O que senti falta em um artigo de Marco Antônio Coutinho Jorge e Natália Pereira Travassos
Por Daniela Andrade.
Li um artigo psicanalítico dizendo que há uma ‘epidemia’ transexual, publicado em 2017. Os autores afirmam que lançarão um livro sobre o assunto.
Um dos autores é psiquiatra e psicólogo pela UERJ, Marco Antônio Coutinho Jorge.
A outra autora é psicóloga e psicanalista no grupo Arco Íris, no Rio de Janeiro, Natália Pereira Travassos.
Os autores defendem que há uma ligação entre a transexualidade e a histeria, e que algumas transexualidades são psicóticas.
O artigo foi publicado na Revista Latino-americana de Psicopatologia.
Link para o artigo: http://www.scielo.br/…/r…/v20n2/1415-4714-rlpf-20-2-0307.pdf
É das coisas mais preconceituosas contra pessoas trans que já tive o desprazer de ler.
Curioso que a cisgeneridade imposta é vista e tratada como absolutamente normal, o que é doentio é a transexualidade pela qual muitas das pessoas trans foram assassinadas por ousarem viver.
Quer dizer, saudável é reivindicar-se cisgênero, doente é ousar não reivindicar essa caixa de gênero imposta quando nascemos.
Senti falta no artigo sobre o caso de pessoas trans que vivem em depressão severa por uma atenção médico/cirúrgica que não vai chegar. Aquelas que se mataram por não terem tido o direito de se operar.
Aquelas que desenvolveram diversos transtornos mentais pela diária e crescente discriminação a que pessoas trans estão expostas.
Senti falta de que as pessoas trans adultas sejam tratadas como adultas, pois parece que as pessoas trans são as influenciáveis pela ‘moda’, cisgêneros não. Ou não há pessoas cisgêneras recorrendo à mudanças corporais por conta da moda?
Se formos nos influenciar pela moda, seria pela moda cisgênera, afinal, a cisgeneridade é absoluta em todos espaços e lugares.
Senti falta dos autores falarem sobre o quão precário é o atendimento para pessoas trans no Brasil, o quanto os médicos costumam ser preconceituosos, o quanto é difícil encontrar cirurgiões atendendo pessoas trans e o quanto é difícil cirurgiões querendo modernizar suas técnicas cirúrgicas.
Senti falta deles falando sobre cirurgias feitas de qualquer jeito e que, evidentemente não deixará a pessoa trans satisfeita e nem proporcionará saúde mental - ou será que pessoas cisgêneras submetidas a cirurgias feitas de qualquer forma ficarão saudabilíssimas?
Senti falta de que pessoas trans sejam tratadas como falíveis, que podem se arrepender dos seus atos, e mesmo que pessoas que descubram que não são trans não invalidem a vivência e realidade de pessoas trans.
Afinal, há pessoas de todas as sexualidades descobrindo que estavam equivocadas em relação às suas sexualidades, nem por isso chamaremos elas de doentes mentais, transtornadas, mas por que só no caso da identidade de gênero é proibido a pessoa descobrir que estava equivocada?
Se há pessoa trans destranscionando, então é sinal que a transexualidade é algo doentio.
Então vamos considerar a heterossexualidade doentia, já que há pessoas gays descobrindo que não eram hétero?
Vamos considerar a homossexualidade doentia, já que há pessoas se dizendo ex gays?
Os autores colocam que há tantas pessoas trans por que as pessoas são influenciáveis.
Como se sim, diante da escabrosa realidade de vivermos num país que odeia pessoas trans, campeão mundial de assassinato de pessoas trans, teremos uma epidemia de pessoas ‘escolhendo’ ser trans por que claro, pessoas trans tem muito mais direitos garantidos que qualquer um.
Os autores defendem que pessoas se determinam trans em função da repressão cada vez maior da homossexualidade.
Evidente, homossexuais são perseguidos no país, pessoas trans são enaltecidas.
Então alguém precisa explicar por que a expectativa de vida de uma mulher transexual ou travesti no Brasil é de 35 anos, explicar por que só resta a prostituição para a retumbante maioria, explicar por que o Brasil é campeão de assassinato de pessoas trans.
Alguém explica como frequentemente mulheres transexuais ou travestis são expulsas de casa ouvindo em muitas vezes que “ser gay podemos até tolerar, mas vestir-se de mulher, querer ser mulher é demais”?
Mais transfobia camuflada em ciência e psicanálise.
Meu mais veemente repúdio.
Ainda sobre estes autores, leia também:
Uma Resposta à Marco Antonio Coutinho Jorge e Natália Pereira Travassos