O que exatamente as pessoas transgêneras ameaçam?
Por Karen L. Blair. Leia o texto original, em inglês. Tradução por Beatriz P. Bagagli.
Pesquisas recentes investigam a relação entre o binário de gênero e o preconceito contra pessoas trans.
Uma nova pesquisa tentou entender melhor as circunstâncias em que os indivíduos se sentem ameaçados pelo comportamento de não-conformidade de gênero. Em geral, sabemos que as pessoas tendem a reagir negativamente a indivíduos que não aderem ao binário de gênero - isto é, a noção de que existem dois sexos, masculino e feminino, e que qualquer que seja seu sexo ele deve ditar claramente seu gênero e seu papel de gênero comportamental como de homem ou mulher. Se uma pessoa é biologicamente masculina, mas se comporta de maneira estereotipicamente feminina, podemos entender essa não-conformidade de gênero pertencendo a um indivíduo cisgênero (isto é, alguém cujo sexo biológico é o mesmo que sua identidade de gênero). Da mesma forma, um indivíduo transgênero (isto é, alguém cujo sexo identificado no nascimento não se alinha com sua identidade de gênero) pode ser visto como em não conformidade de gênero simplesmente por ser transgênero.
Pesquisadoras da Universidade de St. Louis procuraram determinar qual desses dois tipos de não-conformidade de gênero seria visto como o mais perturbador para aqueles que valorizam o binário de gênero. Embora seja possível que qualquer um se desvie mais ou menos do binário de gênero, muitas vezes os indivíduos transgêneros parecem ser percebidos como uma ameaça maior a visões binárias de gênero do que as pessoas cis em não conformidade de gênero.
Kristin Broussard e Dr. Ruth Warner propuseram que uma das razões para isso está no fato dos indivíduos transgêneros poderem serem vistos como transgressores simultaneamente das normas de gênero de AMBOS os gêneros binários. Por exemplo, uma mulher trans (isto é, alguém designado como homem no nascimento e que agora se identifica como mulher) está transgredindo as normas masculinas ao se identificar como mulher, mas também pode ser vista como transgressora das normas de ser mulher por não parecer feminina o suficiente. De fato, outras pesquisas descobriram que as mulheres transexuais estão particularmente em risco de sofrer preconceito e violência devido à tendência geral da sociedade de policiar a feminilidade e punir as transgressões da feminilidade marginal.
Em seu artigo, Broussard e Warner tentaram identificar como o binarismo de gênero, ou a “crença de que existem apenas dois gêneros, correspondendo ao sexo biológico”, podem estar associados ao preconceito contra pessoas trans.
As pesquisadoras previram que, para indivíduos que manifestavam alto binarismo de gênero, os indivíduos trans seriam vistos como particularmente ameaçadores psicologicamente, porque elas vão de encontro a algo que esses participantes acreditam ser um traço humano essencial e imutável: o gênero e, por extensão, a conexão entre sexo e gênero.
As pesquisadoras se concentraram em uma noção chamada de “ameaça de distintividade”. De acordo com a Teoria da Identidade Social, nossas identidades sociais, ou os grupos aos quais pertencemos, nos ajudam a definir nossas identidades pessoais. Na medida em que os limites em torno dos grupos que são importantes para nossas identidades tornam-se indistintos, podemos experimentar uma ameaça de distintividade. Em suma, a singularidade de quem somos como indivíduo é ameaçada quando os limites em torno das definições de grupo que usamos para nos definir mudam ou se tornam maleáveis.
Por exemplo, imagine que você é um policial e que ser um policial é fundamental para sua identidade. Imagine então que a categoria de policial foi substituída por “Profissional de Segurança” e que essa nova categoria incluiria policiais, seguranças e instaladores de sistemas de segurança doméstica. Essa experiência provocaria altos níveis de ameaça de distintividade em policiais cujas identidades estiverem altamente entrelaçadas em ser um policial.
Quase todo mundo em uma sociedade ocidental define uma boa parte de sua identidade pessoal por seu gênero. Muitos nomes são considerados apropriados para apenas um gênero, e nosso nome talvez seja a parte mais identificadora de quem somos como indivíduo. Da mesma forma, nosso gênero frequentemente dita as roupas que vestimos, o estilo de corte de cabelo que fazemos e se cultivamos ou removemos nossos pelos faciais! Assim, para muitos indivíduos, a noção de desfocar os limites em torno do gênero pode ser experimentada da mesma forma que os policiais responderiam a uma proposta de renomeá-los como “profissionais de segurança”, sem nada para distingui-los de um segurança de shopping ou de um estudante de férias instalando sistemas de segurança doméstica.
Assim, as pesquisadoras esperavam que indivíduos que valorizassem muito um sistema binário de gênero e que definissem o que significa ser um homem ou uma mulher com muita rigidez estariam mais propensos em experimentar uma ameaça de distintividade quando confrontados com comportamentos de não conformidade de gênero tanto de indivíduos cisgêneros como transgêneros, mas especialmente de indivíduos transgêneros. Como disse Broussard, “algumas pessoas acham que as pessoas transgêneras são ameaçadoras porque não se encaixam em uma das duas caixas de gêneros, ou se encaixam em uma das caixas, mas não na que foram atribuídas no momento do nascimento”.
As pesquisadoras realizaram três estudos. Em cada estudo, os participantes leram histórias sobre indivíduos hipotéticos que estavam ou em alta conformidade de gênero ou em não conformidade de gênero, e que eram ou transgêneros ou cisgêneros. Depois de ler as histórias, os participantes foram questionados sobre o quanto eles achavam que gostariam da pessoa na história, o quanto eles aceitaram a expressão de gênero da pessoa e a percepção da ameaça de distintividade que sentiram como resultado da leitura da história.
Nos três estudos, elas descobriram que, no geral, os participantes relataram gostar mais dos indivíduos em conformidade de gênero e cisgêneros do que indivíduos transgêneros e em não conformidade de gênero (por exemplo, mulheres masculinas, homens femininos). Os participantes também viam os indivíduos transgêneros e em não conformidade de gênero como mais ameaçadores para as fronteiras que definem o que significa ser um homem ou uma mulher (ou seja, maior ameaça à distintividade). No entanto, foram os indivíduos transgêneros em conformidade de gênero (isto é, mulheres transgêneras femininas ou homens transexuais masculinos) que foram vistos como os mais ameaçadores para as fronteiras de gênero. Como Broussard coloca, “é provável que os indivíduos transgêneros em conformidade de gênero (porque eles podem “passar” como seu gênero autêntico) são especialmente ameaçadores porque fornecem alguma evidência de que existem mais de dois gêneros binários, ou que o gênero binário [de alguém] pode ser alterado.”
Em outras palavras, se você acredita firmemente que existem apenas dois sexos e que esses dois sexos sempre criam dois gêneros, e que não seja possível alguém mudar de um gênero para outro, ser apresentado a um homem trans masculino (alguém que foi identificado como mulher ao nascer), que visual e comportamentalmente é indistinguível de um homem cisgênero, pode ser uma experiência muito chocante que desafia as crenças binárias sobre gênero. Além disso, indivíduos trans em conformidade de gênero podem provocar ameaça de distintividade porque se você é um homem e depende muito de sua identidade como homem, o que essa parte de sua identidade realmente significa se alguém nascido mulher puder “passar” como homem tanto quanto você? Assim, quanto mais um indivíduo acredita firmemente no binário de gênero, mais os indivíduos transgêneros se tornam ameaçadores (especialmente aqueles que “passam”) para a identidade pessoal do indivíduo como homem ou mulher.
Por fim, é importante enfatizar que a expressão de gênero de um indivíduo transgênero não é responsável por provocar o preconceito de outras pessoas. Ao invés disso, o preconceito contra pessoas trans deriva de um processo interno no qual a pessoa que detém o preconceito experimenta uma ameaça a um aspecto de sua própria identidade e, portanto, ataca os indivíduos trans como um meio de tentar reafirmar as fronteiras que envolvem aspectos importantes - neste caso, do seu gênero.
Referências
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Broussard, K. A., Warner, R. H., & Pope, A. R. (2018). Too many boxes, or not enough? Preferences for how we ask about gender in cisgender, LGB, and gender-diverse samples. Sex Roles, 78(9-10), 606-624.
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Sobre a autora
Karen Blair, Ph.D., é professora assistente de psicologia na Universidade St. Francis Xavier. Sua pesquisa examina os determinantes sociais na saúde ao longo da vida dentro do contexto das relações sociais.
q texto necessário! parabéns pela tradução!
“Se uma pessoa é biologicamente masculina, mas se comporta de maneira estereotipicamente feminina, podemos entender essa não-conformidade de gênero pertencendo a um indivíduo cisgênero (isto é, alguém cujo sexo biológico é o mesmo que sua identidade de gênero)”.
Há um erro aí, creio, na hora de traduzir.
Oi Alexia, no original está “If a person is biologically male but behaves in stereotypically feminine ways, we can call this gender nonconformity within a cisgender individual”, ou seja, ela está se referindo ao fato de que pessoas cis possam ter comportamentos de gênero em não conformidade, neste caso a um homem cis que tem expressão de gênero feminina, então acho que está correta a tradução.
Tudo bem, Beatriz. Pode ter sido erro de leitura e/ou interpretação minha. Bjs.