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Tropos Transfóbicos Nº 7 - Socialização infantil

[N.T. As siglas utilizadas no texto foram traduzidas e estão devidamente explicadas no fim do texto. Os grifos em itálico são da autora; os grifos em negrito são da tradutora].

Por Lisa Harney

Tradução: Hailey Kaas

Eu escrevi isso em algum outro lugar, como resposta a uma questão sobre homens trans e privilégio masculino. A resposta, em específico, se dirigia para alguém que sugeriu que homens trans não recebem privilégio masculino por que são aparentemente socializados como meninas e treinados para serem mulheres. Com isso em vista, a maior parte desse texto é uma resposta a esses comentários.

Além disso, coloquei links para o little light’s Fair [blog em inglês] e para um artigo sobre sexismo e pessoas trans [em inglês] relacionado com as experiências da Dra. Joan Roughgarden e do Dr. Ben Barres no que diz respeito à transição, privilégio masculino e sexismo.

A questão da socialização é um daqueles tópicos de discussão bizantina e perda de tempo, e focar-se na socialização como se todxs fôssemos programadxs como pequenos computadores na infância durante nosso crescimento, como se a socialização de gênero fosse direcionada a nós como mísseis teleguiados, e que crianças CAFAB [Coercitivamente designadx mulher ao nascer - CODEMAN] recebem apenas socialização direcionada para meninas e crianças CAMAB [Coercitivamente designadx homem ao nascer - CODEHAN] recebem apenas socialização direcionada para meninos, e todxs nós trans somos, então, como pessoas cis compartilhando nossa CASAB [Socialização Coercitivamente designadx ao nascer - SOCDAN] até o dia que começamos a transicionar.

Isso não só não é verdade como também é irrelevante. Nessa linha, pode-se argumentar também que deus implantou instruções no seu cérebro acerca do seu gênero.

Primeiramente, eu argumentaria que a natureza da socialização muda ao longo do tempo. Por exemplo, eu duvido que uma criança de dois anos esteja sendo socializada para apoiar cultura do estupro. Eu suspeito que a maioria da socialização nesse caso envolva treinamento para ir ao banheiro, brincadeiras e assistir a vídeos infantis. Claro, pode-se argumentar que está na cultura - e de fato está. Mas isso é algo que ambas as crianças CODEHAN e CODEMAN recebem. A única diferença é se as crianças se percebem ou não como alvos de atitudes que estão por trás dessa socialização. Ate porque os homens não mantêm uma patente exclusiva sob culpabilização das vítimas mulheres para casos de estupro ou violência doméstica, não é mesmo?

Todxs somos socializadxs para uma cultura machista. Somos ensinadxs que ser homem significa X e que ser mulher, Y. Não há um “lá fora” para nenhum de nós. Mulheres, assim como homens, são socializadas para serem machistas.

A discussão sobre o que essa socialização significa, no entanto, sempre coloca crianças (e eventualmente pré-adolescentes, e depois adolescentes) como receptorxs passivxs que nunca reagem àquela socialização. Nós nem discutimos se as crianças que recebem essas mensagens percebem-se como o alvo, o instigador ou ambos. Não falamos sobre o que essas mensagens significam para crianças trans que podem não se perceber como possuindo um gênero, ou podem se perceber como possuindo um gênero que difere de sua SOCDAN.

Por exemplo, eu vi várias mulheres cis presumindo que meninas trans quando eram crianças e adolescentes, interagiram com imagens de ideal de beleza (modelos ou capas de revista, por exemplo) da mesma forma que meninos cis, e não percebem que esse ideal tem um grande impacto sobre nós e nossa autoimagem, e que isso combinado com disforias de corpo/gênero é uma das razões pelas quais somos potenciais suicidas. Eu conheço várias mulheres trans que na pré-transição desenvolveram diversas compulsões alimentares com o objetivo de desenvolver uma aparência mais feminina.

Socialização não é um privilégio. É um meio pelo qual o privilégio é perpetuado. Privilégio é baseado em várias coisas, a maioria relaciona-se em como você é percebidx e como outras pessoas te tratam. Homens trans que passam como cis recebem privilégio masculino. Muitos homens trans que nem sempre passam como cis recebem privilégio masculino, dependendo da situação e contexto.

Da mesma forma, mulheres trans durante ou depois da transição que passam como cis, não recebem privilégio masculino. Mas mulheres trans que são lidas como trans também não recebem privilégio masculino, em nenhum contexto, no geral. Ser uma mulher trans não é algo sustentado culturalmente, porque ser mulher não é algo sustentado culturalmente da mesma forma que ser um homem é sustentado culturalmente, e parece que em vários (mas não em todos) contextos, homens trans recebem um “passe-livre” em coisas que mulheres trans não, muitas vezes de forma explícita. Eu já ouvi Adam Carolla dizer isso explicitamente no Lovelines mais de uma vez, anos atrás. Eu ouvi feministas cis (feministas radicais e outras de linhas diferentes) fazerem caracterizações grosseiras acerca de mulheres trans e caracterizações mais amenas de homens trans, enquanto eram transfóbicas com ambxs. Eu ouvi homens trans falarem coisas do tipo.

Não estou argumentando aqui que homens trans recebem coisas boas para todo o sempre e que mulheres trans recebem só coisas ruins sempre, mas sim que existe um privilégio em ser vistx como alguém indo em direção à masculinidade (de acordo com perspectivas cis) comparado com ser vistx como alguém indo em direção à feminilidade (novamente, de acordo com perspectivas cis) e a socialização não é o fator central em ambos os casos.

Eu gostaria de completar que nós não discutimos as pressões diárias em relação à conformidade de gênero e à cisnormatividade, em relação às narrativas corretas, em relação ao cumprimento das expectativas das pessoas cis no que diz respeito a como homens e mulheres devem ser, e como isso nos afeta diariamente.

Poder - nesse caso sexismo, heterossexismo, cissexismo - se normatiza através da constante execução, e as mulheres - tanto cis quanto trans - estão sempre falhando na feminilidade. Para as mulheres trans, essa falha perceptível tem consequências (cissexistas) mais severas e padrões de imposição mais altos. Mulheres trans que são muito femininas são ridicularizadas por tentarem demais, e por isso são consideradas, na verdade, homens. Mulheres trans que não são femininas o suficiente ou mesmo as que são masculinas, são ridicularizadas por não tentarem o suficiente, e por isso são consideradas, na verdade, homens. Mulheres trans que são lésbicas são ridicularizadas por falharem em sua “condição de ser mulher”, porque as expectativas são que mulheres se atraiam por homens.

Os psiquiatras nos dão dress codes e maneiras de se comportar. Nós damos a eles as histórias que eles desejam ouvir - cisnormativas, heteronormativas, narrativas que estabelecem nossos gêneros como estáticos. Várias vezes nós cumprimos de fato um dress code apenas para sermos atendidas dentro de nossa condição trans. Mulheres trans são disciplinadas nos modos de se vestir, no comportamento e orientação, assim como qualquer outra mulher cis, e as penalidades podem ser desde violência, negação de atendimento médico necessário, até o erro ou apagamento dos nossos pronomes e/ou gêneros de forma constante e maldosa. Quando passamos como cis, o melhor que recebemos é machismo e os julgamentos a partir dos olhares masculinos. Não importa se estamos nos comportando com o que quer que sejam ou deveriam ser as tais “socializações masculinas” ou “direitos masculinos”, nós não estamos recebendo nenhum privilégio masculino. Nós somos mulheres, ou somos coisas sem gênero falhando tanto na “condição de ser mulher” quanto na de “ser homem”.

E, sabe, quando você lida com isso todos os dias isso irá te afetar. Eu fiz quatro anos de teatro no ensino médio, e nesse período eu aprendi como falar e projetar minha voz, e basicamente me fazer ouvida - eu era péssima nisso até que meu primeiro professor de teatro se colocou para me ensinar como fazer isso. No meu primeiro ano fora do ensino médio, eu morei com outra mulher trans que me criticava incansavelmente por “falar alto demais” e durante anos eu perdi tudo o que tinha conquistado. Não deu nem um mês até eu já estar falando bem baixo novamente. Não podemos subestimar o impacto do machismo diário ou do privilégio masculino, e como isso influencia na socialização independente da sua idade. E isso acontece com todas as mulheres adultas, nos policiam todos os dias em como ser mulher, dizem como devemos nos comportar, vestir, falar. Todo mundo faz isso - homens e mulheres - ambxs fazem isso com mulheres. Isso ocorre em todos os níveis. Está difundido.

Socialmente e culturalmente, homens são incentivados enquanto homens. Mulheres não são incentivadas enquanto mulheres. Sim, existe policiamento de gênero direcionado a homens, mas também existem coisas como o Old Spice Guy, que valoriza e apenas ridiculariza levemente a hipermasculinidade*. Mas olhem para os comerciais da Axe. Olhem para os filmes de ação. Os programas de TV de todos os tipos. As revistas. Olhem para tudo.

Isso está para além da transição. Os andaimes sociais para a identidade feminina que deveriam ajudar uma mulher trans a ser tornar uma mulher de acordo com as definições sociais, são estruturalmente o oposto de um apoio. O processo pelo qual você se torna mulher envolve tornar você um abjeto, ensinar que apoio é algo que mulheres não merecem; e isso é algo que mulheres trans têm dificuldade de se defender, pois ser trans também está envolvido num status de abjeção - seu sucesso é determinado através da aprovação de outrxs.

No entanto, embora homens trans também sejam policiados enquanto homens, e têm de cumprir com as narrativas trans e tentar ser “adequadamente” homens, ser homem é algo valorizado. A masculinidade (e considerando que homens são associados/relacionados com masculinidade) é valorizada e admirada, ao contrário da feminilidade e de ser mulher. Enquanto ser trans é, como eu disse previamente, um status de abjeção, ser homem é exaltado como algo bom, a melhor de todas as opções.

Esse contraste afeta homens e mulheres trans de diferentes formas. Homens trans recebem uma liberdade e respeito que mulheres trans não recebem. Isso acontece diariamente. Se você ganha $100 por dia, durante 30 dias, você esperaria ganhar esses $100 no dia 31? Ou você confiaria na experiência da sua infância, quando o dinheiro era mais apertado? E quanto a receber esse dinheiro por 365 dias? Você o esperaria no dia 366? Os sistemas imediatos de punição e recompensa superam os sistemas do passado?

Não é possível reduzir nossa socialização aos nossos primeiros 18 anos, primeiros 12 anos, aos nossos primeiros dois anos (como eu vi uma pessoa tentar fazer recentemente). Nós não podemos discutir pessoas trans e privilégio masculino de forma coerente enquanto tratamos pessoas trans como se fossem pessoas cis, enquanto ignoramos nossas vidas durante e após a transição, nos focando estritamente na pré-transição. Isso é cissexismo e direto sexismo – tentar excluir experiências inconvenientes à suposição de que mulheres trans são na realidade supostamente homens e homens trans são na realidade supostamente mulheres.

Nota: Eu não desejo que ninguém tire dessa postagem a ideia de que homens trans não experienciam sexismo. Eles experienciam sim, especialmente antes e durante a transição. Existem diferenças em como a misoginia se manifesta em relação a mulheres trans em virtude de como a interseção transfobia-misoginia difere para homens trans e mulheres trans.

*Nota²: Jane LaPlain aponta que essa parte está relacionada com brancura, nesse comentário [em inglês].

N.T. CAFAB: Em inglês: coercively assigned female at birth. Tradução: Coercitivamente designadx mulher ao nascer. A sigla correpondente é CODEMAN.

CAMAB: Coercively assigned male at birth. Tradução: Coercitivamente designadx homem ao nascer – CODEHAN.

CASAB: Em inglês: Coercively socialized at birth. Tradução: Socialização Coercitivamente designadx ao nascer – SOCDAN.

Texto original: http://www.questioningtransphobia.com/?p=2884

Agradeço Juno Cremonini e Nicholas Rizzaro pela ajuda na tradução.

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Assédio e estupro de mulheres trans* e consentimento fabricado.

[Aviso de conteúdo: Esse texto usa termos potencialmente desconfortáveis sobre práticas sexuais e dialoga abertamente sobre estupro e assédio].

Quando eu era mais jovem, participei de espaços de socialização que não eram ativistas. Em especial, quando comecei a transicionar, participava de espaços trans* e não raro também de fóruns crossdressers. A quantidade de assédio advinda de homens que se sentiam no direito de invadir nossos espaços para fazer propostas de todos os tipos era absurda - e, logicamente, quando eram negados, saiam proferindo todos os xingos possíveis, corriqueiramente transfóbicos a lá (literalmente) “você nem parecia mulher mesmo” ou “você tinha cara de homem” etc.

Sabemos como a cultura do estupro e o entitlement¹ masculino cria um ambiente onde negar os avanços de um homem é um ultraje. Nessa lógica, ou você é lésbica ou “feminazi” frígida - menos o fato de que simplesmente uma mulher pode não se interessar por um homem.

Da mesma forma, há um pensamento generalizado que mulheres trans* sempre estão dispostas a se relacionarem com homens cis héteros, que isso é o objetivo de todas nós.

Isso advém da interseção machismo e transfobia que, além de tornar nossos corpos públicos ao escrutínio de todxs, ainda nos coloca numa posição de mulheres desesperadas para arranjar um “macho alfa” que vai nos comer e então nos satisfazer enquanto mulheres (tem tanto absurdo nisso que deixo para xs leitorxs se indignarem).

Nem preciso comentar que existem mulheres trans* lésbicas, bissexuais, pansexuais, assexuais etc. Achar que estamos à disposição do tal “macho alfa” porque nosso objetivo é “enganar” os pobres homens héteros coitados é de uma soberba tão grande - como se homens fossem a última bolacha do pacote e como se nós vivêssemos somente para isso, como se nossa identidade existisse em função disso. Achar que, como algumas de nós só “temos um buraco” somos obrigadas a fazer sexo anal. É um cissexismo nojento.

Vou reservar uma postagem à parte para falar sobre a fetichização de mulheres trans*, que está muito ligada com isso. (Ah, os famosos “t-lovers”).

Não raro, há casos de abusos em relacionamentos onde existe disparidade de poder. No caso aqui me refiro aos relacionamentos entre uma pessoa cis e uma trans*. Conheço diversos casos onde um homem cis domina uma mulher trans* pelo uso da agressão física e psicológica. Sabemos que isso também ocorre com mulheres cis, então qual seria a diferença? Ocorre que passamos uma boa parte do nosso tempo tentado nos “provar” como mulheres socialmente. Lutando contra nossas disforias. Mulheres trans* têm uma vulnerabilidade em relação a seus corpos. Não raro eu ouvi meus parceiros homens dizerem preferir uma vulva. Dito às vezes como forma de ataque ou dito na “inocência”. O que pensamos nesses casos? Se eu não estivesse tão segura do meu genital, facilmente talvez eu tivesse novamente pensado em recorrer à CRS. Esse cissexismo nos faz aceitar essas coisas porque achamos que é um preço a se pagar para sermos aceitas. Estamos tão submetidas ao Outro, às expectativas do Outro em relação a nossos corpos, que nossa auto-estima sempre está por um fio. O que eu chamo de cissexismo estrutural é o conjunto de práticas em nível micro e macro que nos levam a odiar nossos corpos e a buscarmos um ideal de beleza em relação a nós e nossos corpos POR CAUSA do Outro.

As pessoas cis têm que nos aceitar como somos, e não nós que temos que nos adaptar a elxs. Nossa autonomia deve ser soberana sobre nossos corpos e sobre nossas identidades. Nos empoderar também é dizer não quando de fato não queremos. O que me leva à outra questão do cabeçalho dessa postagem: estupro.

Às vezes estamos tão obcecadas em agradar o Outro, porque do alto de nossa baixa-estima achamos que ninguém mais irá nos querer (afinal, vejam como somos representadxs na mídia, como nossos corpos são ojerizados), que muitas vezes dizemos sim quando queremos dizer não. Há um conceito sobre isso chamado Manufactured Consent que em tradução livre significa Consentimento Fabricado. Em poucas palavras, quer dizer que às vezes cedemos por cansaço, por convencimento(s), por que achamos que ninguém mais irá nos querer etc. Mas cedemos, e “ceder” não é consentimento - é você “aceitar mesmo não querendo”. E nessa situação qual prazer tiramos disso? Eu já passei por isso e me arrependi de todas as vezes que disse sim querendo dizer não. Não nos enganemos: isso também é estupro.

Mulheres trans*, precisamos retomar nossa autonomia sobre nossos corpos. Eu sei, é difícil, eu mesma também não consigo sempre, pois o fantasma da baixa estima me ronda como ronda a todxs nós. Mas não podemos dar ao Outro (mais) poder sobre nossos corpos. Queremos ter o direito de não gostar de sexo anal e não fazê-lo, afinal sexo é muito mais do que isso! Queremos ter o direito de não fazermos sexo de forma alguma. Queremos ditar nossas regras sobre o que NOS dá prazer e não o contrário. E quem não entende isso não é um/umx parceirx que queremos, porque não irá ter nenhum cuidado com nossos corpos.

E como eu costumo dizer por aí: WE ARE GOLDEN!² ;)

¹ Literalmente “direito”, nesse sentido significa a ideia machista de que homens têm “direito” a mulheres e isso configura, a meu ver, uma das raízes da cultura do estupro.

² Frase famosa do Mika da música e videoclipe “We are golden”.

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Sou mulher?

Estava olhando para minha minibiografia na página “Quem Faz”, deste site: “Mulher trans* e transfeminista em constante processo de transição e autodescoberta”. Leio novamente, e meus olhos se detêm na minha autodescrição: “Mulher trans*”. Releio novamente: “Mulher”. Sou mulher?

Há tempos tenho me questionado sobre minha identidade de gênero. Eu sou realmente uma mulher? Olho para minha foto, ao lado da minibiografia. Ela já é antiga. Na ocasião que a tirei eu estava muito feliz: eu me sentia uma mulher. Hoje, me sinto lutando diariamente para me sentir uma mulher.

Já antes da minha transição, me livrei das ilusões e fantasias sobre me tornar uma mulher linda e maravilhosa tal qual uma larva que ao sair de seu casulo se transformou numa borboleta, e entendi que, por mais que fizesse terapia hormonal e passasse pela CRS minha condição transgênera seria sempre óbvia e exposta, e eu talvez nunca fosse vista pelas pessoas como mulher, por toda a minha vida. As mudanças que buscaria seriam apenas para meu próprio bem-estar pessoal. Apenas eu mudaria, e não o mundo ao meu redor.

Fiz as contas e concluí que, tendo minha condição transgênera eternamente exposta, seria alvo de preconceito e ofensas, e precisava encontrar uma forma de lidar com isso. Tentei “aprender” a lidar com reações negativas por, no início da minha transição, enquanto ainda me apresentava como homem perante a sociedade, transgredir aquela imagem masculina que eu deveria seguir. Passei a usar batom, sapatilhas, lenços e outros acessórios “femininos”. Nessa época criei meus mecanismos para lidar com os olhares reprovadores e condenadores, as piadinhas, e os cochichos.

Esporadicamente me vesti e me apresentei como mulher, em público e em plena luz do dia. Eu não buscava ser lida como mulher pela sociedade porque, na minha cabeça, não tinha a menor chance de conseguir isso. Ao invés disso, me acostumei a fazer disso mais uma transgressão da imagem masculina que eu mesma via no meu corpo, e a fazer dessa transgressão minha forma de autoafirmação da minha identidade de gênero feminina. Usei o que tinha aprendido de minhas experiências anteriores para lidar com o preconceito.

Enfim, tive que fazer várias viagens de avião num intervalo curto de tempo, e coloquei um maior “empenho” em me apresentar como mulher. Aparentemente esse empenho foi “recompensado”: as pessoas me viam como mulher, ao menos até o momento que ouvissem a minha voz, e arregalassem os olhos de susto. Me chamavam de “moça” ou “senhora”, mesmo olhando diretamente na minha cara! Eu fiquei muito, muito feliz na ocasião.

Foi pouco depois disso que tirei a foto citada acima. Por isso estava tão feliz: tinha conseguido fazer minha imagem corresponder à minha identidade de gênero. Estava tão confiante na época, que passei a expressar publicamente minha identidade de gênero feminina em espaços desconhecidos. Até mesmo tive coragem para usar o banheiro feminino em locais públicos. Foi nessa ocasião que passei a viver como mulher em full time, isto é, não mais me apresentava esporadicamente como mulher ao sair na rua. Agora, eu realmente vivia como mulher, para mim mesma e para a sociedade, em casa, na rua, no trabalho… 24 horas por dia. E tenho vivido assim, há alguns meses.

Eu cheguei a pensar que minha passabilidade como mulher cis aumentaria com o tempo. Hoje, meses depois, percebi que não. Ao contrário, tem sido mais difícil hoje, do que naquela época, em que tinha muito menos chances de conseguir isso. Por algum tempo fiquei me perguntando o que eu estava fazendo errado. Por fim, me dei conta de um problema sério que deixei surgir durante a autodescoberta e construção da minha identidade feminina: ao contrário da época que era “transgressora”, em que me apegava à crença de que era uma mulher, independente da minha aparência e das opiniões alheias, eu passei a medir o quanto sou mulher em função do reconhecimento da sociedade. No passado, eu não esperava por esse reconhecimento. Lidava diariamente com a desvalidação da minha identidade feminina, e nas ocasiões que fui passável, como eu realmente não estava esperando por isso, essa “validação” veio como uma agradável surpresa. Porém, quando passei a viver como mulher em tempo integral, passei a procurar ativamente por essa passabilidade, por essa validação. Meu sensor interno, que identifica quando não estou conseguindo ser passável como mulher cis, antes permanecia desligado, mas agora está ativado e no máximo. Simplesmente estou mais atenta às situações cotidianas em que minha identidade de gênero feminina é invalidada. É como sempre foi – só fiquei mais sensível e perceptiva.

Me sinto mulher, mas parece que minha “feminilidade”, seja lá o que isso for, é como uma fantasia que tiro, todos os dias, ao voltar do trabalho: ao remover os sapatos, o vestido, o modelador, a peruca, a maquiagem e os acessórios, o que sobra? A resposta incômoda, que tem me atormentado há tempos, é: um corpo masculino. Nada mais. Sim, desde meu contato com o Transfeminismo, sei que não é um corpo que faz de alguém uma mulher, mas o que há de intangível por dentro: a personalidade, a identidade. Apesar de ter abraçado essa verdade como boia de salvação, ainda tenho que lidar com esses sentimentos todos os dias.

Quando venço essa luta diária para ser vista como mulher, a recompensa é deixar de ter homens rindo de mim por ser um “homem travestido”, para ter mulheres rindo de mim porque me acham gorda, feia, com cabelo ruim, mal vestida – enfim, por ser uma mulher feia. É nessa hora que sinto falta dos privilégios masculinos que já tive, principalmente do privilégio de não ser medida pela minha aparência. No fim, a pressão conjunta de ser passável como mulher cis, e daí sofrer opressão machista para me encaixar num determinado padrão de beleza e ser medida por isso, me sobrecarregou, e me derrubou, por mais que eu tenha tentando estar pronta, emocionalmente e psicologicamente, para quando isso acontecesse.

No inicio da minha transição, estava convicta que preferia mil vezes ser uma mulher feia, do que passar o resto da vida como homem. Hoje? Bom… eu fui levada a experimentar as consequências de me apresentar e ser lida como mulher, e acabei revendo esse conceito. Mas, no final das contas, concluí que sim, eu não poderia estar vivendo de outra forma, e não deixarei de expressar e defender minha identidade de gênero feminina, de forma alguma. Deixar de fazer isso seria a morte. Sou mulher? Sim, sou mulher. E, em adição à opressão que já sofro por ser uma pessoa transgênera, também sou oprimida por ser mulher. Vou me lembrar disso da próxima vez que eu me questionar se sou mulher.

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Resumo da Semana!

A seção “Resumo da Semana” irá expor os acontecimentos semanais envolvendo questões trans* ou ativistas no geral, com um breve resumo descontraído das notícias.

  • Primeiramente, Nell Isabelle – infelizmente mais um dos (muitos) casos de pessoas trans* impedidas de usar o banheiro de identificação. O pedido para ser chamada pelo nome correto também foi negado. Cissexismo que se consolida institucionalmente através do apelo à legitimação do estado junto aos documentos oficiais para que, então, um sujeito trans* possa ser tratadx pelo nome correto e ter acesso ao banheiro de sua preferência:

    “Disseram que eu poderia constranger alguém se usasse o banheiro feminino. Isso me foi dito pela Direção. Preciso de documentos mostrando que me chamo Isabelle para ser chamada de Isabelle e preciso que os documentos constem ‘feminino’ para usar o banheiro”

    Confira a notícia aqui: http://migre.me/dn3K4

    E o vídeo: http://migre.me/dmOXE

Porque, como sabemos, para mijarmos irmos ao banheiro temos que pedir autorização do Estado…

  • Felizmente uma notícia boa: Argentina irá estender o reconhecimento da alteração do nome para pessoas trans* estrangeiras residentes no país!

    Veja aqui: http://migre.me/dmNn7

  • Está rolando por aí uma petição na Avaaz para cassar o CRP do Malafaia. Não sabemos se dará em algo, mas assinamos qualquer coisa que seja contra o Malafaia…
  • O Site Autostraddle está precisando de blogueiras trans* que terão de escrever em inglês, mas estão pagando $50 por artigo! Vale a pena dar uma conferida aqui (em inglês).
  • Como nem tudo são flores: Kyvia Torres, uma mulher lésbica, foi brutalmente agredida por – adivinhem – policiais que foram chamados após algum homofóbico nojento transeunte se incomodar com uma briga dela com a companheira. Ela teve os dedos decepados: http://migre.me/dmO70 E como essa notícia mal cita homofobia porque imaginem isso não existe, veja essa aqui: http://migre.me/dmOkC
  • A lymda página do FB “Menos Apagamento, por favor” agora tem um tumblr que nós trataremos de seguir imediatamente! <3
  • Há um projeto de Feminismo Intersecional ma-ra que surgiu essa semana, super recomendo!

    Confira um trecho da proposta do projeto:

    “Sabemos que nenhum movimento social é perfeito, mas ao longo dos anos a corrente principal do feminismo insiste em ignorar as causas e as vozes de pessoas que não fazem parte do perfil branco, cis, hétero e de classe média, para dar alguns exemplos. Ninguém tem o direito de invalidar a prática do feminismo de quem quer que seja. Não é a nossa intenção, pelo menos. Mas aqui iremos questionar e criticar esse feminismo tradicional, queremos desconstruir a ideia de que é possível apenas uma ramificação do movimento falar em nome de todas as outras. Queremos e vamos dar espaço efetivo a essas pessoas silenciadas.”

E por enquanto é só. Até semana que vem…

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Microagressões ou um dia como trans* na sociedade cissexista

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.

Por Hailey Kaas

A pessoa X é uma pessoa trans*. Mais especificamente, é uma mulher trans*. Todos os dias, quando acorda, sua primeira dificuldade é em tomar banho e se arrumar para sair. No banho, se vê como algo feio e indesejado; Na hora de escolher suas roupas, não consegue satisfazer-se, pois acredita que nenhuma lhe “cai bem”. Por “cair bem”, a pessoa x sabe que ela espera, mesmo que inconscientemente, que aquela roupa vá lhe garantir o “direito” de ser vista como mulher sem a questionarem ou importunarem. Ela olha seu rosto no espelho e repara, novamente, em como seus pêlos faciais estão aparentes, por mais que tenha passado a lâmina cuidadosamente. Pensa: “preciso juntar dinheiro urgentemente para fazer aquela tal de depilação a laser”.

Ela gosta de maquiagem, mas evita usar. Seu maior medo é ser vista como aquelas personagens do Zorra Total. Por outro lado, deseja avidamente esconder as marcas dos pêlos faciais e algumas curvas que ela considera masculinas.

A pessoa X sai para trabalhar. Na rua, coloca óculos de sol e fones de ouvido. Não quer olhar para as outras pessoas e perceber que estão lhe observando, julgando, criticando, ojerizando. Prefere pensar que não existe ninguém ao redor, e desesperadamente imerge nas músicas que ouve para desligar-se do mundo.

Eventualmente, acaba ouvindo algum xingamento aqui e ali, pois a força do grito ultrapassa a capacidade de abafo dos fones. Entre “traveco” e “bicha”; “que pouca vergonha” e cantadas em forma de piadas transfóbicas, ela pega o transporte público.

Ela trabalha em um Call Center. Lá, atende com o nome civil apesar dos pedidos feitos à administração para que pudesse atender com seu nome correto.

No trabalho, sente vontade de ir ao banheiro. Sabe muito bem que deve segurar, pois não a deixarão utilizar o banheiro feminino, e usar o masculino está fora de cogitação. Segurar a urina não é nada perto da humilhação e medo que tem de ir ao banheiro.

Após o trabalho, ela vai ao banco, uma vez que necessita sacar o valor do aluguel. No caixa, o atendente solicita seu RG; Logo vemos uma risadinha e um “Sr. tal” pronunciado em alto e bom tom na frente de todos.

Volta rapidamente para casa, pois tem medo de andar na rua quando escurece. Lembra bem de conhecidas que foram agredidas em ruas próximas. “Se nem os gays estão seguros naquele bairro chique”, pensa, ao lembrar-se do famigerado caso da lâmpada fluorescente.

Chega em casa e vai correndo ao banheiro. Depois, vê a novela e usa o computador que felizmente conseguiu adquirir depois de juntar algum dinheiro. Participa de grupos trans* e se informa sobre hormônios e cirurgias. Está ansiosa e feliz, pois amanhã irá a sua primeira consulta naquele centro famoso que abriu em São Paulo.

Mal sabe a pessoa X que os médicos do centro a olharão com desdém e com pouca, senão nenhuma preocupação real com sua saúde e bem estar. Em poucos meses ela irá ao tal centro apenas por obrigação e para obter a receita de hormônios (e assim pegar de graça na farmácia).

Antes de ir dormir, pensa, mais uma vez, como irá falar com seus pais sobre essa questão. Não sabe como irão reagir, mas tem quase certeza de que será negativamente.

A pessoa X sou eu, são minhas amigas trans*, são meus amigos trans*, somos todxs.

As situações vividas por muitas pessoas trans*, chamadas aqui de microagressões, ocasionam não raro estresse e depressão. As microagressões concorrem para nos expulsar cotidianamente dos espaços sociais, como se fôssemos um mal a ser extinto. As pessoas que nos maltratam, o fazem com o objetivo consciente ou inconsciente de realizar a assepsia social necessária para se livrarem das pessoas que consideram anormais. Desejam acabar com a “pouca vergonha” desses “sujeitos privilegiados”, como costuma dizer aquele famoso pastor.

Desde no espaço privado, em casa, até nos espaços de socialização, não estamos um minuto sequer em paz.

Por isso, nessa semana da visibilidade trans peço que, ativistas ou não, nos eduquemos sobre as questões trans* - em especial sob a ótica (trans)feminista. Dar um pouco de dignidade, paz e conforto para essas pessoas, significa transformar suas vidas em possíveis, em fazê-las vivíveis e consequentemente, um pouco menos desumanizadas.

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