De onde vêm nossas disforias?
Texto de Amara Moira.
Mês e pouco atrás, vi uma endocrinologista poderosa falar, para estudantes de medicina, das dificuldades de se atribuir o sexo dum recém-nascido. Genitália externa e interna, hormônios, receptores e outras coisas que nem sei mais nomear podem dificultar bastante a vida do médico e, portanto, recomendava a palestrante, não convém chutar: “na dúvida, faça mais exames”. A perspectiva que ela traz é interessante e me leva a pensar no quanto a existência trans não pode ter parte em algum mistério da biologia, mas ao mesmo tempo me dá medo pensar que acreditam poder explicar o que somos com testes laboratoriais. Quão fundo irão nessas pesquisas? Quando julgarão que já sabem o bastante? Quanto mais se fuça, mais se descobre, dados conflitantes inclusive, o que no entanto não implica que esses doutores da ciência coloquem em dúvida o que são de fato capazes de descobrir.
Minha fala veio em seguida e comecei justamente pontuando que a designação do sexo, uma vez que puxa um gênero, não pode senão ser um chute. Para que serve a designação do sexo? Serve para criarmos a pessoinha em questão para ser de determinado gênero, para ela própria, no momento em que entre para o mundo da linguagem, já se entender enquanto parte daquele gênero e desta forma ser lida pelas demais pessoas: se tem pênis, será criada para ser homem, se vagina, mulher. Isso coloca a questão: você é mulher / homem por conta do seu genital ou seu genital fez com que te criassem para ser mulher / homem? Você é porque sim ou porque te criaram pra ser?
Nesse ponto, chegamos às pessoas trans. Não é raro percebermos que, por motivos vários, uma pessoa resiste à criação que lhe impuseram e tenta, à sua maneira, se reivindicar do gênero que ela não foi criada para ser. “Filho, você não é menina, você tem pipi” ou “filha, você não é menino, você tem pepeca” são frases que essas crianças ouviram por toda a infância, acompanhadas de violência física e psicológica no mais das vezes, sempre que ousaram demonstrar desacordo em relação àquilo que foram criadas para ser. E, assim, vão desde cedo aprendendo a responsabilizar o genital por não poderem ser criadas para ser aquilo que são: essas crianças serão criadas para viver perpetuamente performando um papel, reprimindo qualquer exteriorização daquilo que vivem dentro de si, para não serem alvo de violência. Sequer conversar sobre conflitos que sentem em relação àquilo que foram criadas para ser elas terão direito.
Qual a surpresa ao vê-las, adolescentes, adultas, odiando o próprio corpo, querendo transformá-lo na marra, à base de hormônios, tratamentos estéticos e intervenções cirúrgicas? Desde criança irão desenvolver uma relação conflituosa com tudo aquilo que, no seu corpo, faça com que a sociedade não se disponha a ler aquela pessoa da forma como ela própria se entende. A sociedade cria esse desconforto em nós, essa aversão a nossos próprios corpos, mas depois se exime de qualquer responsabilidade: viramos então pessoas depravadas, doentes, loucas, cheias de distúrbios. Nunca lhes ocorre pensar no quanto são responsáveis pelo surgimento disso que veem como patologia.
A determinação do sexo, posto que isso implicará criarmos essa pessoa para ser de um determinado gênero, não pode senão ser um chute, uma aposta no escuro. Não vejo problemas em ser um chute, aliás. O problema é o que faremos da pessoa que resista a essa criação, que não se veja naquele destino que preparamos a ela? Assumiremos nossa responsabilidade no fato de não termos sido capazes de fazer com que essa pessoa, por ter vagina, se entendesse mulher ou, por ter pênis, homem? E mais, assumida a nossa responsabilidade, daremos a ela o direito de se criar para ser aquilo que ela entende ser, ou seja, se tornar aquilo que ela é?