Entre eventos, transfobias “cientificizadas” e resistências trans
Por Céu Cavalcanti.
Alguns vários anos atrás, quando eu tava começando a tatear durante o começo da graduação, temas de direitos humanos, gênero e sexualidade vi uma fala de um famoso ativista gay histórico de Salvador onde ele dizia que se não houvesse ‘homofobia’ não existiriam mais pessoas trans, pois, no delírio estranho dele, pessoas trans eram só gays e lésbicas que não tinham coragem suficiente para enfrentar o mundo e se “adequavam” ao que a sociedade esperava para viverem relações afetivo-sexuais. No momento (bem antes da minha própria transição) fiquei chocada e sem muito conteúdo para falar algo fui acompanhando os posicionamentos contrários tímidos das pessoas presentes. Naquele momento praticamente não haviam pessoas trans acessando os eventos acadêmicos em universidades públicas. Lembro que quando questionado sobre a existência de pessoas trans não héteras, ele desconversou e inventou qualquer desculpa.
Uns dois anos depois, fui num evento sobre transexualidade com um então famoso psicanalista de sobrenome complicado que era reconhecido como “autoridade” no atendimento a pessoas trans. Dessa vez já haviam algumas poucas pessoas trans no auditório e o psicanalista focava sua fala nos mitos do DSM de que o “transexualismo” é caracterizado pelo ódio extremo ao próprio corpo. Uma das pessoas trans presentes questiona usando a própria experiência de que não odiava o próprio corpo, muito pelo contrário, a transição ajudou a se apropriar ainda mais dele. Encurralado, o psicanalista escolhe responder dizendo que então a pessoa não era tão trans assim, mas sim uma “confusa de gênero” pois pessoas trans de verdade eram exatamente como ele dizia. Imediatamente, as pessoas no auditório ignoram o que a pessoa trans falou e fazem perguntas sempre referendando a fala do “respeitável psicanalista”
2018, vejo uma mesa específica na semana de psicologia da UFF que me chama atenção. O evento em si parece ser ótimo, com temas super necessários e pertinentes, mas uma mesa específica se propõe a falar sobre crianças trans. Quem puxa o tema é uma pessoa reconhecida já por suas posições transfóbicas. Na mesa, ela consegue ressuscitar o mesmo argumento do velho ativista das décadas passadas para dizer que a existência de pessoas trans é uma nova forma de “cura gay” (WTF)
Entre tantas pessoas possíveis, capazes e interessadas em facilitar diálogos sobre, com e para pessoas trans, não entendo porque a organização do evento legitimou a fala de alguém que além de não vivenciar e produzir pensamento crítico sobre o assunto, se posiciona abertamente “contra” (como se nossas vidas fossem um jogo maniqueísta no qual as pessoas podem ser ‘a favor’ ou ‘contra’).
Mas diferente de outras épocas, hoje é mais difícil legitimar algo sobre (e contra) nós sem dialogar conosco. E já há movimento de resistência se organizando. E o coletivo organizador vai precisar explicitar suas intenções e posições com a opção de ter construído o espaço formativo dessa forma com essa perspectiva.
Em tempos de fascistização coletiva, não entendo como algumas mulheres escolhem como pauta central de sua atividade política o ataque direto a uma das populações já mais violadas em todas as esferas.
p.s. me espanta que justo a psicologia da UFF seja uma das primeiras universidades que organizou cotas na pós-graduação para pessoas trans, mas na semana de psicologia, o único espaço para conversar sobre questões trans é facilitado dentro de uma lógica abertamente transfóbica.