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Materializando as identidades não-binárias: a bicha enquanto identidade de gênero brasileira (A fluidez de gênero para além dos muros universitários)

Materializando as identidades não-binárias: a bicha enquanto identidade de gênero brasileira (A fluidez de gênero para além dos muros universitários)

Texto de Ariel Silva

Algumas questões de gênero vem há muito sendo debatidas com uma roupagem de orientação sexual, fazendo com que deixemos de pensar muitos de nossos posicionamentos enquanto atitudes de resistência à heteronorma, uma vez que socialmente o que se evidencia é a tentativa de assimilação dessas expressões, uma categorização que conforme Mombaça, é reflexo de uma produção de conteúdos dominantes dados a partir do cerceamento de formas alternativas de produção do saber. Dessa forma, historicamente a produção e registro de atividades que não fossem de cunho heterossexual (e por conseguinte adequadas ao sistema) sempre enfrentou dificuldades estruturais no acesso e produção de conteúdos que tenham como objetivo o enfrentamento do regime vigente. Não há, entretanto, uma hegemonia que permita que todas as pessoas vivenciem as mesmas experiências com o mesmo tipo de resposta. Uma pessoa não-cishétero de uma região central da cidade e uma pessoa não-cishétero de uma região periférica desse mesmo local podem apresentar comportamentos opostos frente às mesmas situações.

Ainda pensando na produção de conteúdos, temos que a educação no país tem, desde seu início, função segregatória. De início, apenas a corte recebia aulas, passando após isso para as elites dominantes de regime em regime e afins, sempre como uma moeda de troca. Após isso, quando a educação deixou de ser privilégio de alguns, houve fragmentação dos conteúdos. Não era interessante que se ensinasse a um campesino, por exemplo, faculdades mentais que competissem à administração de fundos e terras ou a uma operária sobre lógica de mercado. Podemos observar então que o acesso e produção de informação é, desde seu início, uma instância de poder. Assim sendo, podemos considerar a produção de Foucault acerca de relações de poder e aliá-la a observação histórica do sujeito retratado enquanto protagonista iluminado, produtor e sábio. Quem possui poder, escreve o que será contado. É essa a origem da dominação, a autorização e legitimação para que se fale sobre (e pelo) outro, ali desautorizado. Não tardará então para que esse sujeito seja repetitivo, cansativo de se enxergar: a narrativa rapidamente assume um tom positivista, cisheterossexual, branco e masculino, herança do iluminismo (lembrando o iluminismo enquanto a revolução que guilhotinou Olympe de Gouges ao apresentar sua “Declaração dos direitos da mulher e cidadã” em contraponto à mesma declaração dos direitos do homem e cidadão naquele período), compasso atual do que é o rumo a ser tomado na academia.

Enegrecido esse ponto inicial e entendendo o espaço da academia não só como um espaço de produção de saberes, há também de se fazer a crítica e percebê-la como sendo um espaço hegemonizador para que então seja possível realizar o resgate histórico das lutas e contraproduções tornadas subalternas em gêneros e sexualidades. Para embasar a invisibilização dessas vozes, me utilizo aqui do conceito de heteronorma apresentado por Butler, que narra a partir do nascimento o conjunto social de regras que compulsoriamente forçam o indivíduo à uma (cis) heterossexualidade a partir do observado em seu genital ao nascer. Por exemplo, uma pessoa nascida com vagina será tida automaticamente como uma mulher heterossexual que desempenhará todos os papeis de gênero à ela atribuídos na sociedade em que está inserida. A norma não permite que essa mesma pessoa se identifique com algo além de mulher ou que sua sexualidade seja vivenciada além do modelo heterossexual instalado, já que na organização social há um espaço já demarcado (e subalterno) para que seja ocupado.

Assim sendo, chega-se à constatação de que há, historicamente, uma lacuna narrativa no que diz respeito à produção voltada para as dissidências da heterossexualidade e dos papéis de gênero, uma vez que sem acesso à informação e com o registro escrito sendo a forma oficial de preservar memórias, tudo se perde como que numa queima de arquivos, pois a sociedade legitima que aquela foi uma existência em vão, que por vezes não seguiu a máxima de “O trabalho enobrece o homem”, visto que não se deixam contribuições consideradas necessárias. Mas como pensar em contribuições necessárias para existências que são de resistência? Há, antes de uma vontade de contribuir para a sociedade, uma constante luta para que se sobreviva na mesma. A produção de heterossexualidades e normas comportamentais não é apenas uma vigência teórica, mas sim um regime aterrorizador, como nos traz Berenice Bento. Desde a gestação, o ultrassom se torna a profecia: será um menino, vestirá azul, beijará meninas e não fugirá de seus papéis sociais enquanto macho alfa. Profecia pois uma vez feita a anunciação, a expectativa se instala. E a cada vez que não for correspondida, uma represália virá. “Não fala dessa forma, age que nem macho!”, “Vira homem, quer apanhar é?” e afins. E as agressões ocorrem, física e psicologicamente. O aval é dado pela própria heteronorma, cunhada a partir do saber científico que embasa a ordem (não tão) natural da heterossexualidade das coisas.

Para sua vigência plena no entanto, a heterocompulsoriedade não poderia se apresentar de forma pura, porque veja, a sociedade é norteada por um ideal de razão, como explicar então o homem iluminista e pensador destilando ódio para com seus “semelhantes”? Importante frisar então que o heteroterrorismo se dá a partir de diluições sociais ocidentais, que se alinham e se remoldam a partir da necessidade da manutenção do status quo. Uma pessoa LGBT não será odiada por ser LGBT puramente, mas por não trabalhar, não estudar, não produzir ou de alguma forma, não estar cumprindo as demais funções sociais. Parece então que há a necessidade de um sistema de compensação, em que por não cumprir com a heteronorma, seja necessário que se cumpra com todas as outras funções sociais ou então aceitar o fatídico destino da condenação por agora, além de ser bicha, ser improdutivo. Uma mulher negra não pode ser lésbica, uma vez que socialmente enquanto negra já possui também papel definido como subalterna. Uma pessoa trans não seria atacada de forma transfóbica se o saber médico não produzisse apenas a validação de dois gêneros conforme pênis ou vagina e cunhasse disforias, inadequações corporais a partir de um padrão estipulado. É preciso então que se frise o ponto central de que não há opressão desconectada ou tampouco uma forma correta de se combater esses regimes, visto que para cada indivíduo suas particularidades serão responsáveis por originar demandas subjetivas específicas.

Compreendendo as transversalidades de dominação, eis que surgiram também os processos de assimilação (importante que seja pontuado que os processos subjetivos de assimilação estão para o processo de inferiorização psicológica do colonizado negro, sendo estes de responsabilidade não do sujeito em si, mas do conjunto vigente de regras que faz com que se enxerguem inferiores ao sujeito dominante, como traz Fanon em seus escritos sobre as relações de raça e dominação). Dessa forma, há o surgimento de fenômenos como o “pink money”, em que há a valorização da mão de obra não-hétero e do profissional que se insere no mercado de trabalho, contribuindo para o giro econômico e adquirindo valor por cumprir um de seus papeis sociais.

Ocasiões como essas seriam ganhos para a comunidade, não fosse a sombra de coisas que velam para que essa afirmação ocorra. Veja, se há a abertura de um espaço para integração, falamos então de um espaço que integra uma pessoa à cultura vigente do local. Não estamos então dialogando sobre empresas e sociedades que dão agora lugares e condições de existência, respeito e plenitude à pessoas que dissidem da norma hétero, mas sim sobre propostas de assimilação dessas pessoas, para que abram mão de partes fundamentais de si para que sejam então toleradas naquele espaço. A lógica de dominação permanece vigente, o padrão dominante provavelmente fará com que o código de conduta da empresa já tenha trajado a heteronorma e questões de esfera sexual e de gênero serão abafadas, visto que não são o foco de atuação do espaço ali ocupado. Retornando a Foucault, percebemos então uma outra instância de encarceramento: o identitário. Identidades são aprisionadas em personas socialmente sufocadas, que a todo tempo tem de lutar para que não seja percebida (e condenada) a insurgência de se existir.

Para além disso, se falamos de uma população assimilada, necessitamos também que se fale de parcelas dessas populações que não realizaram esse tipo de processo. A população gay precisou mostrar que era produtiva em contraponto à população LGBT que vinha sido desolada com o “câncer gay”. Com os saberes médicos iniciais constatando HIV/AIDS como uma doença sexualmente transmissível e a população LGBT sendo varrida das cidades pela epidemia, o momento parecia propício para que a heteronorma uma vez mais se manifestasse. A biologia então reduziu ao sexo toda a (não) problemática de estigma e apagamento histórico de uma população, já que aparentemente se essa parcela populacional fosse produtiva, não haveria transmissão viral. Desde então, com o desenvolvimento do preservativo e algumas décadas de reafirmação dessa lógica de assimilação e aceitação, o que nos chega pela mídia, história e demais registros tidos como oficiais é a de pessoas homossexuais que até são homossexuais, mas trabalham, não contraem DST’s, de preferência possuem uma vida homonormativa (em que uma rotina de casal hétero ocorre, há comunhão de bens e demais acordos monogâmicos, com a “única” diferença sendo a não-heterossexualidade na relação), ao passo que esses outros seres abjetos continuaram na marginalidade, não perseguiram o sonho de se tornar alguém naquela sociedade, decidiram viver conforme suas próprias vontades que não as habituais e por isso, não possuem o direito de serem socialmente lembradas.

O que ocorre no entanto é um processo de aculturação de identidades de pessoas que a despeito de tanta opressão, não aceitaram essa lógica binária, homem-mulher-reprodução-trabalho e continuaram a existir. Não é incomum que haja narrativas como a de Stonewall como a primeira grande luta do movimento contra as forças policiais. Porém, ao observar a forma como a narrativa se dá, o incomum será ver que Marsha Johnson foi lembrada, uma vez que era uma pessoa trans, moradora de rua, sem trabalho oficial. Como explicar a importância histórica de um ser que é condenado pela definição de mulher da história? Como explicar o trabalho importante realizado com moradoras de rua para sua existência e dignidade serem garantidas uma vez que esse sujeito não possui registro formal no mercado de trabalho? Tornar subalterna a voz parece então a única ação efetiva, uma vez que não permitindo que haja narrativa de uma voz que fala para além da heteronorma, a assimilação está completa e a instância de poder reafirmada.

Partindo desse pressuposto, muitos dos debates e campos explorados na discussão contra o cis-tema acabaram introjetando essa série de elementos de esfera sexual, tornados assim de uma única instância e não permitindo um debate prismático e que permeie o campo das conexões de opressões. É muito comum de se ouvir, por exemplo, “Pode ser até gay, mas não ser bicha!”, já que ser gay competirá apenas em transar com outros homens, ao passo que ser bicha perpassará por muitas outras instâncias. Cito novamente Butler aqui quando a mesma diz da tríade de genital-gênero-sexualidade, uma vez que se pauta, a partir do genital, o gênero que uma pessoa terá e a sua heterossexualidade. Utilizo este conceito para me valer dessa explicação como base para a defesa da bicha enquanto identidade de gênero e não orientação sexual e ilustrar como mesmo em debates LGBT, ainda estamos encobertos de traços patriarcais que precisam a todo tempo ser combatidos.

Pensando nos anos escolares e retomando Guacira Lopes Louro, antes mesmo de haver noção de sexualidade ou da própria sexualidade, é comum que se ouçam comentários como “Olha lá aquele viadinho!” ou “Nossa, essa menina é sapatona, que feio!” e todo tipo de ataque e ofensa à fuga da heteronorma. Mas essa não é uma dedução feita a partir da sexualidade, uma vez que a mesma não está manifestando-se, mas sim dos papéis de gênero atribuídos a cada pessoa a partir de seu genital. Há o ideal vigente de que um dito menino será um homem e essa pessoa será atacada antes mesmo de chegar na ponta final da tríade que diz sobre sexualidade. O ponto de torção da questão é, de fato, o gênero.

Retomando uma vez mais as ofensas escolares, podemos perceber que as mesmas se repetirão em todas as outras esferas sociais da vida do dito sujeito (e nisso Foucault pode ser citado uma vez mais ao se perceber a disputa de biopoder em evidência) e sempre evidenciando que sabe-se da existência de um lugar subalterno de pertencimento àquela pessoa. Dizer alguém bicha é entender que socialmente há pessoas que se dizem bichas e essas rasgaram (ou foram empurradas para) seu espaço social, para além de homem e mulher. Nisso, há um importante resgate da queer em demonstrar as articulações estruturais que permitem o apagamento dessas identidades abjetas, desses seres para além da história oficial e dessa lógica binarista.

Não é necessário, no entanto, que haja sempre esse resgate de teorias nem sempre condizentes às nossas realidades. Veja, o proposto aqui não é ignorar toda a produção até então feita em contraponto ao cis-tema, mas sim de não perder o tato em enxergar o que ocorre ao nosso redor. “Queer” encabeça a teoria como sendo um termo subvertido da linguagem, mas não encontra aplicabilidade em terras tupiniquins por diversos fatores, como não sermos um país de língua natal inglesa e não utilizarmos queer como xingamento em decorrência deste fato. Podemos pensar a queer de Butler e viver a bichisse do Brasil e ainda assim realizar contraproduções à heteronorma e ao patriarcado.

Pensando então em processos de assimilação e entendendo o que vem ocorrendo nas discussões de gênero e sexualidade, se faz necessário que sejam enegrecidos alguns pontos, como por exemplo quem é essa pessoa que após toda sua construção, se diz bicha e não gay. Se há essa identificação, temos então de falar de contexto cultural, porque como se diz na cartilha rosa: “A referência de uma bicha é outra bicha e de uma travesti é uma travesti e por aí vai!”. E há muito, esse referencial vem sendo minado, como que se a referência de outra bicha tivesse de ser um homem gay, como que se pelo pênis ali pendurado na bicha a mesma quisesse de fato ter uma vida como a que lhe foi atribuída e esperada em seu nascimento, como que se sua existência fosse limitada ao sexo e ao “Você tá agindo assim e gosta de homem porque quer ser mulher!”, quando há muito mais para além dessa instância.

Ser bicha é estar no entremeio entre o tido como homem e mulher, dividir a marginalização com as travestis que também transitam por esse limbo social, é utilizar o que se tem vontade sem a importância dada para o que a sociedade dirá sobre ser coisa “de menino” ou “de menina”, é ser decolonialista e não aceitar que se imponha sobre a própria vida um ideal de procura por um parceiro rico e branco que te levará para a Europa quando casarem, é por vezes ter conflitos com a lei por ter brigado em bares e trocado garrafas com pessoas que a atacaram pura e simplesmente por sua bichisse ou por ter roubado mais um mercado ou loja por não conseguir emprego formal e todo lugar afirmar que aquele espaço não é para ela e seu consumo. Ser bicha é, então, uma identidade de gênero e resistência. Não se contentar com o que foi dado, não receber só o esperado e não viver oficialmente. Ser bicha é subverter o papel de subalterna que a sociedade dá e dizer que não irá assimilar, não irá falar grosso se não quiser e não irá também aceitar ser essa voz subalterna e calada. Há, também, em alguns casos, o sexo com homens, mas mesmo isso pode ser opcional, visto que há bichas que sequer estão interessadas em relacionamentos com os indivíduos que há muito vem as oprimindo. Há, mas não é e nunca será o eixo central. Para se transar, é preciso estar viva. E estar viva é a luta da bicha.

Tendo isso em mente, não há como pensar liberdade e plenitude de gênero se o pensamento não acompanhar uma lógica que contemple de fato a realidade da pessoa inserida e para que isso ocorra, é primordial que evitemos mais invisibilizações, deixando os enegrecimentos necessários sempre pontuados e a certeza de que não nos assimilarão, mesmo que a ciência, a medicina, a justiça e todas as demais instâncias da heteronorma se manifestem.

Bibliografia

BENTO, B. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 549-559, 2011.

BUTLER, J. Deshacer el género. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2006.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

FOUCALT, M. Microfísica do Poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

MACHADO, B. Na pele: Prazeres sem preservativo. São Paulo, 2013.

MOMBAÇA, J. Pode um cu mestiço falar? Disponível em: <https://medium.com/@jotamombaca/pode-um-cu-mestico-falar-e915ed9c61ee>

MORRIS, C. Now meet the real gay mafia. Londres, 1999. Disponível em: <http://www.newstatesman.com/now-meet-real-gay-mafia>

SANTOS, D. O poder do pink money e o surgimento das empresas “gay friendly”. Fortaleza, 2013.

Imagem: Madame Satã

Written by Beatriz

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