Mulheres cis e cisgeneridade + mini fac vergonhas radfem
Textos de Geni Núñez.
Uma das grandes dificuldades que noto na compreensão da cisgeneridade como um lugar estrutural de poder diz respeito ao próprio sistema binário de visualizar as relações.
Então se alguém está no campo da opressão, não poderia estar, concomitantemente, em posição de privilégio e vice-versa. Dizem: “mulheres (cis) não se beneficiam do sistema de gênero” logo não haveria privilégio na cisgeneridade.
No entanto admitem que mulheres possam ser lesbofóbicas, por exemplo.
A heterossexualidade é parte central do sistema de gênero e admitir que lesbofobia e bifobia existem e podem ser perpetradas inclusive por mulheres não deveria ser distorcido pra: ah, vc acha que sou lesbofóbica? e o machismo que sofro?? é misógino me chamar de hétero pois não escolhi a heterossexualidade compulsória, etc.
Da mesma forma, ver a socialização como um destino linear e binário não se sustenta na realidade. Por exemplo: todes fomos socializades para sermos hétero, no entanto nós dissidentes existimos, o que é uma prova que a socialização de gênero ”falha”.
A menos que a pessoa acredite em gene gay, deve reconhecer que a sexualidade é socialmente construída.
Se dissermos que a aparência dissidente de parte das lésbicas, o uso de determinadas roupas e cortes de cabelo podem fazer parte da violência que sofrem, ninguém ousaria dizer que “não é uma bermuda que faz a opressão de gênero, nem um corte de cabelo, elas são fetichistas. E no mais, não são as mulheres hétero que estão matando as lésbicas, não nos chamem de lesbofóbicas, isso é misógino”.
O pensamento colonial, binário, ao alocar apenas 2 caminhos, céu ou inferno, opressão ou privilégio, vítima ou opressor, etc, distorce a complexidade das relações e dificulta seu enfrentamento.
Identidades que se constróem apenas na chave da opressão tendem a estranhar e dramatizar qualquer outro aspecto que venha lhes tirar desse lugar simplista, sem o qual não conseguem articular seu lugar no mundo e suas lutas reformistas.
Fiz um mini fac anti vergonhas rad, hahaha.
1) Suposta diferença de materialidade entre gênero cis e trans: quando se diz que ser mulher não é sentimento ou identificação, é como se o gênero das pessoas trans fosse menos concreto. Se fosse uma questão meramente de palavras, era só as minas trans, na hora da violência, mudarem o sentimento ou o discurso que iam tá salvas da violência, certo? rs. Pessoas cis costumamos nos colocar como centro temporal do mundo, de modo que muitas vezes se pensa que pessoas trans nos ”copiam”. Essa mentira só é possível pela centralidade do tempo cisgênero (Leiam o intelectual @junonedel sobre isso ). O tempo universal não gira em torno dos nossos umbigos para que as experiências trans ou se aproximem ou se afastem de nós. Não é sobre nós. O ego cis precisa ser destruído. Não existe um antes e depois pra um gênero ser real e concreto e o outro ser moda e imitação. Já passou da hora de largarmos o Gênesis bíblico, né?. .
2)”Não são as mulheres cis que estão matando pessoas trans” e sobre privilégio cis: bom, de fato a violência física e com armas historicamente é perpetrada mais por homens cis brancos mesmo, mas isso não quer dizer que não haja vários tipos de violência. Por ex: mulheres brancas historicamente também não mataram pessoas negras e indígenas tanto quanto os homens brancos. No entanto, a gente não pode dizer que não existe um privilégio racial só porque nem sempre é do mesmo tipo. Outra coisa, privilégio não quer dizer que a pessoa vive num mundo de flores. Por ex, eu sou uma pessoa sem deficiência, tenho o privilégio de não viver violências capacitistas, o que não quer dizer q eu não sofra racismo, machismo, lesbifobia, etc. Eu também nunca matei pessoas com deficiência, nem por isso estruturalmente eu vou deixar de reconhecer meu lugar de privilégio como não deficiente. Achar que só se tem privilégios se você é um psicopata assassino em série é uma forma de justamente disfarçá-lo. (Leiam o trabalho da rainha Beatriz Pagliarini Bagagli)
3) Socialização: a ideia de que socialização “não falha” é um dos pressupostos equivocados do radfem. Vejam, eu recebi socialização heterossexual e… hahaha. O sistema de gênero nunca foi linear, nunca existiu apenas 2 socializações, dizer isso ignora a diversidade dos percursos históricos que se têm em relação à vivência do gênero (e raça, deficiência, etc).
4) Moralismo da escolha: acham que mulheres cis não tiveram ”escolha” e pessoas trans sim. Supondo que isso fosse real, hahah, culpabilizaria pessoas trans pela transfobia estrutural que sofrem, como se fosse culpa delas, afinal “escolheram” passar pelo que passam. Um discurso nojento que se aproxima em alguns pontos de quem acha que “damos muita pinta” por isso sofremos violência. Rad parece aquelas pessoas que defendem direito a aborto apenas em caso de estupro, se a pessoa escolheu livremente trepar e aconteceu a gravidez indesejada, então não “mereceria” o direito ao aborto. Supondo que se pudesse escolher livremente o gênero, porque uma violência se torna menos absurda se a pessoa teve escolhas parciais neste processo? Nada justifica a violência, deveria ser o pressuposto básico feminista: nem pela roupa, nem pelo gênero, nem no tempo, nem no lugar, etc. etc.
Imagem de destaque: Unsplash/ Cecilie Johnsen.