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Ceces e Fernandas

Fernanda Milan é uma trans* da Guatemala que solicitou asilo para a Dinamarca, foi colocada em dormitório masculino a revelia de seus pedidos e como conseqüência, mesmo em ala separada, foi estuprada por vários homens dentro de seu quarto e agora enfrenta possibilidade de deportação

Cece McDonald é uma trans* negra estadunidense que, ante o perigo de ser assassinada por um crime de ódio, se protegeu matando seu agressor no processo e foi condenada por ter sobrevivido.

Nos países que supomos mais avançados do mundo, seja na América do Norte ou Europa, a transfobia manda mensagem que está viva e passa bem.

O que cria a idéia de que Fernanda deveria ser colocada em um dormitório masculino? O que cria apatia em casos de estupros de mulheres trans*?

O cissexismo que tanto falo, cria essa noção de que, se você não “nasceu mulher” (designada mulher ao nascer) você é homem. Não importa como você se identifica nem sua aparência. O documento que o Estado nos impõe como identificatório é a ultima verdade das identidades: lá está escrito seu nome e seu sexo. Essa cultura cissexista genitalizante tem que acabar, pois só com seu fim teremos mais coerência nessas decisões que envolvem a alocação de pessoas trans* em ambientes ocupados por pessoas cis.

“Ora, mas se uma mulher trans* fosse colocada no mesmo local que mulheres cis, estas últimas correriam riscos”. Quais riscos, me pergunto?

Muitas feministas (mas não só) recorrem a esse argumento ao mesmo tempo em que reforçam o mote “não banalize o estupro”. Considerar que um pênis por si só pode estuprar não é banalizar estupro? Desconsiderar que existe violência sexual entre mulheres cis lésbicas não é banalizar estupro?

Se o machismo é criado, como defendemos; se ninguém nasce machista, mas torna-se; e principalmente, se (a citação feminista mais conhecida), ninguém nasce mulher, mas torna-se, qual é a coerência de supor que uma mulher trans*, por (suposição) não possuir uma vagina e sim um pênis, tem (segundo algum dado místico) mais possibilidades de estuprar alguém?

Essa lógica é essencialista, genitalizante, e logicamente cissexista. A noção cis das identidades trans* cria a falsa ilusão de que somos estupradoras em potencial por possuirmos genital diferente do esperado, um genital “masculino” ou então através do argumento da verdade da socialização masculina que exclui tantas variáveis (inclusive da parcial ou total perda de privilégios masculinos na infância, quando muitas de nós apresentávamos comportamento “feminino” e considerado inferior como tal na lógica machista). (Minha vida em cor de rosa é um exemplo – apesar de um pouco estereotipado – dos nossos “problemas de gênero” já encontrados na infância, inseridxs na cultura ciscêntrica e machista).

Ceces e Fernandas estão por aí, a serem presas, torturadas, estupradas, agredidas, assassinadas², assediadas³, tendo suas demandas e humanidades negadas, relegadas ao terreno da abjeção, ou como diz Butler, experienciando “an unlivable life” ou uma vida incapaz de ser vivida.

Mas nesse jogo do “quem-estupra-quem” sabemos quem perde: aquelx que foi estuprada: e nesse caso, Fernanda.

¹ Como podem ver no hiperlink, felizmente existe uma campanha em andamento para evitar a deportação de Fernanda.

² Felizmente estão surgindo projetos para monitoramento de assassinatos motivados por transfobia, chamados de transmurders, por associações trans européias. Monitoram inclusive o Brasil. Cf. http://www.transrespect-transphobia.org/en_US/tvt-project/tmm-results.htm

³ Graças ao estímulo de programas como do Zorra Total; aliás outro dia vi para vender o DVD, porque não é suficiente veicular pela TV podre, temos que espalhar o preconceito por outras mídias.

Written by Hailey

4 Comments

  • Reblogged this on Porcausadamulhere comentado:
    outro texto importante do Transfeminismo.com sobre as violências a que pessoas trans* estão expostas.

  • Acabo de ser informada por colegas estrangeiros que na Dinamarca e na Inglaterra estão ocorrendo manifestações de acadêmicos e de militantes trans pela libertação de Cece McDonald e pela concessão de asilo a Fernanda Milan.
    No dia 10 de setembro ocorrerão pelo menos duas delas, em frente à Embaixada da Dinamarca em Londres e ao Consulado da Dinamarca em Dublin.
    Entendo essas ações como estratégicas, até porque a Dinamarca, ao contrário dos EUA, não está acostumada a ter manifestações em suas representações estrangeiras.
    Raciocinando como acadêmica/teórica/pensadora com experiência/prática militante, creio que seria importante haver alguma manifestação pública também aqui no Brasil, em frente às representações da Dinamarca e dos EUA.

  • Eu estou sentindo agora como se meus olhos estivessem sido abertos.
    Eu nunca tinha pensado nessa questão das pessoas trans. Eu me tornei feminista há um ano e meio e todo dia aprendo coisas novas mas hoje… Sempre penso no lugar da mulher na sociedade, mas sempre pensando na mulher, como cis, tipo, como se já estivesse implícito e fosse “óbvio”. Sempre penso em como os homens cis vivem fazendo leis para as mulheres cis e como isso está errado, deveríamos ter mais representação no governo, deveríamos ser melhor representadas na mídia e etc. Mas nunca tinha passado pela minha cabeça que pessoas cis fazem leis e governam, decidindo pelas pessoas trans, algumas vezes com relação até aos seus corpos, exatamente como acho absurdo em relação ao que acontece entre homens e mulheres cis, e como as pessoas trans são invisíveis mesmo, sob muitos prismas, e eu propaguei essas idéias. E olha que eu me considerava cabeça aberta e “pró-liberdade”, no sentido “seja o que você quiser”, mas até essa idéia estava limitada aos meus moldes “cis”, se é que eu posso dizer assim…
    Gente, que coisa…
    Desculpe escrever esse comentário tão idiota, mas é que estou me sentindo agora como quando fui apresentada ao feminismo pela primeira vez; pasma! a causa é tão legítima e eu nunca tinha percebido. Chocante mesmo…
    Parabéns pelo site! Muito legal! Vou acessar diariamente!
    Beijos

    • O comentário não é idiota! É corriqueiro que nós não nos atentemos para o ativismo ou as necessidades específicas de um grupo com o qual não nos identificamos. Mas sempre há tempo de os incluirmos 😉

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