – isolamento – parecia a menos dolorosa. Eu segui por esse caminho.

Eu não fui influenciada por esse modelo. Eu voluntariamente e premeditadamente escolhi esse modelo. Me lembro de conscientemente ter decidido por seguir esse modelo. Isso acabou com as cobranças para que eu tivesse “atitudes de homem”. A frieza e distância emocional características desse modelo supriam a demanda social de “ser homem”. As cobranças que tive o resto da vida passaram a ser que eu me tornasse mais amigável, mais sociável. Que buscasse amizades. Que não me isolasse tanto. Mas, ao contrário das cobranças por atitudes masculinas, essas cobranças não me causavam dor nem sofrimento, então eu pude ignorá-las. Ser homem, para mim, consistiu simplesmente em fazer-me antissocial e manter distância das pessoas, impedindo-as de enxergar em mim qualquer coisa que motivasse novas cobranças e questionamentos. Basicamente, fazer-me desconhecida e deixar que as pessoas vissem em meu isolamento a masculinidade que esperavam. Essa foi a minha “socialização como homem”: encenar um papel que me permitisse não adotar papéis de gênero masculinos e não ser cobrada por isso. Fingir ser um homem, para não ser um homem.

É impossível olhar para o passado e enxergar um homem, em qualquer momento da minha vida. Eu enxergo um personagem, nada mais. Um personagem que vivi o máximo que pude, mas que no final das contas nunca deixou de ser uma mentira. Por isso, a única conclusão que posso tirar é que nunca fui, realmente, um homem. Eu somente fingia ser um, de forma metódica e calculada. Presumivelmente, quem é algo não precisa fingir ser esse algo; portanto, quem é um homem não precisa fingir ser um. Ademais, eu suponho que qualquer homem se desenvolva como tal de forma natural, tendo sua personalidade e gênero moldados tanto pela sociedade quando pela sua individualidade e suas experiências pessoais; e não escolhendo de maneira premeditada sua personalidade e papéis de gênero com base em uma lista de critérios lógicos, como eu fiz. Por outro lado, nunca me senti fingindo ser uma mulher. Ser mulher, para mim, consistiu em deixar de encenar papéis, em primeiro lugar, para depois ser eu mesma à medida que me descobrisse. Chega a ser engraçado ouvir que pessoas transgêneras reforçam os estereótipos de gênero: eu reforçava estereótipos de gênero muito mais antes de iniciar a minha transição, ao passo que, desde que ela começou, tenho quebrado tais estereótipos cada vez mais, e deixando isso bem claro e visível para o mundo.

Essa foi a razão daquela “escorregada” que cometi na conversa que citei no início desse texto. Está bem gravado na minha memória que boa parte da minha vida eu deixei meu gênero limitar o que posso ou não fazer. Por isso, meu subconsciente deve ter calculado (errado) que se na adolescência eu não me permitia me interessar por coisas como maquiagem, deve ter sido porque a sociedade aceitava que somente homens fizessem isso. Esse engano ocorreu porque minha percepção de mim mesma no passado se alterou, e passei a enxergar uma mulher também na infância e na adolescência. A mente humana é complexa e misteriosa.

Ser uma mulher transgênera, no meu caso, há muito tempo deixou de ter a ver “mudança de sexo e/ou gênero”, e passou a ter a ver, cada vez mais, com ser uma mulher, simplesmente. Uma mulher que não tem seus direitos reconhecidos, que enfrenta alguns dos apagamentos e exclusões mais brutais e cruéis que a sociedade pode produzir, e que é tratada como cidadã de segunda classe. Infelizmente. Mas, ainda assim, uma mulher.

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