Crítica do binômio “sexo/gênero”
Texto de Caia Coelho.
Ao contrário do que se costuma pensar, criticar o binômio “sexo/gênero” não é abandonar o reconhecimento do genital como algo importante para a designação cis-normativa, para o controle da reprodução e para a produção da heterossexualidade diádica. Na verdade, é necessário considerar tais elementos para estabelecer uma crítica ao conhecimento biológico dessa parte do corpo, que obviamente não foi escolhida aleatoriamente e antecipa o gênero da sua própria historicidade, passando a ser considerado natural não só enquanto figuração anatômica, mas enquanto o eixo discursivo do cis-sexismo. Isso toma uma proporção tão grande que pessoas intersexo recém-nascidas sofrem, compulsoriamente, cirurgias para adequar a genitália a vaginas e pênis, uma prática violenta contra os Direitos Humanos.
Istvan Mesaros, em o Poder da Ideologia, revela como a ciência, com seus próprios critérios, procura invalidar a legitimidade da crítica: “aqueles que aceitam tacitamente a ideologia dominante como a estrutura objetiva do discurso ‘racional’ e ‘erudito’ rejeitam como ilegítimas todas as tentativas de identificar as suposições ocultas e valores implícitos com que está comprometida a ordem dominante. Assim, em nome da “objetividade” e da “ciência”, têm de desqualificar o uso de algumas categorias essenciais ao pensamento crítico. Reconhecer a legitimidade de tais categorias significaria consentir no exame das próprias suposições aceitas como verdadeiras, em conjunto com as conclusões convenientes que podem ser – e efetivamente são – extraídas dela”.
Se reconhecemos o “sexo” enquanto uma forma de saber sobre o corpo historicamente permeada e politicamente intencionada, torna-se de muito apoio que os conhecimentos biológicos mostrem uma diversidade que extrapole certas barreiras, divergências e contradições da própria literatura biomédica a respeito dos genitais. Quando se desautoriza o entendimento “oficial do sexo”, ou melhor, quando se desautoriza tal entendimento no campo da própria biologia, isso transpõe algumas barreiras entre as áreas interessadas em pesquisar o gênero e as áreas interessadas em pesquisar o corpo. Nessa altura, também acontece um hibridismo maior na biomedicina que, ao encarar outras possibilidades anatômicas além da diádica, nos permite pensar por que até então apenas dois ‘sexos’ estavam sendo estudados.
Criticar o binômio “sexo/gênero” significa a tentativa de perceber as entrelinhas do discurso; perceber o que não foi dito, mas constitui o discurso; perceber a ideologia na “objetividade científica” e a permeabilidade dela na história. Para todas as populações trans, transexuais, transgêneros e travestis, o principal efeito do “sexo” enquanto natural e do gênero enquanto “construído” é que, para o corpo cis-gênero, haveria “harmonia” entre esses dois eixos de sustentação do corpo e, para nós, haveria o destino psiquiátrico da patologia, quando não o destino estigmatizante da simulação.
A primeira, e imatura, definição de “cis-generidade” registrada historicamente (1995) é feita por Carl Bujis, um homem trans, e quatro anos depois é descrita por Donna Lynn Mathews, uma mulher transexual, como o significante que assinala a compatibilidade entre a identidade, a apresentação e a morfologia física de alguém: “uma vez que definimos o gênero como as características comportamentais, culturais e psicológicas associadas a um sexo, cisgênero significa estar do mesmo lado das características comportamentais, culturais e psicológicas associadas a um sexo”.
Em sua genealogia da cisgêneridade, “O Cisgênero Existe”, Leila Dumaresq contextualiza historicamente e analisa a evolução do conceito. A respeito de Carl Bujis e Donna Lynn Lewis, a autora relembra que essa definição foi escrita “no século onde as pessoas trans impuseram-se como grupo social e político; E também é o século marcado pela patologização e um crescente interesse médico em nós. As marcas deste conflito aparecem na exigência de laudos e procedimentos médicos para termos a existência civil e jurídica reconhecida. Naquele momento ainda fazia sentido usar o jargão biomédico que trouxe alguma aceitação social e que definia o trans para definir o cis. Ingenuamente, as pessoas trans quiseram expressar alteridade nos mesmos termos usados para nos descrever. Logo ficou evidente que isso não era possível e que o jogo biomédico não foi feito para permitir a expressão trans”.
Dessa forma, a não ser que você esteja disputando o conceito de sexo dentro do departamento de biologia ou medicina, ou seja, apontando incoerências da própria bibliografia, não adianta usar outras palavras, como se elas fossem mais ou menos isentas ideologicamente, pois pertencem ao mesmo vocabulário biomédico. A definição desses termos está comprometida com o diadismo e com o cis-sexismo. Por isso, dizer que “XY” é biológico e a associação disso ao universo masculino é “social”, embora tenha bastante potencial didático, é apenas eufemístico. Para não virar um problema linguístico, a nossa crítica precisa desautorizar a pretensa “universalidade” da ciência; precisa falar desses termos como garantias da cis-normatividade e da heterossexualidade, do diadismo e do controle reprodutivo; precisa localizar a utilidade e o controle desses conceitos; precisa saber que, realmente, o conhecimento sobre o corpo não é o corpo em si.