Arquivos da Categoria: Uncategorized

Denúncia acerca do nome social entregue à ouvidoria da Unicamp

Hoje escrevi uma manifestação online para a ouvidoria da Unicamp e vou postá-la aqui. Também vou colocar a mensagem recebida pelo site sobre o número do protocolo para que todxs possam acessar o processo. Surpreendentemente, recebi uma ligação da ouvidoria poucas horas depois, conversei com uma atendente que me pareceu bastante empática. No entanto, não são apenas palavras reconfortantes que precisamos, mas sim de medidas concretas. Não vamos deixar passar batido o fato de que, apesar dos inúmeros decretos e portarias sobre o nome social, insistem em relegar um direito humano a uma completa negligência. Vamos repudiar qualquer política cishigienista que impede pessoas trans* de terem sua identidade reconhecida, como visto nesta lamentável resolução.

***

Venho por meio deste saber como anda meu pedido de uso de nome social na Unicamp. Meu nome social é Beatriz Pagliarini Bagagli (RA 118836) e precisa ser atualizado o mais depressa possível. Ano passado, conversei com o advogado do SAE e ele me disse que o processo seria simples, inclusive me deu grandes esperanças que o sistema já iria aceitar meu nome social no semestre seguinte. No entanto, passou o ano e nenhuma mudança foi feita. Ano passado, dia 09/11/2012, enviei um pedido oficial cujo Protocolo/Ano é 22302/2012 para a DAC através das “solicitações diversas”. Surpreendentemente até hoje não obtive resposta. Peço encarecidamente que este protocolo seja atenciosamente observado e atendido.

É inaceitável que a Unicamp não se apresse para acatar meu pedido, visto que é um direito humano básico à identidade e não pode ser negociável e protelado tampouco pode estar sujeito a questões como alta ou baixa demanda. Igualmente execrável é uma aparente negligência por parte da Unicamp que através desta atitude continua reproduzindo uma política higienista que relega a pessoas transgêneras (travestis e transexuais) a morte simbólica e exclusão. Ao reiterar que a Universidade não é um espaço inclusivo e seguro para essas pessoas a Unicamp assume uma política institucionalmente transfóbica. Pessoas transgêneras precisam ter seus nomes sociais legitimados institucionalmente, caso contrário, estarão sendo marginalizadas. A falta da inserção do nome social gera consequências práticas: expõe os alunos transgêneros a possível humilhação e extrema ansiedade na hora de se engajarem em procedimentos burocráticos aparentemente banais e naturalizados para pessoas cisgêneras (aquelas que não são transgêneras) tais como lista de presença, chamadas, provas, trabalhos, etc. Visto essa demanda, inúmeras portarias resguardam o direito das pessoas transgêneras, tais como:

i) o decreto estadual nº55. 588, de 17 de março de 2010, que dispõe sobre o tratamento de pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo e dá providências correlatas;

ii) o decreto municipal nº17.620, de 18 de junho de 2012, que dispõe sobre a inclusão e uso do nome social de pessoas travestis e transexuais nos registros municipais de Campinas relativos a serviços públicos prestados no âmbito da administração direta e indireta;

iii) A portaria federal nº233, de 18 de maio de 2010, que assegura no âmbito da administração pública federal direta o uso do nome social adotado por travestis e transexuais.

Assim, tenho meus direitos a uso do nome social garantidos pelo Estado e caso não seja atualizado até o próximo semestre (tendo em vista que a cada novo semestre terei aulas com novos professores, me expondo novamente a situações vexatórias) terei que encontrar outros meios jurídicos cabíveis para que meus direitos sejam preservados.

Muito obrigada pela atenção.

Protocolo da Manifestação

Prezado(a) Beatriz Pagliarini Bagagli,
Agradecemos o seu contato e informamos que sua manifestação foi protocolada sob nº 485475 em 12/03/2013.

Sua manifestação será analisada e seu trâmite (ou andamento) poderá ser acompanhado pela internet no link abaixo:
http://www.ouvidoria.sp.gov.br/Acompanhamento.aspx

Atenciosamente,
Ouvidoria Universidade Estadual de Campinas - Unicamp
Fone: (19) 3521-4484

[Atualização - 13/04/2013]

Olá pessoal, venho aqui publicar meu texto que vai sair no jornal do CACH deste mês sobre a situação do nome social na Unicamp. Vou mandar o texto também para a ouvidoria, acho importante que elxs ouçam as pessoas trans*, afinal de contas, é necessário que as pessoas que estão na posição de poder ouçam as críticas para que (assim espero) implementem o nome social de forma menos cissexista e mais humanizada. Sim, conseguimos um avanço, parcial. Isso não significa que iremos nos abster de um posicionamento crítico.

***

O uso do nome social na Unicamp foi implementado. Nome social se refere ao nome das pessoas transgêneras (incluindo aqui travestis e transexuais), sendo ele não coincidente com seu registro civil. O reconhecimento do nome com a qual as pessoas transgêneras se identificam é essencial para que essas pessoas não sofram violências transfóbica tais como a deslegitimação das suas identidades, trazendo implicações profundas em suas integridades psíquicas e intelectuais e constrangimento na hora de se engajarem em procedimentos burocráticos que envolvam documentos. Parte do problema na Unicamp foi solucionada no que se referem aos documentos internos, tais como listas de chamada. Nesses documentos, consta-se apenas o nome do qual as pessoas se identificam, no caso das pessoas trans*, o nome social sem qualquer menção ao registro civil. O mesmo não se pode dizer dos “documentos externos”, os quais se entendem que o registro civil deve ser explicitamente mencionado ao lado do nome “social”.

Não é porque conseguimos uma gambiarra de direito que não vamos ter um posicionamento crítico dessa política paliativa do nome social. Tais políticas não são exclusivas da Unicamp. As instituições do Estado se veem “obrigadas” a incluírem o nome social das pessoas transgêneras, porém, pouco se importam com a forma que o fazem. Como não existe nenhuma lei que garanta a efetiva mudança do nome civil, essas políticas só mostram o quanto são paliativas, já que o nome social é visto apenas como um apelido, afinal, nos documentos oficiais o que vale continua sendo o nome civil. Não apenas paliativas, mas se tornam estigmatizadoras devido à forma com que são colocadas em prática. Pessoas transgêneras passam a serem pessoas com dois nomes: institui-se o apartheid trans*.

Nesse caso, não apenas elementos discursivos significam: a própria diagramação, o posicionamento em que os campos “nome social”, “nome civil” se configuram nos documentos oficiais tem significado, pois revelam uma hierarquia entre os campos e consequente estigmatização das pessoas transgêneras. Em meus dados cadastrais, consta o seguinte nome para documentação externa: Meu registro civil ao lado do meu nome “social”. Vamos supor um nome: a pessoa trans* se chama Priscila, porém seu registro civil é Dimas. Seu nome na documentação externa ficaria “Dimas Priscila”. Isto, além de ser ridículo, é inaceitável.

Venho expressar meu repúdio contra a própria lei estadual que foi utilizada para endossar o uso do nome social na Unicamp e a forma como a instituição se fez “obrigada” a aceitá-la e implementá-la dessa forma acrítica, fazendo nenhum esforço para executá-la de forma diferente da proposta no decreto. O nome civil não representa estas pessoas, logo, a insistência em mencioná-lo é uma forma de agressão simbólica. A solução efetiva para a situação dos documentos das pessoas transgêneras é a alteração oficial dos documentos, porém, atualmente existem muitos entraves que dificultam a retificação. Nesse sentido é urgente a aprovação da lei de identidade de gênero (PLC 5002-2013 denominada “Lei João W. Nery”). Enquanto não é sancionada, pessoas transgêneras precisam dispor do máximo de “provas” cissexistas possíveis (tais como laudos pseudocientíficos de profissionais “psi” e médicos, fotos, etc) que validem suas identidades. Nesse sentido, pessoas trans* que estudam na Unicamp podem pedir para que seus documentos externos venham com o nome “social”, para que o volume de provas a ser apresentado ao juiz seja capaz de aumentar a chance de ele ser benevolente ao ponto de realizar a retificação, um direito que deveria ser inalienável. Essa estratégia, não significa, no entanto, que estamos anuentes a esta forma de colocar o nome social nos documentos externos.

Se é “necessário” que o nome civil conste nos documentos externo (sendo esse fato em si já bastante questionável) acredito que existem n formas de constá-lo. O nome social da pessoa trans* não deve estar em uma posição não simétrica com o nome social das pessoas cisgêneras. Sim, vou propor um deslocamento de sentido: pessoas cisgêneras também tem um nome social. A diferença está no fato que o nome social das pessoas cisgêneras é legitimado institucionalmente, ou seja, ele coincide com o seu registro civil. Então, se os nomes sociais das pessoas, sejam trans* ou cis, não diferem em natureza, não devem diferir na forma que são mencionadas em documentos oficiais. Repudio qualquer forma de entender o termo “nome social” como exclusividade de pessoas transgêneras. Não precisamos ser exotificadxs e marginalizadxs pela cisnorma. Simetria para nome de pessoas trans* e cis é fundamental para a dignidade das pessoas trans*. Repensar formas de categorizarmos o mundo e os conceitos como o próprio nome aqui se tornam muito importantes para que pessoas trans* não sejam empurradas para uma lógica desumanizadora e para que as práticas que ironicamente visam protegê-las não se tornem mais uma forma de opressão.

3 Comentários

Arquivado em Uncategorized

Categoria Mulher: não se deixe “enganar”

“Mulheres”. O que nos vem à cabeça quando dizemos essa palavra? O quão amplo é a nossa categoria “mulher”? Ela abrange mulheres negras, deficientes, homo/bi/pansexuais, pobres? Até que ponto homogeneizamos essas categorias que, a princípio, devem ser tão amplas? Até que ponto as especificidades estão incluídas no nosso conceito sobre “ser mulher” ou até quanto elas precisam ser explicitamente mencionadas para que o que buscamos referenciar seja inteligível?
Muitas vezes é preciso explicitar sobre qual mulher estamos falando: a negra, a pobre, a deficiente, a não heterossexual, a fim de não apagar certas demandas específicas. Quando nos propomos a lutar pela igualdade entre os gêneros e dizemos que defendemos a “mulher”, devemos incluir todas as mulheres e, consequentemente, todas as suas especificidades. Uma mulher negra não vai ser livre da opressão enquanto não lutarmos contra o racismo, por exemplo.

Mas e se nem ao menos como mulher uma determinada mulher é socialmente reconhecida? Para ela, portanto se trata uma luta em dobro: além da necessidade de darmos visibilidade para determinadas especificidades desse grupo de mulheres, precisamos, sobretudo, incluí-las no próprio conceito sobre o que é ser mulher. É este o caso das mulheres transgêneras.

Nos atentarmos sobre qual é o sujeito representado pelo nosso imaginário é um exercício importante: pode nos revelar o quanto nossa maneira de categorizar o mundo, incluindo aqui pessoas, pode ser excludente. Nesse sentido, o Transfeminismo luta pela defesa dos direitos e da dignidade das pessoas transgêneras. E isso só é possível através da conscientização e problematização acerca da categoria mulher, o que nos leva à luta pelo reconhecimento das mulheres transgêneras como mulheres. Deste modo, mulheres transgêneras e suas vozes deixarão de serem invisibilizadas na sociedade. A disputa por uma palavra, neste caso a palavra “mulher”, é também uma luta política. É uma busca a fim de deslocar os sentidos únicos ditados pela norma cisgênera.

Frequentemente vejo que muitas pessoas se sentem no direito de desqualificar o gênero de pessoas transgêneras. O cissexismo está fortemente enraizado pela crença de que as pessoas nascem homens ou mulheres, sendo isso imutável. A partir desta ideia, as mulheres transgêneras vão ter suas identidades deslegitimadas e, consequentemente, desumanizadas. Não respeitar a identidade de gênero de uma pessoa trans* também é uma violência transfóbica. Temos que alertar para a não existência de uma ordem natural que legitima a identidade de gênero das pessoas cisgêneras.

Tanto as pessoas trans* como cis, todas elas possuem identidade de gênero e nenhuma é mais ancorada a uma suposta verdade biológica que a outra. Em termos de verdade ou mentira sobre nossas identidades, pessoas cis e trans* estão no mesmo barco. A mesma certeza ou dúvida a cerca das subjetividades das pessoas trans* está presente nas subjetividades das pessoas cis. Os barcos só se diferenciam na medida em que a identidade trans* é socialmente deslegitimada e isso nada tem de natural. É uma violência e, assim como o racismo, a homofobia e outras formas de opressão, precisa ser desnaturalizada e combatida.

Deslocar o sentido único de “mulheres” (incluindo nessa categoria as mulheres transgêneras) não se resume a uma ação que tem suas consequências apenas no “mundo das ideias”. Pelo contrário, existem muitas implicações práticas e cotidianas. Até mesmo as relações interpessoais não escapam de serem permeadas por relações de poder. Vejo muito sobre a necessidade de uma mulher trans*, ao se engajar em um relacionamento, ser “eticamente” obrigada a deixar explícito a sua identidade de gênero ou a sua morfologia genital. Essa exigência cissexista se liga muito a discursos que freqüentemente acusam pessoas transgêneras (em especial, mulheres) de “enganarem” seus parceiros.

Se entendermos a transgeneridade como mais uma característica qualquer, dentre tantas e quaisquer outras, se compreendemos que pessoas trans* e cis devem ser tratadas de forma simétrica, fica evidente que uma pessoa não é obrigada a fazer de sua transgeneridade seu cartão de visita, da mesma forma que uma pessoa cisgênera não o faz. Uma mulher transgênera não mente se diz que é uma mulher. Ela não é obrigada a falar sobre sua identidade ou genital assim como outra pessoa cisgênera não o é.

Com isso não estou querendo forçar uma obrigatoriedade de que as pessoas se relacionem com mulheres trans*. É evidente que não estou falando disso. Quem acredita neste discurso ou o pratica acaba acusando algo de perigoso nas mulheres trans*, o que reforça que elas são diferentes, aberrações e anomalias da natureza. Se transgeneridade é um fator tão decisivo a ponto de apenas por ele alguém se recusar a entrar em um relacionamento, certamente é porque vivemos em uma sociedade extremamente transfóbica. O discurso da necessidade de uma pessoa trans* ser obrigada a contar sobre sua identidade só se sustenta pela crença de que ser transgênero é uma abominação. Logo, compactuar com essa prática é reproduzir a violência que pessoas trans* sofrem, de que elas não merecem viver. Propaga-se assim a disforia.

Proponho uma lógica diferente: são as pessoas trans* que precisam ser protegidas de relacionamentos abusivos e não pessoas transfóbicas que precisam ser previamente “alertadas” sobre a condição transgênera. É o sentimento das pessoas transgêneras que está em jogo, pois são elas que estão sendo oprimidas. Ironicamente, já me deparei com argumentos que evocavam uma suposta “ética”. Pois bem, minha ética está em proteger quem de fato deve ser protegido. Então eu gostaria muito que essas pessoas que não gostam de se relacionar com pessoas trans* deixassem isso bem claro. Elas que devem estampar isso de antemão já que eu, enquanto mulher trans*, não quero ser enganada por alguma pessoa que pode de repente não gostar de mim apenas pelo fato de eu ser trans*. Afinal, a única excrescência ou anormalidade não está na transgeneridade, mas sim na ojeriza que surge quando se toma conhecimento da transgeneridade alheia. Logo, é o seu “asco” que deve ser mencionado, pelo seu caráter de excepcionalidade. E de uma única tacada, estaremos também deslocando o conceito de normalidade, de modo que ser transgênerx passa a ser encarado como um fato banal. Afinal de contas, quem está enganando, na verdade, é o cissexismo.

Caso contrário, é a transfobia que prevalecerá através do discurso que relega as pessoas trans* a desumanidade. Não vamos continuar reproduzindo a ideia que pessoas trans* são anormais, não-homens, não-mulheres de verdade ou simplesmente não-humanas. Não vamos continuar celebrando dias-das-mulheres sob uma terrível escuridão transfóbica, vamos celebrá-los mais conscientes de que a categoria mulher é mais ampla que a cisnorma pode supor.

3 Comentários

Arquivado em Uncategorized

Resumo da Semana!

A seção “Resumo da Semana” irá expor os acontecimentos semanais envolvendo questões trans* ou ativistas no geral, com um breve resumo descontraído das notícias.

  • Primeiramente, Nell Isabelle – infelizmente mais um dos (muitos) casos de pessoas trans* impedidas de usar o banheiro de identificação. O pedido para ser chamada pelo nome correto também foi negado. Cissexismo que se consolida institucionalmente através do apelo à legitimação do estado junto aos documentos oficiais para que, então, um sujeito trans* possa ser tratadx pelo nome correto e ter acesso ao banheiro de sua preferência:

    “Disseram que eu poderia constranger alguém se usasse o banheiro feminino. Isso me foi dito pela Direção. Preciso de documentos mostrando que me chamo Isabelle para ser chamada de Isabelle e preciso que os documentos constem ‘feminino’ para usar o banheiro”

    Confira a notícia aqui: http://migre.me/dn3K4

    E o vídeo: http://migre.me/dmOXE

Porque, como sabemos, para mijarmos irmos ao banheiro temos que pedir autorização do Estado…

  • Felizmente uma notícia boa: Argentina irá estender o reconhecimento da alteração do nome para pessoas trans* estrangeiras residentes no país!

    Veja aqui: http://migre.me/dmNn7

  • Está rolando por aí uma petição na Avaaz para cassar o CRP do Malafaia. Não sabemos se dará em algo, mas assinamos qualquer coisa que seja contra o Malafaia…
  • O Site Autostraddle está precisando de blogueiras trans* que terão de escrever em inglês, mas estão pagando $50 por artigo! Vale a pena dar uma conferida aqui (em inglês).
  • Como nem tudo são flores: Kyvia Torres, uma mulher lésbica, foi brutalmente agredida por – adivinhem – policiais que foram chamados após algum homofóbico nojento transeunte se incomodar com uma briga dela com a companheira. Ela teve os dedos decepados: http://migre.me/dmO70 E como essa notícia mal cita homofobia porque imaginem isso não existe, veja essa aqui: http://migre.me/dmOkC
  • A lymda página do FB “Menos Apagamento, por favor” agora tem um tumblr que nós trataremos de seguir imediatamente! <3
  • Há um projeto de Feminismo Intersecional ma-ra que surgiu essa semana, super recomendo!

    Confira um trecho da proposta do projeto:

    “Sabemos que nenhum movimento social é perfeito, mas ao longo dos anos a corrente principal do feminismo insiste em ignorar as causas e as vozes de pessoas que não fazem parte do perfil branco, cis, hétero e de classe média, para dar alguns exemplos. Ninguém tem o direito de invalidar a prática do feminismo de quem quer que seja. Não é a nossa intenção, pelo menos. Mas aqui iremos questionar e criticar esse feminismo tradicional, queremos desconstruir a ideia de que é possível apenas uma ramificação do movimento falar em nome de todas as outras. Queremos e vamos dar espaço efetivo a essas pessoas silenciadas.”

E por enquanto é só. Até semana que vem…

Deixe um comentário

Arquivado em Cissexismo, Feminismo Intersecional, LGBT, Resumo da Semana, Trans*, Transfobia, Uncategorized

Travestis têm gênero, respeite!

É recorrente encontrarmos nas notícias e no falar geral o uso dos pronomes tratando mulheres travestis no masculino. Também ocorre o mesmo com pessoas transexuais. No entanto, intuitivamente acredito que com as travestis essa situação é um pouco mais “grave”, pois existe a crença ou imaginário social de que, como travestis não procuram a CRS (cirurgia de redesignação sexual), são “apenas” “homens que se vestem de mulher”. Isso se deve ao preconceito cissexista de acreditar que existe uma verdadeira essência por trás da biologia ou da morfologia. É acreditar que alguém que tenha um pênis esteja de alguma forma ligada a uma identificação ou condição masculina, assim como ocorre com a vulva e vagina com a feminilidade. Se a mulher trans* não quer construir uma vagina cirurgicamente, ou não tem a disforia corretamente “diagnosticada” por um psiquiatra, relacionada ao seu genital, não desenvolver uma narrativa esperada pela equipe de médicos, ela não é uma mulher de verdade ou nem ao menos é uma mulher.

Assim, pessoas transexuais/trans* que percorrem todos os procedimentos esperados ganham certa credibilidade em suas identidades. Mesmo que elas também não estejam isentas de serem desqualificadas e ojerizadas, pessoas trans* - neste caso, travestis, como são comumente designadas pelo discurso médico - que estão à margem desses processos médicos/jurídicos de validação de identidades podem estar em uma situação ainda mais vulnerável. Sem contar com diversos outros possíveis marcadores de subalternidade associados à identidade travesti: raça, escolaridade, situação de vulnerabilidade devido à prostituição ou outras condições… Assim fica ainda mais fácil se referir a uma travesti – mulher – no masculino indevidamente. As pessoas que fazem esse erro recorrem de justificativas das mais absurdas até as mais escancaradamente preconceituosas, passando inclusive pelo argumento de autoridade que a gramática normativa supostamente concede. Já ouvi:

1) Eu posso usar a flexão masculina, pois você não conhece a identidade dx travesti. Logo, se elx se identificar como homem, eu tenho esse direito;

2) Se alguém errar o meu pronome, eu –pessoa cisgênera –não vou ficar chateado. Aliás, acho até engraçado. É só uma piada, vocês não estão falando sério né, se eu posso rir vocês também podem!

3) A gramática normativa exige a utilização da flexão masculina para homens e como travestis são apenas homens que se vestem de mulher, eu tenho esse direito;

Então vamos por partes… Primeiro, podem de fato existir pessoas que se identificam como travestis e se apresentarem com uma fluidez de gênero, ou além do binário, de forma que elxs podem se identificar como homens, mulheres ou algo entre ou além dos dois e isso certamente não é um problema. Todas as pessoas tem o direito pela auto identificação, apenas elas decidem qual é a melhor forma de se definirem. Por isso é importante perguntar para a pessoa como ela gostaria de ser chamada.

No entanto, isso não é desculpa para reproduzir uma opressão estrutural e histórica contra as mulheres travestis: de as chamarem com pronomes que elas não desejam. De uma maneira em geral as pessoas travestis que se identificam com o gênero feminino preferem serem tratadas no feminino. Por isso não é adequado tratar mulheres transgêneras, apenas por serem transgêneras, no masculino de forma generalizante. Se alguma mulher cis apresenta roupas e acessórios femininos, sutiã dentre outros “marcadores” de feminilidade certamente ela será tratada pelo feminino e a chance de ocorrer misgender – errar o seu gênero - é pequena. Se ocorrer a mesma situação, porém com uma mulher transgênera, na qual pelo simples fato dela ser identificada como trans* ela ser tratada no masculino, o cissexismo fica evidente.

Errar o gênero, pronome e nome das pessoas trans* não é jamais a mesma coisa que com uma pessoa cisgênera. Afinal, pessoas cis nem ao menos são alvos dessa situação, a menos que tenha algo na aparência física/apresentação que remeta o gênero oposto, é extremamente improvável que isso aconteça. Ter seu gênero deslegitimado é opressão que acontece com pessoas trans* cotidianamente, é a violência que diz que alguém não é um homem ou mulher o bastante (ou simplesmente não existir a possibilidade de ser) por possuírem determinado genital ou aparência e que leva à disforia. Pessoas trans* não tem o privilégio de rirem quando isso acontece e nem de se esquecerem da situação ou de não se importarem com ela.

Por fim, usar a gramática para corroborar transfobia é hilário, mas trágico, pois é uma realidade. Regras gramaticais são convenções sociais, elas não são escrituras sagradas, que podem dizer as “verdades” a cerca dos pronomes das pessoas trans*. A única verdade sobre o gênero de alguém é a que ela diz sobre si mesma. Se alguma pessoa usar o argumento que é necessário tratar mulheres travestis no masculino ela não está sendo neutra – como a principio o argumento da “língua” poderia soar - ela vai estar sim em uma posição privilegiada – a cis – exercendo uma relação de dominação contra pessoas trans*, ao deslegitimar suas reivindicações – de serem tratadas como querem.

Pessoas trans* já cotidianamente são levadas a nem mesmo serem o que são. É ter que nadar contra a correnteza, a identidade de alguma pessoa trans* não foi obtida com pouco sacrifício, pois a todo momento somos lembradxs através dos mais diversos ataques transfóbicos de que não poderíamos nos identificarmos como nos identificamos. É realmente necessário reforçar essa violência ainda mais ao chamar pessoas trans* com o gênero a qual ela foi designada de forma coerciva? A regra é básica e simples: 1)Individualmente, chame alguém como elx gostaria de ser chamadx, pergunte 2) Ao tratar de grupos, da mesma forma que designamos o gênero feminino às mulheres cis com apresentação feminina, o mesmo tem que ser feito com mulheres trans* - assim como para homens cis e trans*.

11 Comentários

Arquivado em Uncategorized

Guest Post: Natais com cada vez menos gente

Recebemos mais um relato, dessa vez da Luciana Cominato. Publicamos com vários dias de atraso (já que o texto é sobre suas experiências do natal), mas continua sendo relevante durante todo o ano. Infelizmente, para várias pessoas trans*, muitas vezes ficamos isoladxs das companhias familiares, já que nem ao menos eles podem representar um espaço seguro para nós.

Ah,o Natal! Aquele Natal cheio de parentes, com avô, avó, tios e primos que a galera imagina só acontecia em S.Paulo na família do meu pai. Na família da minha mãe, ela era filha única e todos os irmãos dos meus avós exceto um não tinham tido filhos. Essa prima da minha mãe era filha única e também morava em S.Paulo. Então, eu lembro vagamente de um Natal lá, com 4 anos de idade e de uma viagem pra Recife pra passar o Natal lá com o irmão dele que tinha se mudado pra lá naquele ano quando eu tinha 5 anos.

Quando eu tava com 6 anos, minha avó por parte de pai faleceu e como meu pai tinha problemas de relacionamento com o pai dele e com as irmãs por causa de dinheiro, adeus Natais em S.Paulo e viagens nas férias pra lá.

Com isso, no resto da minha infância e adolescência o Natal passou a ser apenas com meus pais ,meus irmãos, minha avó materna – meu avô materno morreu quando eu tinha 8 anos - e com os tios e tias-avós que não tinham filhos. E acabava se resumindo à eu e meus irmãos brincando com os presentes e os adultos falando do passado.

Mas esse Natal também acabou, meus pais se separaram, o dinheiro foi com ele, a ceia ficou menos farta e dos dois tios-avós que restavam, um morreu e a outra foi se isolar em Queimados e não deu o endereço nem pra minha mãe, nem pra minha avó e nem pra viúva do meu tio-avô (e que passou a passar os Natais com os parentes dela).

Mais um tempo passa e minha mãe que já tinha crises de asma e tosse forte acaba morrendo inesperadamente pra gente, porque na verdade ela já tinha algo e não queria contar nem ir no médico pra não ter que largar o cigarro. E com isso, acabaram-se os Natais na minha casa e só teve um ano que passaram os 3 irmãos e minha avó no mesmo lugar. Que por coincidência foi meu último Natal.

Minha irmã casou e mudou de cidade, minha transexualidade passou a ser conhecida pelo resto da família, todos os outros passaram a ter Natais alternativos com as famílias dos maridos e esposas e eu e minha avó ficamos sem lugares por ser trans e ela por não poder viajar sozinha e ninguém querer viajar 12 horas pra pegá-la e mais 12 horas pra trazê-la de volta.

E perdeu o sentido tentar fazer ceia de Natal só pra duas, ainda mais que só servia pra fazê-la lembrar de todo mundo que tava longe ou que já tinha morrido. Como ela foi ficando cada vez mais esquecida, teve um ano que ela passou o mês inteiro reclamando do Natal, que ninguém ligava pra ela e pegou mania de querer rabanada todo dia – e todo dia eu tinha que ir na padaria comprar uma ou duas pelo menos(e assim eu enjoei de rabanada, que eu amava quando era criança).Aproveitando que fora da época do Natal não era todo dia que tinha rabanada, fui conseguindo trocar a rabanada por pão doce até que ela deixou de cobrar rabanada.

E no ano passado ela morreu, com 94 anos, depois de 7 anos que fiquei só eu e ela. Ano passado fiquei sozinha no Natal e acho que nem senti muito porque foi um alívio não ter ninguém reclamando que foi abandonada por todo mundo. Esse ano, faltam só 2 dias pro Natal e tudo indica que vou ficar sozinha de novo, por que o único convite que surgiu eu não tenho grana pra viajar.

Pelo menos é melhor do que ir por obrigação pra casa de parentes que estão visivelmente incomodados com a sua presença, mesmo com você de camiseta, calça jeans e all star; fazendo esforço zero pra te tratar pelo nome e pelo gênero certos e ainda cobrando por que você ainda não tem um emprego, que você é doida por ir procurar um emprego vestida de mulher e outras coisas “lindas” comuns na relação entre pessoas trans* e parentes não tão receptivos.

Deixe um comentário

Arquivado em Uncategorized