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Visibilidades nefastas em pleno mês de visibilidade trans

Visibilidades nefastas em pleno mês de visibilidade trans.

Por Maria Gomes de Medeiros [1]

Duas notícias em plenos dias de Janeiro, mês em que se comemora o dia da Visibilidade Trans no Brasil, chamam atenção e desvelam modos emblemáticos como historicamente a transfobia se realiza em solo nacional.

A primeira diz respeito ao fato ocorrido nos bastidores da Paixão de Cristo de Casa Amarela[2], na Zona Norte do Recife. Essa paixão de Cristo é bem tradicional na cidade, e tradicional também é a presença de pessoas trans entre o elenco, mas apenas na cena que dá conta do bacanal de Herodes… como também é comum a presença de pessoas trans na referida cena em peças do tipo pelo Brasil, até na de Nova Jerusalém.

O que virou notícia foi o fato de que após Genivaldo Francisco, fundador do projeto Fábrica fazendo arte, ter pensado em uma apresentação inclusiva, com a participação de pessoas trans, mas não só, como também pessoas em situação de rua, ou em tratamento de dependência de álcool e outras drogas fazendo parte do espetáculo em diversos momentos que não apenas na cena do bacanal.

Pois bem, a produção foi obrigada a censurar a participação dessas pessoas em outras cenas ou mesmo divulgar que haveria pessoas trans na peça para evitar problemas com a Igreja Católica. Justificaram que o arcebispo e alguns padres que iriam assistir à peça não iriam gostar.

A escolha da produção da peça em censurar os corpos de artistas trans de outros momentos que não o Bacanal de Herodes é exemplar de como a autoridade da igreja católica se realiza milenarmente no mundo, elegendo determinados sujeitos como párias sociais e eliminando destes sujeitos toda e qualquer possibilidades de humanização. Este comportamento foi a tônica da dominação colonial e bestializou habitantes originais da África e das Américas, por exemplo.

Essa postura, como nos alerta Silvia Federici, no livro Calibã e a Bruxa (2017) é principalmente a aliança entre setores do capitalismo, religiosos e do patriarcalismo, que impedem os saberes populares oriundos de determinadas populações dominadas e exploradas necessárias ao regime de poder, como por exemplo a sexualidade e os conhecimentos das mulheres na idade média.

Isso fica ainda mais evidente quando observamos as “cruzadas santas” que estes setores realizam contra produções artísticas e intelectuais e autônomas de pessoas trans que contestem os regimes de dominação e exploração vigentes, como foi o caso da perseguição sofrida pela atriz Renata Carvalho e sua peça O evangelho segundo Jesus Cristo, rainha do céu. [3]

É a existência miserável das pessoas trans, relegadas à invisibilidade ou a visibilidade nefasta, única visibilidade possível, o que interessa para a igreja católica como construção de narrativa única. Como no diálogo entre o Cristo e o diabo do escritor português José Saramago:

Não me aceitas, não me perdoas? ? indaga o Diabo; ?Não te aceito, não te perdôo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Por quê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és (…) Se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal?

A segunda notícia me afetou mais por saturação do que por surpresa, já que fatos semelhantes tem inundado as páginas da internet brasileira desde que o concurso da Miss Itália escolheu a modelo transexual Angela Ponce para representar o país no concurso de Miss Universo. Acontece que os internautas brasileiros, em maioria absoluta homens cisgeneros e heterossexuais, entraram em ritmo de indignação coletiva e direcionaram todo tipo de violência contra a modelo e o concurso.

No mesmo sentido de rever as possibilidades de realização da mulheridade que vem tomando conta do mundo da moda, das artes e dos esportes, se atentando a mulheridade de mulheres trans, o concurso de Miss Rio de Janeiro escolheu a modelo transsexual Náthalie de Oliveira para disputar o título.

O mesmo tom jocoso e de revolta dos internautas, insistente em desmascarar o “homem vestido de mulher que tenta usurpar o lugar das pobres mulheres indefesas do concurso”, também foi uma constante nos principais portais de notícia brasileiros. Piadas e xingamentos sexistas e transfóbicos de todos os tipos se somam para construir a narrativa transfóbica de “lobby trans”, “desvirtuação da sociedade”, da “realidade biológica em oposição ao delírio da ideologia de gênero” etc.

O que é muito curioso, já que o Rio de Janeiro é conhecido internacionalmente por ser a cidade das travestis. Sendo a prostituição de mulheres trans e travestis nessa cidade uma atração histórica intrínseca ao poderoso turismo sexual fortemente retratada em peças, músicas e obras literárias do panorama cultural carioca e brasileiro, como por exemplo a peça Ópera do Malando(1978) do escritor, cantor e compositor Chico Buarque e o conto Praça Mauá presente no livro Via Crucis do Corpo (1974) da escritora Clarice Lispector. E assim sendo, não poderiam os homens estarem alheios a existência das mulheres trans e travestis na cidade, muito pelo contrário, estes participam efetivamente desse regime de afeto.

Outro fato contraditório a indignação inflamada de setores da sociedade contra a presença de mulheres trans em concursos de miss é o fato de historicamente mulheres trans fazerem parte massivamente deste tipo de concurso.

A nível de informação, é contundente o depoimento de Ruddy Pinho, cabeleireira de estrelas e escritora precursora da escrita de pessoas trans no Brasil, sendo a primeira pessoa trans a publicar um livro no Brasil, “Eu, Ruddy” (1980), no livro da Ruddy “Liberdade ainda que profana” (1998), certo trecho sobre a presença de mulheres trans nos bastidores do evento como cabeleireiras evidencia isso, vejamos:

Eu fui cabeleireira de várias misses em muitos concursos: Miss Brasil, Minas Gerais e Guanabara. Viajei muito com os promotores dos concursos, como o falecido Paulo Max, Sérgio Katar e meu amigo Aníbal (que assinava a coluna Jean Kuriak na baixada). Fui à Brasilia, São Paulo e muitas cidades do interior para ajudar na beleza delas. Participei do júri também, algumas vezes.

Transformei muitas garotas do subúrbio em rainhas. Uma vez, o Sérgio Katar levou um susto quando eu apareci com uma moça do Méier que ganhou o concurso Miss Beleza Internacional, no Japão. Ensinei-lhe a pisar, a descer escadas sem olhar para baixo e ela realmente surpreendeu a todos. Seu nome: Vionete Rivoredo. Nunca mais a vi. (1998, p.87)

Assim sendo, podemos perceber que o regime de higienização social como nos alertou a socióloga Berenice Bento (2014), que a sociedade Brasileira insiste em tratar a realidade da existência das mulheres transexuais, travestis e transgêneros brasileiras, fazendo com que as travestis estejam sempre às margens da sociedade, e que nunca possam ser vistas ou pertencer ativamente do cotidiano da cidade. Em momentos de cerceamentos das liberdades como no caso da ditadura militar, operações de caça às travestis como a Operação Tarântula[4], foi uma tentativa de exterminar a presença das travestis e tolher o seu direito à cidade.

A sociedade brasileira ao impor sempre o lugar de margem e de cuidado com o outro para as pessoas trans, fazendo com que estas sempre ocupem locais de subalternidade na sociedade e nunca tenham os seus saberes legitimados, impede que as pessoas trans criem condições para desenvolver o cuidado de si que nos falava Foucault, e que assim possam assumir os locais de sujeitos de suas próprias histórias deixando de ser sempre tuteladxs por poderes e saberes alheios a nossa existência.

Referências:

BENTO, Berenice. Transfeminicídio: violência de gênero e o gênero da violência. In: COLLING, L. Dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA, 2016.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. São Paulo: Elefante, 2017.

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

PINHO, Ruddy. Liberdade ainda que profana. Rio de Janeiro: Razão Cultural, 1998.

SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras. 1991.

Notas

[1] Graduanda em letras pela Universidades Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected]

[2] Diário de Pernambuco.

[3] Gente IG.

[4] Mais informações disponíveis em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/04/a-caca-aos-homossexuais-e-travestis-na-ditadura-militar.html

Written by Beatriz