Multi e transparentalidades
Por Yuna Vitória.
Deixa eu desabadar algo com vocês.
Tenho debatido bastante sobre “multiparentalidade” com meus professores, as potências e os limites desse conceito quando pautamos questões trans, pelo menos com os que se exibem empáticos a novos paradigmas. Esses diálogos são quase sempre inconclusivos. No Direito, atualmente, a discussão se julga avançada, temos até “especialistas em direito da família” dando palestra sobre “diversidade familiar” (e lucrando horrores), alargando o debate para as homoparentalidades que o código civil de 2002 possibilitou ao reconhecer o que chama de “filiação socioafetiva”. Consta, no Art. 1.596 que “os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
A partir desse artigo abriu-se a multiparentalidade no ordenamento jurídico, onde tanto o código civil quanto a constituição perderam as distinções pejorativas ao que anteriormente era considerado prole ilegítima, ou seja, filhos advindos de relações extraconjugais que tinham o reconhecimento da filiação deslegitimado e desamparado pelo Estado. Embora pensado para resolver esses dilemas que não encontraram terreno fértil na sociedade contemporânea, sendo o Direito um dispositivo de controle bilateral e atributivo, portanto volúvel - tendo que considerar as variadas formas de relação e interação entre os sujeitos de direito em seu tempo (quiçá a frente) -, o artigo, todavia, é exato ao enunciar a proibição de quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, conquanto discriminação, para além de ser um tratamento diferenciado para determinados indivíduos, é o resultado do preconceito em atos [ação ou omissão] que ocasiona violação de direitos, especialmente relacionados a discriminação de raça, classe social, condição psicofísica, geração, gênero e sexualidade.
Como, então, discutir a violação dos direitos das pessoas trans na esfera civil no que tange o direito à família, quando os dispositivos legais não travam oposição direta a esse reconhecimento e mesmo assim há dificuldade de acessá-los? Como pautar legislações específicas para “facilitar o entendimento” dos profissionais sem abandonar a crítica da irregularidade de proibições e constrangimentos anteriores a essas “novas medidas” que praticamente desresponsabilizam os agentes de direito? Quando a discussão de uma “transparentalidade”, por exemplo, fará parte dos extensos discursos sobre diversidade familiar cisgênera difundida mundo afora?
A variedade de configurações das relações envolvendo pessoas trans é incontável, materializando inclusive os anteriormente impensáveis casos de “duas mães biológicas”, “dois pais biológicos”, “homem que gestou da companheira” e, ainda, configurações que excedem e embaralham ainda mais o sistema binário sexo/gênero. Nada disso encontra inteligibilidade dentro e fora do direito. Esse debate precisa existir em tempos de novas conquistas e acessos [e bloqueios também]. De forma horizontal, envolvendo todas as camadas da população trans, não apenas os ministros do supremo apáticos ao que vem sendo construído pelos movimentos sociais.
Enquanto pensamos nos direitos da família enquanto diversos e inclusivos em pleno 2019, pessoas trans, mesmo já retificadas e “reconhecidas pelo Estado enquanto homens ou mulheres de acordo com suas autoidentificações”, seguem proibidas de registrar seus filhos consanguíneos porque o cis-tema legal entende que são casos excepcionais que não foram pensados pelo direito, como se o simples fato de envolver pessoas trans no processo fosse prerrogativa para procedimentos diferenciados [discriminatórios], transformando quase sempre o administrativo em judicial para que, com muita luta, bons defensores e magistrados empáticos, o direito seja reconhecido.
Pessoas trans estão enfrentando dificuldades de assistência médica em relação a saúde reprodutiva, têm suas especificidades negligenciadas em se tratando de gestações, acesso a benefícios e políticas que nasceram para privilegiar experiências cisgêneras. A maternidade e a paternidade abarcadas pela justiça é cisnormativa.
Repito: Já atingimos o direito à retificação.
Quando atingiremos a retificação do direito?