Guest Post: Amanhã isso vai passar
Recebi esse texto de uma pessoa que prefere se manter no anonimato.
What are little girls made of?
What are little boys made of?
“Amanhã isso vai passar.”
É o que eu penso toda noite. Penso que no dia seguinte vou me sentir confortável em ser mulher, vou querer que as pessoas me vejam dessa forma, não vou em nenhum momento sentir que existe alguma coisa de errado… Nunca funciona, é claro.
Não sei do que as mulheres e os homens são feitos, mas sei que não é a biologia ou os meus gostos que definem quem ou o que eu sou. Sei apenas que existe alguma coisa, que talvez eu nunca vá saber o que é, que faz com que eu saiba que há algo de muito errado com o fato de eu ser lidx como mulher. Algo que me fazia corrigir o “ela” pra “ele” muito antes de sequer imaginar que um dia leria sobre gênero. Mas o curioso é que até pouco tempo atrás, mesmo depois de já ter entrado em contato com as questões trans, eu tinha uma visão muito engessada do que era a transexualidade em si.
Eu entendia as pessoas transexuais como sendo aquelas que desde muito cedo na infância já sabiam qual era o seu gênero certo; uma sucessão de certezas culminando na redesignação sexual. Qual não foi minha surpresa quando percebi que identidade de gênero não seguia uma “receita de bolo”! A ideia de que uma pessoa só pode ser homem ou mulher se sentir do jeito x e se comportar do jeito y cria um limbo onde colocamos as identidades não-binárias. Pra mim, invisibilizá-las totalmente e tentar forçá-las a se conformar dentro do modelo binário é uma violência.
Percebo essa violência todo dia, quando desejo que tudo seja uma loucura da minha cabeça. Quando tenho vergonha de passar pelo constrangimento de pedir que me tratem no masculino enquanto cada curva do meu corpo grita que não devo ser levadx a sério por ainda parecer uma mulher; quando me olho no espelho e vejo outra pessoa; quando evito me posicionar como trans* por medo da deslegitimização, do discurso do “você não é trans o suficiente”, “se você consegue lidar com parte x do seu corpo, então isso não é disforia”; quando me sinto culpadx por gostar de usar saia ou de outras coisas tipicamente interpretadas como femininas e em outras tantas pequenas agressões cotidianas.
Isso me faz pensar em até que ponto se chega nessa necessidade de policiar a identidade alheia, principalmente quando ela parte das próprias pessoas trans. O fato de a minha identidade não ser binária - por qualquer motivo que seja, desde puramente político até eu “simplesmente” não me situar em nenhuma das extremidades do espectro - não significa que eu esteja ameaçando aquelas que não são. Já conheci pessoas com experiências muito parecidas com as minhas, e nenhuma delas é igual à outra. Estamos falando de gente. Não há como uma coisa só englobar toda a vastidão de experiências que uma pessoa pode ter na vida, Mas ainda assim há quem se ache no direito de poder validar quem ou o que você é.
Demonizar a dúvida só faz com que nos sintamos culpados por experimentar, por tentar saber por nós mesmos o que é melhor pra nós. Parece-me que as pessoas muitas vezes se esquecem de que viver é uma sucessão de tentativas, uma construção contínua. Há literalmente um mês, por exemplo, eu rejeitava totalmente a ideia de me hormonizar; hoje já considero fazer isso um dia. Há algum tempo pensei que conseguiria passar a vida lidando relativamente bem com esse desconforto, com a sensação de que a minha vida era uma farsa e que essa pessoa não sou eu; hoje não consigo mais.