Retrospectiva de textos publicados (parte 2)
Pra começar muito bem o novo ano, resolvi dar continuidade com a retrospectiva de textos que publiquei durante o ano de 2015 – para ver a parte I, clique aqui. Estes textos foram publicados no meu facebook e resolvi reunir todos eles nesta postagem. Pra facilitar a leitura dos textos (que são muitos, já que foram escritos ao longo de 6 meses, de julho à dezembro) elenquei os temas que abordei nos textos de acordo com a data em que foram escritos (podendo ter mais de um texto para determinado tema). Aqui vão eles:
Trânsito de gênero (29/07, 24/11); Refutação de discursos trans-excludentes (11/08, 14/09, 25/10/, 28/10); Sentidos sobre “pós-moderno” (31/07); Sentidos sobre travesti e transexual (03/08); Uso do banheiro (06/08, 17/11, 09/12); Psicanálise/Psicoterapia/Psicologia (10/08, 04/09, 08/10); Anulação de casamento e cissexismo (13/08); Programa Transcidadania (17/08); “Gosto pessoal”, desconstrução e sujeito de desejo (16/09, 19/10); Estatuto da família (26/09); Transfeminismo e epistemologia (27/09); Biologização do gênero e sexualidade vs modos de vida (10/10, 10/12); Crianças trans (11/10); Teoria e termo queer (12/10); Reposição hormonal e autonomia corporal (17/10); Escola (12/11); “Polêmica” em torno da enunciação de palavras no feminino (20/11, 22/11); Noção de materialidade (30/07, 23/11, 26/11, 28/11); Transgeneridade e verdade (23/12); Noção de socialização (24/11).
29/07/2015
Quem nunca ouviu “tudo bem ser gay mas não precisa desmunhecar”; “tudo bem ser gay mas não precisa querer ser mulher”; “tudo bem ser gay mas não precisa ser afeminado”; “tudo bem ser gay mas não precisa ser travesti”; “tudo bem ser gay mas não quero que sua existência seja visível socialmente”; “tudo bem ser gay, mas…”. Eis a fórmula que se repete ad nauseam: “tudo bem ser gay mas X” sendo X qualquer atitude ou símbolo que remete à feminilidade ou simplesmente o fracasso da masculinidade. Tentem inverter a fórmula para ver se o resultado seria igualmente enunciável em nossa sociedade “tudo bem ser bicha mas não precisa ser homem masculino”.
Se o trânsito de gênero em direção ao feminino a partir de indivíduos que foram designados como masculinos ao nascer não fosse tão vigiado em nossa sociedade, como explicar a difusão destes enunciados? A quem este enunciado visa proteger? A que norma estes enunciados visam proteger? Qual tipo de gay é tolerado por estes enunciados? O que a norma que sustenta o sentido destes enunciados quer de fato preservar? Quem acertar ganha um docinho.
30/07/2015
Muita gente tenta defender discurso terf indiretamente ou diretamente ao tentar advogar para a importância da “materialidade”, do “materialismo”, se contrapondo a perspectivas “subjetivas” e “individualistas”. Mas vejamos o caso mais recente, da página “gay anti-queer”. Colocam a “performace da feminilidade” como uma forma como homens podem “oprimir mulheres”. Ora, conceber uma questão deste tipo só se dá através justamente de uma perspectiva que coloque grandes poderes ao indivíduo. Por quê? É só a partir de uma perspectiva individualista que se pode colocar algo como da esfera do “desrespeito”, “agressão”, “violência” e “opressão” ao ato individual de um sujeito homem que “performa o feminino”. Essa questão só se formula tendo em vista sua inscrição nesta perspectiva transfóbica E de um indivíduo soberano, dono de si responsável pelas estruturas de dominação.
A opressão não se origina tampouco se estrutura no ato de performances de gênero dos indivíduos. Achar que os indivíduos podem “oprimir” mulheres por performar o feminino é um absurdo, e é um baita de um idealismo. Isso sim significa ignorar as reais causas estruturais e estruturantes da opressão.
31/07/2015
Engraçado mesmo como pós-modernismo pode significar tanta coisa que pode simplesmente significar coisas completamente antagônicas. Primeiro falam que pós-modernismo é coisa de quem “relativiza” as coisas. Acusam muito também de pós-moderno os discursos que são anti-essencialistas e que criticam a noção de totalidade. Não vou advogar pra nenhuma sentido, nenhuma verdade em relação a designação desse termo. Só quero apontar como o mesmo termo é usado pra designar outros discursos militantes que justamente não relativizam e que são, em certa medida (mais ou menos) essencialistas e advogam para a totalidade (a totalidade de um grupo oprimido, como as pessoas negras e mulheres). Não me cabe aqui fazer juízos de valores em relação a estes discursos militantes, ainda mais no que diz respeito a questão racial e apropriação cultural (que frequentemente são acusados de serem “pós-modernos” ao mesmo tempo em que não cabem exatamente na primeira definição de pós-moderno que falei). Só quero mostrar que o rótulo pós-moderno serve para absolutamente tudo… tudo o que você acha ruim, vale lembrar.
A questão então é: as vezes o que você acha ruim é um discurso que relativiza; as vezes, não, mas a alcunha continua a mesma. Eu não estou querendo dizer aqui que os discursos que relativizam mais ou menos são mais ou menos bons. Acredito na desconstrução e construção de totalidades estratégicas, paradoxais. Mas e aí pessoas políticas dos faces books, bora fazer um debate mais honesto? Bora assumir explicitamente qual é sua posição ao invés de sair gritando aos berros “pós-modernismo!!!”?
03/08/2015
Comentário em relação ao post de Daniela Andrade
Esse é o problema… assumir de antemão a existência de uma diferença essencial entre travestis e transexuais, seja de ordem psicológica ou sociológica. O que nós temos que fazer é justamente questionar o que faz dessa evidência de diferença algo natural AO MESMO TEMPO em que não apagamos as especificidades históricas (aqui digo, em especial, no nosso contexto, da história do grupo das travestis, que podem seguir invisibilizadas por um discurso que apague suas diferenças em torno de uma suposta igualdade do grupo). É o velho debate entre diferença e igualdade (me lembro de Joan Scott, referencia nesse debate).
Interessa a nós, pessoas trans, travestis e transexuais criarmos diferenciações entre essas categorias de forma abstrata, na base do discurso biopsicológico+sociológico ou compreender que todas essas categorias tem um peso histórico + a auto determinação dos sujeitos? Quero dizer: é óbvio que existe todo um peso histórico acerca de sentidos acerca de travestis e transexuais e isso não pode ser simplesmente apagado. Mas esse “peso histórico” não é um bloco homogêneo em primeiro lugar. Esse histórico comporta as lutas, as reivindicações, as contradições, as divisões, as disputas, as vivências, os silenciamentos, as relações de poder e os sentidos contra hegemônicos. Não dá pra representar os sentidos já postos acerca de travestis e transexuais como se fosse algo unívoco ou homogêneo. A história não é um jogo de cartas marcadas, ela é instável. E depois, a quem interessa essa “vontade de classificação” como uma essência que diria a última verdade sobre sujeitos que não são cisgêneros? Não é possível classificar as pessoas entre travestis e transexuais como fazemos como raças de cachorros ou coisas parecidas, pois a “verdade” em ser travesti e transexual não se encontra sob a base da estabilidade ou evidência de um sistema classificatório qualquer. Porque? Voltando, existe a nossa autodeterminação. A nossa autodeterminação e a história faz questionar radicalmente a noção de estabilidade em torno destas categorizações. Não se trata, portanto, de opor a história de significação destes termos com a auto declaração dos sujeitos, mas compreender a relação necessária entre estes dois fatores: não há história que não comporte a mudança e a instabilidade e não há auto declaração que se dê a partir do vácuo, desprendida de qualquer determinante histórico.
06/08/2015
Lembra quando a gente achava um absurdo as leis americanas das décadas de 60 e 70 (se não me engano… o bom que elas devem ter caído por volta dessa década, acredito) que PROIBIAM JURIDICAMENTE uma pessoa usar roupas que não eram consideradas adequadas com o gênero que constava arbitrariamente na sua documentação oficial? Não preciso nem dizer que isso significava explicitamente a CRIMINALIZAÇÃO DA TRANSGENERIDADE. Inclusive tais leis de vestimenta foram um dos motivos da rebelião de Stonewall. Eu ficava “aliviada” por isso não ser mais enunciável nem do ponto de vista ético e jurídico em nossa sociedade atual. Será mesmo? Infelizmente, hoje fiquei sabendo que não é bem assim.
Hoje, em pleno ano de 2015, vemos a tramitação do projeto de lei (PL 126/15) de um vereador de Sorocaba que pretende não apenas proibir o acesso de pessoas trans aos banheiros das escolas, como de proibir “a utilização de uniformes, vestimentas ou demais elementos da indumentária escolar tenham como referência o gênero e não o sexo biológico” (http://www.camarasorocaba.sp.gov.br/sitecamara/noticias/vernoticia?codigoNoticia=12150). Como se já não houvesse suficiente discriminação transfóbica INFORMAL no ambiente escolar, esse projeto se propõe uma verdadeira institucionalização e legalização da transfobia já existente. Esse projeto desenterra as leis de uso de determinadas roupas para determinados gêneros e proíbe a transgressão à cisnormatividade. Proíbe a existência mesma de certas formas de vida: transgêneras. Proíbe o acesso a educação para pessoas trans. Tenta legalizar a própria barbárie. Esse projeto consegue desenterrar o que há de pior na transfobia e passá-la sob a forma da Lei.
10/08/2015
Gente, eu juro que tento dar uma chance pros psicanalistas quando eles querem abordar o tema da transgeneridade, mas eu mal começo a ler e já vejo o povo literalmente cagando normatividade. O que aconteceu com a psicanálise minha gente? É psicanalista julgando as demandas de alteração corporal, é psicanalista falando da questão trans como um “dano psíquico” (claro, a transgeneridade seria decorrente em si mesmo de um suposto dano psíquico, mas e quanto à transfobia? e quanto às estruturas sociais de exclusão? e a cisgeneridade, ela não seria igualmente decorrente de um dando psíquico tão primordial quanto à transgeneridade?); é psicanalista (vejam sós, eu acabei de ler isso) dando a entender que a mudança de documentos não é uma questão importante; é psicanalistase colocando nesta posição paternalista supostamente acima do gênero (não é mera coincidência com as feministas radicais) pra poder cagar regra acerca das identidades e demandas trans; é psicanalista caindo no papel de padre; é psicanalista caindo na mesma ladainha problemática das terfs no que se refere ao apontamento da problemática da dialética entre normatividade e transgressão às normas. Em suma: é psicanalista acreditando na Verdade do “problema trans” como essencialmente algo da esfera do julgamento de valor (novamente, não é mera coincidência você se arvorar em uma posição “acima do gênero” e apontar como certas pessoas seriam “mais” normativas e “alienadas”), e inclusive citando Lacan, o que é no mínimo curioso. É preciso menos pastoral na psicanálise e feminismo e mais alteridade. Lembro de um texto de Foucault, em que ele concebe o poder pastoral como o regime de poder que coloca os sujeitos como indivíduos (as ovelhas) marcados pelo erro essencial (ou pecado) que necessitam da salvação, utilizando para isso a culpa e a mortificação da vontade do indivíduo, tendo em vista uma salvação coletiva.
Não sou grande conhecedora de Lacan, mas vamos ser “mais” lacanianxs quando falamos de transgeneridade e normatividade. Vejo com muita desconfiança a necessidade de busca do Sentido quando falamos da busca de pessoas trans em reafirmarem suas identidades, o que pode incluir demandas por alteração corporal (ou não). Você pode perfeitamente estabelecer um sistema interpretativo que coloque a demanda por alterações corporais ou a existência mesmo das subjetividades transgêneras como mero resultado do jogo de poder das normas sociais. E num deslizamento semântico neste sistema de jogo de significantes, tomar como metonímia a transgeneridade como a própria norma, fazendo deslizar, então, a transgeneridade como algo essencialmente indesejado - a partir do momento que seu discurso se propõe a crítica às normas. Aí que entra o perigo de tomar, neste caso, a cisgeneridade como uma base impensada do gênero humano e vilipendiar um grupo social subalternizado.
A grande questão que precisa ser colocada é que não existe a Verdade sobre a transexualidade. Não existe o Sentido que precisa ser obtido pela análise do psicanalista quando um sujeito se coloca enquanto trans e possui determinada demanda (ou “sintoma”, digamos). O Sentido que precisa ser obtido pela psicanálise ou feminismo não é a salvação do gênero, não é o sujeito poder se livrar das normas para poder ser “livre”. Acredito que você pode obter determinado sentido numa análise, mas não como uma virtualidade abstrata acerca da transexualidade. O sentido de um sujeito só vai poder emergir como uma singularidade na relação que pode ser estabelecida entre sujeitos tendo em vista o trabalho com o Outro pela alteridade, não pela pastoral.
Olha, diante da psicanálise e dos feminismos normativos surge como uma urgência reafirmar a importância da autonomia dos sujeitos no que tange a gerência de seus corpos, narrativas e identidades. Não se trata de cair num suposto liberalismo ou “agora tudo pode”. Significa reconhecer como a posição de falar pelo outro é indigna e complexa. É revolucionário diante desse contexto pastoral da psicanálise, dos feminismo e diria mesmo do movimento social de um modo geral, afirmar que o sujeito tem direito de escolha, o que não significa cair em concepções idealistas de escolhas. Diante do absurdo do reconhecimento da realidade como opressora é um dever ético dos discursos que se propõem como de resistências a estas opressões não colocar o sujeito como uma ovelha que precisa da salvação (seja pelo feminismo radical, seja pela psicanálise, seja qualquer outro discurso de resistência que se assimila por esse poder pastoral). Não existe salvação no que tange opressão e exploração, mas sim resistência. Processos de resistência, lembrando o queridinho do Pêcheux, não ocorrem em outro mundo, mas por e através das próprias contradições da ideologia dominante.
11/08/2015
Quando mulheres se enfurecem pela situação de opressão que vivenciam o discurso machista as enxerga, com o intuito deslegitimar suas denúncias, como histéricas, como pessoas que precisam fazer sexo com homens (e homens que tenham pênis, vale ressaltar) para supostamente resolver seus problemas. Agora, em se tratando especificamente de mulheres trans e elas se enfurecem, o que o discurso transfóbico tem de novo a oferecer especificamente, para deslegitima-las? É fácil: é só dizer que mulheres trans se enfurecem porque elas foram “socializadas como homens”, elas se enfurecem porque são “na verdade”, homens. Aí você consegue matar dois coelhos com uma cajadada só: além de desviar a atenção das denúncias de transfobia, a própria identidade da mulher trans é deslegitimada.
13/08/2015
Gente, olha o fim da picada: estão discutindo um projeto de lei que dá o poder de anular o casamento caso um cônjuge (presumidamente cis) vier a descobrir que a pessoa com que ele casou seja trans. É óbvio que em nossa sociedade cisnormativa o contrário não se aplica, eu alegar “erro essencial” de uma pessoa cis (e nem “deveria” se aplicar, dado o estatuto da cisgeneridade como natural). Divórcio pra que não é mesmo minha gente? legal mesmo é poder anular casamento com a pessoa trans da forma mais fácil e “espontânea” (sob a égide do cissexismo). É óbvio que são as pessoas trans que podem incorrer no “erro essencial de pessoa” em nossa sociedade, e pessoas cis precisam ser “resguardadas” do seu direito baseado na cisnorma. Assim o jurídico, ao legislar, regulariza a própria transfobia sob a forma do discurso legal. Enquanto isso, cadê projeto de lei João W. Nery? Cadê discussões sobre a lei de identidade de gênero, cadê visibilidade?
17/08/2015
O que pode ser mais “puritano” e “edificante” do que um programa que conceda condições mínimas para que alguém possa estudar e se inserir no mercado de trabalho? O que pode ser mais básico do que conceder abrigo a uma população sistematicamente desapropriada de qualquer condição básica de sobrevivência?
Só um problema: se estamos falando do grupo de travestis e transexuais e estamos falando do projeto transcidadania não importa o quão “edificante” esse programa de fato possa ser, o simples fato de se tratar de pessoas travestis e transexuais faz desta iniciativa suscetível aos ataques mais rasteiros possíveis.
Se estamos falando do transcidadania e de abrigos para pessoas trans somos acusados de conceder supostos privilégios a um grupo específico de pessoas. Por mais “edificante” que o projeto transcidadania de fato seja o estigma que recai acerca de travestis e transexuais impede com que seja reconhecida a necessidade deste tipo de política pública. Se “esquece” espontaneamente acerca das exclusões, das injustiças e violências.
Escrevo isso lendo os comentários de uma notícia da globo. Se estamos reivindicando o mínimo para travestis e transexuais estamos simplesmente reivindicando uma revolução. Se estamos reivindicando o mínimo de inclusão; se estamos reivindicando inclusão social partindo dos mesmos valores “nobres” desta mesma sociedade transfóbica - como eu disse, existe coisa mais ~edificante~ que poder ESTUDAR e adentrar o MERCADO DE TRABALHO? - enfim, se estamos buscando reivindicações que se deem a partir de uma análise que considere que a exclusão de pessoas trans não se dá por mero acaso, simplesmente reconhecendo a necessidade concreta de transformação desta realidade estamos na esfera de uma luta em que o mínimo é colocado (ou seria rebaixado?) como máximo. Saber disso dói, em todos os sentidos.
04/09/2015
Sujeito diz “Acho importante o acompanhamento psicológico… Algumas pessoas precisam se despir de suas crenças… e se prepararem psicologicamente para lidar com o preconceito.” pra falar acerca de como terapia é “importante” para pessoas trans.
Ok, mas não é isso que discutimos quando estamos criticando o modelo biomédico de atenção a pessoas trans que elenca psicoterapia como COMPULSÓRIA. Como que algo pode ser terapêutico sendo compulsório? Já parte equivocado do princípio. Nós pessoas trans somos tratados como gado pela medicina cisgênera. Ou pior, como sacos de batatas que precisariam passar por uma inspeção de qualidade. Precisamos desnaturalizar esse tipo de relação abusiva entre profissionais psi, saúde das pessoas trans e acesso a direitos fundamentais, incluindo aqui especificamente de saúde e jurídico (vejam só, direitos jurídicos ainda em nosso país se atrelam a figura do laudo patologizador, infelizmente).
Vamos então começar a desmistificar algumas coisas em relação a terapia. Terapia não faz milagre, não é a salvação do sujeito, não faz as pessoas alcançarem a iluminação e grande (auto) conhecimento, não faz as pessoas deixarem de ser “alienadas” ou “auto enganadas”. Nada disso se sustenta sob nenhuma perspectiva teórica minimante crítica (e vejam só, a psicanálise deveria ser justamente o espaço onde isso DEVERIA - frise bem a palavra, pq a psicanálise ainda incorre nos mesmos erros do mainstream biomédico - ser ainda mais evidente).
Infelizmente não dá pra colocar a psicoterapia como solução para fazer as pessoas se “despirem de crenças” e então se iluminarem com um suposto conhecimento que faria, só então, as pessoas oprimidas a lidarem com o preconceito. Não existe um “antes” com crença e um “depois” com ausência de crença. Não existe sujeito “sem crença”, a rigor. O que se pode fazer é trabalhar as rachaduras destas crenças, possibilitar o sujeito se apropriar e se deslocar entre diferentes “crenças” ou posições. E outra coisa: preconceito não é apenas “ausência de conhecimento”; preconceito também se dá por excesso, algo que justamente transbordou de sentidos e se manifestou como preconceito. O preconceito é recheado de muitos discursos; não é um espaço vazio da consciência e da ignorância.
Nós travestis e transexuais lidamos com preconceito muito antes de sentarmos num divã. Nenhum psicólogo vai me “ensinar” a lidar com o preconceito. Aliás, isso não é algo que se “aprende” no sentido estrito da palavra, é algo que se vivencia através da resistência e sobrevivência num mundo violento. Não é algo que se ensina nos bancos escolares, não passa na globo e no telecurso 2000, não é passível de se obter em psicoterapia, é a escola da vida mesmo. Não existe forma mais correta de resistência, forma “melhor” de se lidar com o preconceito (seja lá o que isso signifique!). Se uma pessoa trans consegue sobreviver; se ela consegue abrir os olhos e encarar o dia já está “lidando com o preconceito”. Ninguém precisa me “ensinar” o bê a bá, tampouco um douto cis.
14/09/2015
Dizem as radfem que nenhuma mulher “é” cis porque “ser mulher” foi uma imposição. Ora, dizer isso é profundamente equívoco. Usando o mesmo argumento, elas nem ao menos poderiam se dizer que sejam mulheres, afinal de contas, de acordo com a mesma teoria radical, ser mulher é uma condição imposta de fora - mas só o termo cis entra na berlinda (engraçado essa seletividade né? o que está em jogo nesta seletividade? não seria justamente o silenciamento de novas vozes trans que estão agora se insurgindo e criando epistemologias que denunciam a transfobia e a cisnormatividade?). A questão é: feministas radicais entendem que o ser mulher é uma condição de fora mas mobilizam “mulher” como categoria política, para visibilidade e representação política. De fato, as categorias são úteis exatamente neste sentido. E nós pessoas trans dizemos: cis é útil como forma de representação política, ao criticar um vetor específico de normatização: a cisgeneridade. Não é sobre dizer que mulheres e as demais pessoas são conformadas de forma absoluta - sem possibilidade de resistência e falha a estes imperativos normativos - com o gênero que lhes é atribuído. É justamente ao contrário: questionar a naturalidade destas expectativas de gênero e não corroborar o imaginário acerca destas expectativas normativas como uma evidência do mundo normal.
Dizer que ninguém é cis porque pessoas cis “não escolheram” serem cis é um péssimo argumento, afinal. Pessoas trans também não escolheram viver num mundo transfóbico; cabe a nós ensejar movimentos que permitam a alteridade. Falar em cisgênero nos remete a isso.
16/09/2015
Dizemos que o pessoal é político, mas as nuances que isso adquire em certas discussões não são nem um pouco óbvias. Vira e mexe no facebook das militâncias e aparece o tema do amor intersecionado com os estigmas que as opressões impõem aos grupos oprimidos e frequentemente caímos na discussão “mas se eu não me relaciono com pessoas de determinada minoria eu sou opressor? e o meu gosto pessoal, como que fica, etc e etc”.
Eu acho que existem certos pressupostos que a gente deveria discutir antes de nos atermos a responder a este tipo de pergunta formulada nestes termos e nestes aspectos (“sou transfóbico se não me relaciono com uma travesti?”; esse tipo de pergunta, que exigiria uma resposta de sim ou não). Nessas horas não tem como não pensar em Foucault quando ele fala acerca dos regimes de verdades que produzem os sujeitos e aqui, a gente poderia pensar os sujeitos de desejo e como esse desejo se “direciona” por determinados grupos sociais, digamos assim, e como um próprio regime de verdade que produz o indivíduo (para que a própria noção de desejo exista).
Aí que quero chegar: nós da militância produzimos um sujeito de desejo. Não podemos cair na ingenuidade de pressupor a anterioridade prévia de um sujeito que deseja. E eu acho que quando caímos nesse tipo de discussão se um individuo é ou não opressor se ele não deseja outros indivíduos estamos sim criando um sujeito de desejo mas não paramos na maior parte das vezes pra pensar na construção que nós mesmos fazemos em nome da militância e tomamos como óbvio certas categorias que não são naturais. O desejo não é natural. E esse sujeito não é apenas produzido pelas normas opressivas como pura exterioridade, mas no próprio discurso da militância que julga representar a libertação dos grupos oprimidos. O desejo normativo não é natural, tampouco o desejo que julga libertar os sujeitos das opressões é natural. Aí entra questões éticas importantes que nós assumimos como militantes.
Enfim, só queria tentar pensar como a questão é complexa, contraditória e equívoca. Eu não estou dizendo que não devemos problematizar os gostos. Mas eu também estou dizendo que falar desse desejo - seja em nome da libertação e da militância - é ao mesmo tempo produzir um desejo, criar verdades sobre os sujeitos, e isso não pode passar como uma evidência ou transparência para a nossa militância. Se colocamos como óbvio que o sujeito de desejo é uma categoria dada a priori e apenas discutimos se uma pessoa é ou não alguma coisa baseada em seu desejo, eu vejo aí um problema que precisa ser discutido.
Meio que passei o dia encucada com essa questão que não tem respostas tão fáceis. Vão ter pessoas que vão narrar a sua própria a orientação sexual sem se importarem com determinados quesitos que seriam determinantes para outras pessoas, como a morfologia do genital ou o gênero. Vão existir pessoas que vão dizer que essa desconstrução foi possível e consciente e outras vão dizer que o gosto não se dá a nível consciente. A questão que eu me pergunto é se podemos mobilizar os desejos das pessoas tão facilmente enquanto uma questão política, tendo em vista que o desejo não é natural. Nesse sentido não compreendo a existência do desejo como algo da esfera da liberdade, da ausência de regras e paradigmas que estaria sendo sufocado pelas normas sociais. O desejo também é uma produção discursiva e de poder, então tendo a ficar com o pé atrás quando a gente pressupõe de forma tão automática a necessidade política dos indivíduos seres estimulados a amar/se relacionar como uma forma imediata de libertação.
26/09/2015
O discurso homofóbico precisa fazer muitos malabarismos pra defender a família “tradicional” mas mesmo assim muitos furos aparecem. O próprio estatuto que está sendo votado nos mostra discursivamente isso. O que eles querem de fato é excluir as famílias constituídas por pessoas homossexuais, mas escrever isso em um texto jurídico e legal tentando ao máximo se esquivar da equivocidade própria ao texto jurídico tem se tornado uma tarefa por si só equivoca, diria mesmo paradoxal. Quer dizer, o texto jurídico não quer dizer explicitamente que famílias homossexuais não sejam famílias, então precisam administrar muito bem os implícitos e os silêncios para poder dizer juridicamente o que todos nós sabemos que os conservadores querem de fato dizer.
Aqui vão uns exemplos da equivocidade do estatuto. Primeiro que quando dizemos que o estatuto iria marginalizar as famílias monoparentais os defensores do estatuto dizem que não, já que o que importa é a pessoa ter um filho biológico; mas quando dizemos que o estatuto marginalizaria famílias hétero que queiram adotar filhos (afinal, pessoas heterossexuais podem ser inférteis! vejam só! rs) os defensores do estatuto dizem que a família é união de um homem com uma mulher. Vejam como ora o que importa é a filiação biológica, ora é a ligação entre homem e mulher. O discurso tenta a todo custo se costurar para não parecer contraditório, mas a equivocidade continua e o que insiste retornar pelo não dito é a homofobia que pulsa latente.
Não precisaria, quem sabe, dizer que o caso da existência de pessoas trans iria bugar ainda mais todo o discurso reacionário. Mas infelizmente nós pessoas trans não temos muita força frente às possibilidades de representação e visibilidade social e política. Mesmo sendo apenas “detalhes” e exceções - ou mesmo o completo impensado e “impossível”, a margem excluída de toda e qualquer forma de representação, a completa exceção à regra que torna possível a própria norma, estabelecendo critérios sobre o que é o humano frente ao abjeto - frente ao debate da “família tradicional” a existência mesmo da questão trans é ameaçadora: homens com homens e mulheres com mulheres podem sim reproduzir, mulheres trans com cis, homens trans com cis, abalando mesmo certos pressupostos tão caros e centrais do discurso reacionário que tem sido tão mobilizado ultimamente.
27/09/2015
Falar sobre pessoas trans e suas questões políticas significa questionar as formas consolidadas de representação sobre o que se entende sobre gênero. Falar sobre pessoas trans implica em questionar o que se consolidou como a verdade do sexo, a verdade das identidades, as verdades consolidadas acerca de homens e mulheres. Falar sobre pessoas trans é questionar as transparências e evidências historiográficas acerca de tudo o que entendemos sobre homens e mulheres na história. Denunciar a transfobia implica em tudo isso.
Ou seja: falar sobre pessoas trans é também discutir epistemologia; é discutir acerca do próprio conceito de verdade. É discutir sobre aquilo que teve que ser excluído da própria possibilidade de representação do real para que a impressão de realidade fosse constituída; ou seja, discutir sobre pessoas trans implica questionar a separação entre o que se convencionou em relação ao “verdadeiro” e ao “falso”: nós pessoas trans somos as pessoas consideradas ora falsas, ora impossíveis.
É por isso que quando falamos sobre nossas questões, as pessoas se incomodam - e as pessoas militantes inclusas. Então nossas discussões são pejorativamente rotuladas como pós modernas para que assim sejam mais fáceis de serem ignoradas e desprestigiadas dentro dos discursos de resistência - mais consolidados, como o feminismo e o marxismo. Nos rotulam enquanto “irracionais” para evitar o próprio pensamento; para evitar discutir - no pensamento, na teoria, na prática política - aquilo que se alocou na posição de total exclusão nas formas de representação. Falar sobre pessoas trans é falar sobre a própria exclusão; e a exclusão do próprio pensamento.
08/10/2015
Comentário que fiz sobre a carta aberta feita pelo CRP 16 (clique aqui para ver a carta)
Gostei muito do termo 2, mostrando um posicionamento ético e político dos profissionais de psicologia a fim de se eliminar a exigência de laudos para obtenção de direitos de pessoas trans. No entanto, achei que talvez seria interessante colocar no texto uma ressalva quanto a realidade atual e frisar este aspecto, visto que infelizmente hoje em dia, não dispomos de uma lei de identidade de gênero. Não que eu ache que o posicionamento do CRP 16 seja transfóbico ou patologizante, mas é necessário compreender a complexidade da questão tendo em vista nossa situação no presente e como lidamos a partir da realidade concreta. Quero dizer: é necessário mostrar como é violento, absurdo, incoerente com a própria psicologia a figura do laudo de transexualidade como mediador de direitos; no entanto, enquanto não dispomos de meios legais para que os direitos sejam efetivados, ainda precisamos destes laudos. Desta forma, precisamos, na atualidade, de garantias na obtenção deste laudo. Isso precisa ficar evidente como posicionamento da psicologia. Neste sentido é preciso que, respeitando a auto declaração e determinação do gênero das pessoas trans, o profissional psi encare a disponibilização de laudos não através de um viés patologizante e/ou de julgamento cissexista, mas através da autonomia do sujeito trans que está demandando este documento que como já disse, infelizmente, ainda é necessário como requisito para obtenção de direitos.
Há outros melindres na nota técnica do CFP na expressão “a ajudá-lo a certificar-se da autenticidade de sua demanda” que poderia justamente remeter ao próprio viés patologizador que se pretende criticar. A atuação do psicólogo não deve ser na direção de ajudar a pessoa a se certificar de uma suposta “autenticidade de sua demanda” tendo em vista que toda demanda em si mesma já é legítima.
10/10/2015
Vou falar sobre algo que eu acho muito limitante e triste no que toca certas formas de se observar e compreender as sexualidades e identidades de gênero desviantes das normas hétero e cis. As pessoas caem na dicotomia entre social vs biológico e argumentam como é importante mostrar que as identidades desviantes tem bases biológicas pq isso mostra pros felicianos da vida que nós temos direito de viver, que temos direitos a ter direitos, afinal de contas, não basta “escolher” ser desviante. Se você tem a possibilidade de “escolher” ser desviante é assumido como óbvio que você não iria fazer isso, afinal, quem escolheria ser trans ou gay não é mesmo? Pq “escolheríamos” sofrer?
Eu não preciso partir de uma noção neoliberal de sujeito de direito capitalista, “dono de si” individual de “escolha” pra mostrar como a lógica acima é perversa e limitante. A sexualidade e a identidade não são transparentes aos próprios sujeitos mas isso não significa que não temos possibilidade de assumir uma escolha enquanto tomada de posição ética e de agência. Eu não “escolho” ser trans, mas escolho uma posição ética de crítica às normatizações e me responsabilizar pelos modos de vida que cativo.
Nós deveríamos estar falando sobre modos de vida, modos de subjetivação pela liberdade. Pq homossexualidade e identidades de gênero desviantes são recortados como objetos de escrutínio da biologização da vida? Nós deveríamos estar discutindo o que levou os desviantes a serem biologizados e não assumir de antemão uma pretensa substancia gay pra conseguirmos lutar por direitos. Falar sobre orientação sexual e identidade de gênero, a meu ver, é relevante para desterritorizar as identidades, questionar seus próprios pressupostos, não partir da assunção que elas existem em si mesmas de forma coerente, biológica, imutável… E quanto à questão da transformação dos modos de vida, das formas de subjetivação? Nós não deveríamos estar pensando sobre criar novas formas de pensar, pensar de fato a diferença e a transformação na sexualidade e na identidade de gênero? E as transformações na forma de ser e de entender o próprio “ser” alguma coisa? Pensar a diferença e a transformação de si mesmo quando discutimos gênero e sexualidade nos impede de considerar uma existência trans* e não-hétera prévia, passível de ser apreendida pela biologia. Como a sexualidade e a identidade de gênero poderiam ser apreendidas por epistemologias como a biologia se elas são fluxos, fluidas e contínuos movimentos de transformação dos sujeitos em relação a eles mesmos?
11/10/2015
Quem tem que dizer se “existe” criança trans não deveriam ser as próprias pessoas trans? Não deveria ser uma narrativa a ser simbolizada pelas próprias pessoas trans adultas e em especial pelas próprias crianças? Quando você, pessoa cis, se arvora partindo de pressupostos tão contestáveis como esse, como se fosse óbvio que não existissem crianças trans, seja através de qualquer perspectiva ciscentrada que coloque a transgeneridade como exótica, patológica, essencialmente indesejada (afinal de contas, afirmar sobre a ‘não-existencia’ de crianças trans se liga fortemente com o desejo erradicar a própria existência delas) temos ai um grande problema.
Nós pessoas trans já discutimos como o discurso médico é limitador. Nós pessoas trans já discutimos sobre não encaixotar as pessoas em rótulos de patologias de gênero. Nós já discutimos a importância das pessoas se identificarem como elas desejam, e não através de rótulos impostos de fora, como o discurso biomédico. Nós já fazemos tudo isso. Ninguém precisa dizer que uma criança “é” trans porque ela apresenta um gênero inconforme às normas cis. A questão aqui não é sobre definir quem é ou não é uma determinada essência, é sobre pensar sobre narrativas plurais, sobre a forma como as PRÓPRIAS pessoas compreendem suas identidades e pensar que as pessoas tem autonomia sobre a forma como elas entendem suas identidades. E não precisamos partir da assunção que transgeneridade é essencialmente inadequada e que ela “não existe” para crianças. Ser trans, tenho que repetir, não é seguir critérios normativos impostos de fora por um médico, um deus, um pai ou uma autoridade normativa que for. Ser trans não se resume a seguir um padrão normativo de gênero tampouco viver circunscrito a um sofrimento absoluto. Não precisamos de salvação. Vocês pessoas cis não precisam salvar as crianças de discursos normativos de gênero ao afirmarem que crianças trans não existem. Ao contrário, dizer isso é profundamente violento e silenciador para as próprias pessoas trans e em especial para as crianças que vocês julgam defender. Que tal defender as crianças da cisgeneridade compulsória?
Falar “não existe criança trans” é profundamente opaco; enunciar essa sentença a partir do momento em que você coloca a cisgeneridade como natural, como destino espontâneo das crianças e do gênero de todas as pessoas, você não está descrevendo uma suposta realidade como evidência; você está se posicionando, você está fazendo coisas com as palavras, no sentido pragmático mesmo (deem uma olhada no que diz John Austin sobre os atos de fala). Você está essencializando a transgeneridade, você só pode enunciar isso partindo de certos pressupostos sobre a questão trans e estes pressupostos nós pessoas trans estamos questionando dado o seu caráter ciscêntrico. Você está produzindo a normalidade da criança cis. Bora exercer alteridade? Bora compreender narrativas diferentes tendo em vista de fato a diferença; entender que a régua que mede o seu próprio umbigo não deve ser uma medida universal? Bora questionar a cisgeneridade como impensado, como pura evidência de um destino do gênero das pessoas?
12/10/2015
Tem muita gente que odeia o “queer”, que odeia tudo o que supostamente se associa ao pós modernismo ou pós estruturalismo. Mas tem certas críticas, que de tão rasteiras, ignoram completamente o que de fato vem sido produzido de conhecimento sob o guarda chuva da teoria queer. Ignoram completamente os autores e as problematizações deles e não vão além de a criação de um espantalho. Ignoram, eu diria, a emergência da própria historicidade destas teorias. Esse espantalho - a imagem do queer que essas pessoas fazem para criticar a teoria queer - consegue estar tão dissociado do que de fato se discute na teoria queer que chega a ser simplesmente o inverso do que a própria teoria queer defende.
O que eu quero dizer com isso? Algumas pessoas estão colocando que o “queer” é um termo malvadão porque seria um rótulo aplicado de forma exterior às identidades inconformes às normas, seja de gênero ou sexualidade. Desta forma, o queer seria como um rótulo imposto, e as pessoas estariam criticando o uso desta imposição do termo queer.
Minha gente, se vocês forem ver o que de fato se problematizou na teoria queer, vejam só, foi justamente a imposição de categorias essencializadas. O que queer justamente problematizou foram os saberes que delimitam as identidades e criam exclusões. O queer justamente denuncia as relações de poder que estabelecem o que está dentro e o que tem que estar de fora para delimitar o “dentro”. O queer questiona a política de representação no seu limite, politizando o que antes era tido como uma classificação natural do mundo, seja do gênero, da sexualidade, ou o que for. O que o queer justamente criticava é o que vocês julgam estar criticando no queer. A teoria queer não quer usar o termo queer como unidade coerente de classificação de gênero e sexualidade. Se fizesse tal uso da categoria estaria em completa contradição com o que acabou de advogar.
17/10/2015
Comentário em relação ao post de Thomas Fernando. Outra publicação relevante sobre o assunto é de Daniela Andrade.
Engraçado citarem os efeitos colaterais dos hormônios pra tentar tirar a agência das pessoas trans de seus próprios corpos. Ora, até parece que só são pessoas trans que tomam hormônios. E pessoas cis que fazem reposição hormonal com os exatos mesmos hormônios? E mulheres cis que tomam anticoncepcionais? Vamos questionar a legitimidade do uso nestes casos também? Ora, o perigo de efeitos colaterais graves é aumentado justamente pq não conseguimos acesso a atendimento médico especializado. Não vai ser através de uma visão que julga a escolha das pessoas por hormônios através de um discurso moral e punitivo que de fato vamos conseguir pensar maneiras efetivas para que efeitos colaterais sejam menos frequentes e menos perigosos. Nós já deveríamos estar carecas de saber que a melhor abordagem nestes casos é pensarmos em políticas públicas de redução de danos, ampliação de capacitação de profissionais para atender as demandas da população trans ao invés de perspectivas punitivistas e proibitivistas. Vale lembrar que já foram publicados estudos afirmando da segurança da reposição hormonal para pessoas trans. E esta segurança só é obtida se estamos falando de acompanhamento médico sem julgamentos de caráter moral ou condicionados por uma noção de transexualidade como doença. É através de outra perspectiva que vamos conseguir isso e não criando seitas para as pessoas “virarem” cis: isso é uma violência subjetiva enorme. E dica… usar hormônios não é “pré requisito” pra você ser trans.
19/10/2015
O blog Transfeminsmo teve tantas visualizações (mais de 7.000!) na última sexta feira por conta do texto da Maria Clara Araújo que ficou fora do ar por um tempo, mas agora já está de volta!
Fico muito feliz com a repercussão do texto. Quando tive o privilégio de ler o texto da Maria Clara sabia que ele iria comover muitas pessoas, pelo seu caráter intimista e sensível, ao mesmo tempo que de forma contundente esmiúça analiticamente as estruturas que produzem os corpos e subjetividades abjetas.
Mas é sintomático vermos os inúmeros comentários transfóbicos em reação ao texto. É de uma incompreensão tamanha. Os transfóbicos pensam que se utilizar do discurso da biologia que diz que mulheres trans não são mulheres, e sim homens, é evidência que por si só explicaria a produção de abjeções, exclusões e violências. Não é. Dizer que mulher trans é homem não explica em nada as relações transfóbicas; ao contrário, é o próprio sintoma delas. Excluir as mulheres trans da “mulheridade” é excluir sujeitos de sua categoria enquanto humanos, é não reconhecer, no outro, um sujeito de igual consciência quanto a sua identidade de gênero; é remeter a cisgeneridade enquanto universal do gênero humano.
Ora, estes comentários transfóbicos desvelam uma profunda falta de sentido que os constituem; uma falta de alteridade tamanha que impede de compreender o que de fato a Maria Clara discute em seu texto.
Nós transfeministas não estamos “obrigando” pessoas a se relacionarem conosco; não pretendemos governar os desejos individuais com base numa suposta verdade essencial escondida no fundo dos corpos e das orientações sexuais que deveria ser revelado. Não queremos que transfóbicos se relacionem conosco; queremos pensar formas subjetivas que sejam capazes de construir novos mundos, que sejam capazes de auto-transformações, novas formas de relação, que potencializem bons encontros e não maus encontros.
Estamos apontando o quanto o estigma afeta não apenas nós, mas as pessoas com quem nos relacionamos e toda uma rede de relações. É incumbência transfeminista apontar as injustiça que constitui a exclusão de determinados sujeitos da categoria de humanos. Apontar o estigma e as estruturas que produzem o estigma é o primeiro passo para desconstruí-lo, pois não assumimos estas formas de produção de exclusão como naturais.
25/10/2015
As radfem falam pra gente ler Beauvoir e não descontextualizá-la. Ora, vamos fazer isso então. Em que parte do nenhum “destino biológico, psíquico, econômico” vocês não entendem quando bradam que o destino que impõe traços psicológicos aos seres humanos (“feminilidade”) sob a forma da “socialização” é o que conforma a mulher cis - e não sua identidade, e não sua posição frente ao mundo, e não a compreensão de sua existência? Se nenhum destino biológico, psíquico ou econômico define a mulher, a fêmea humana, porque vocês tentam utilizar de argumentos biológicos e sociológicos para demarcar uma diferença essencial entre nós? Se Beauvoir diz que a socialização não define o destino da uma mulher, porque acham que a socialização da mulher cis é essencialmente distinta da mulher trans? Se Beauvoir diz que a biologia não define o destino de uma mulher, porque acham que a biologia distingue essencialmente mulheres cis das trans? Se Beauvoir diz que a economia não define o destino de uma mulher, porque acham que a materialidade da realidade sócio-histórica só pode ser apreendida partindo da situação da mulher cis, e não da mulher trans também?
28/10/2015
“Você não precisa ser trans para x”
Substituía x por qualquer coisa. É a estrutura do enunciado que vale a pena ser problematizada. É muito comum, nós pessoas trans, ouvirmos vários enunciados com esta estrutura. O x pode ser algo relacionado com a sexualidade e gênero, mas pode ser inúmeras coisas. De qualquer forma, este enunciado só adquire sentido em contextos cissexistas; este enunciado coloca como pressuposto a cisgeneridade como impensado. E o impensado aqui funciona como forma de colocar a cigeneridade como categoria natural do humano, como se fosse um destino espontâneo dos gêneros das pessoas.
Colocar em questão a existência das pessoas trans e dizer que elas “não precisam” ser trans por “x” é uma violência transfóbica. Como se nossa existência mesma fosse algo acessório, descartável, inessencial. E esse enunciado ressoa na exata medida que o poder da cisgeneridade como natural ressoa em nossa sociedade.
É evidente que não existe uma forma única de ser trans. É evidente que não existe pré requisito pra ser trans. É evidente que ser trans não se resume a certas características elencáveis. E é evidente que uma característica x não faz uma pessoa ser trans. O que faz a pessoa trans e ela se dizer trans frente a sua compreensão de existência. Isto deveria ser óbvio. Nós transfeministas lutamos pra fazer tudo isso evidente.
Mas por favor, não venham utilizando este enunciado como forma de questionar nossas existências e pressupondo a cisgeneridade como impensado. Dizer isto é nos colocar a frente, enquanto pessoa trans, a diversos outros discursos que tentam nos eliminar, silenciar. É nos lembrar de toda outra teia de enunciados violentos. É tentar nos circunscrever na impossibilidade de existência e nós lutamos para existir em um mundo cissexista.
12/11/2015
Comentário em relação à pesquisa “Juventudes Na Escola, Sentidos e Buscas: Por Que Frequentam?” (clique aqui para ver)
Ser travesti incomoda. Dentro da escola também. E o fato de ser travestir incomodar só “menos” que os “bagunceiros” e “puxa sacos” é igualmente sintomático de uma sociedade transfóbica que expulsa travestis dos bancos escolares. Essa pesquisa deveria servir de sintoma e alerta em relação a uma educação excludente, afirmando a necessidade de se discutir a inclusão efetiva de travestis nas escolas e universidade por meio de medidas institucionais, sistemáticas e contundentes.
17/11/2015
Quando a luta por direitos se refere a usar o banheiro, fica evidente que estamos lutando por coisas básicas, que justamente por serem básicas, são fundamentais. Que justamente por serem tão básicas - e serem negadas a um grupo específico - a negação de tais direitos se torna coisa banal, como se fosse reflexo da natureza ou de uma mera constatação. A negação de tais direitos - e o exercício explícito de poder - é camuflada por meio de um discurso que pretensamente diria uma verdade estática dos sexos. O exercício do poder que estabelece o sexo verdadeiro como sendo o cisgênero é camuflado pelo discurso da verdade do sexo, como se estivesse apenas constatando um fato logicamente estável. Seria óbvio que quem tem pinto é homem e usa o banheiro masculino e quem tem vagina é mulher usa o banheiro feminino e que homens e mulheres são automaticamente reconhecíveis pelo olhar, pela aparência. Isso é mesmo uma constatação de uma verdade auto evidente ou algo que é passível de contestação a partir do momento em que afirmamos a existência de vidas e corpos trans? Sabe a quem serve a ideia de que sexo é algo imutável, instalado pretensamente em genitais? À naturalização da exclusão de pessoas trans do uso do banheiro. Com isso se naturaliza não apenas um conceito específico de sexo, mas a própria exclusão de sujeitos de espaços públicos, como os banheiros. E banheiro se liga ao direito à escola, ao trabalho… Numa tacada só, se naturaliza diversas exclusões, se delimita margens sobre a verdade do sexo e se exclui sumariamente quem ouse questioná-la. Todo um complexo de instituições se utiliza do dispositivo binário do banheiro para excluir determinadas pessoas de um ato que deveria ser banal. Quando os tribunais brasileiros tomam pra si a tarefa de julgar se pessoas trans tem o direito de ocupar estes espaços públicos para realizarem suas necessidades fisiológicas sem constrangimento nós podemos ver a que nível de ramificação o cissexismo se engendra em nossa sociedade.
20/11/2015
Uma discussão nova é sobre ser inadequado homens gays se referirem com palavras no feminino. Algumas pessoas estão dizendo que é inadequado pq os homens gays cis fazem isso de forma pejorativa ou jocosa. Gente, vamos começar a partir menos de estereótipos e compreender a heterogeneidade da realidade?
Dizer que homens gays são “misóginos” pq usam palavras no feminino só faz sentido quando vc parte de um estereótipo homogêneo sobre o “gay que fala palavras no feminino”. Vamos trabalhar as evidências e não se chafurdar nelas e achar que está sendo “crítico”. O que significa isso?
Significa compreender que não é porque um homem gay se refere no feminino que isso implica necessariamente um sentido misógino. Os contextos de enunciação são infinitos. Pode ser que este uso tenha tido uma conotação misógina. Ou não. Você não pode generalizar e universalizar todos os contextos de enunciação numa suposta lei geral de homens gays que falam no feminino.
Como vc pode dizer *sempre* que um gay usa uma palavra no feminino pra se auto referenciar ou referenciar a colega se trata de algo misógino? Me parece uma análise muito errada, enviesada, que só faz sentido a partir do momento em que parte de uma imagem extremamente negativa - incluiria misógina - de gays, das afeminadas. E aliás, muito de um rolê pretensamente radical que tem uma visão extremamente pejorativa acerca do feminino nas vivências de homens e pessoas trans que foram designadas homens ao nascer. Parem de pressupor que a feminilidade de homens e pessoas trans designadas homens são essencialmente equivocadas. Parem de essencializar as feminilidades.
22/11/2015
Me lembro de ler um texto da Eni Orlandi em que ela fala sobre a noção de “sério”. Pra quem não sabe, essa autora é uma das referências da consolidação de uma disciplina, digamos assim, chamada análise do discurso; uma disciplina que nasce, digamos assim, de diversas interrogações entre as disciplinas da linguística e de outros campos do saber, como o marxismo. E uma das coisas que acusam este campo do saber, assim como, de uma forma geral, as epistemes interpretativas e tidas como “de humanas” é que elas não são suficientemente “sérias”. Sério como sinônimo de ciências exatas, positivas, que fazem testes em laboratórios, se baseiam em evidências empíricas, etc. Tudo o que dá margem à interpretação e lida com a equivocidade é tido como menos sério. E com isso, há uma desvalorização do que é considerado menos sérios como “menos importante”.
Pra que eu falei isso? Voltando ao assunto das gays que se tratam no feminino: um dos argumentos de quem acha inadequado que gays falem desta forma afirma que eles o fazem sempre em contextos “não sérios”. O uso do feminino estaria em contextos não sérios o que implica em dizer que o feminino estaria sendo significado como jocoso, informal. O que deslizaria para “menos importante” dado a nossa memória que significa o “menos sérios” como algo pejorativo.
Mas eis que eu me questiono… a evidência que separa o que é sério do que não seja não pode ser contestado? É preciso que a gente questione o sistema de valores que coloca como evidência o sério versus o não-sério. Eu me pergunto… uma bicha periférica pode enunciar em quais contextos de seriedade? Para muitas de nós, nem ao menos existe a possibilidade de enunciar a “seriedade”. Você já se perguntou se uma travesti pode enunciar a partir de um lugar em que legitime sua fala enquanto “séria”? Se existem algumas vidas que são significadas como “menos sérias” - e portanto, como menos importantes, menos verdadeiras e menos legítimas - é fundamental a gente se ater para as não evidências sobre a noção de “sério”. Se algumas vidas são sinônimos de chacotas, é preciso pensar a seriedade não de forma transparente, mas como forma de mostrar quais relações de poder estão postas aí.
23/11/2015
As pessoas tem dificuldade em entender a noção de “materialidade”. Dizer que “pessoas trans não binárias não tem materialidade” ou dizer que “certas vivências não tem materialidade” não tem o menor sentido. Porque a noção de materialidade não se aplica neste contexto. Materialidade não é sobre evidência, sobre o que é facilmente observável empiricamente. Materialidade não é sobre o que há no imaginário social de algo relevante, de algo óbvio que existe supostamente na “concretude”. Materialidade não é algo que se tem ou não.
Quando você diz que “pessoas trans não tem materialidade” na verdade você está dizendo isso supondo que exista uma imaterialidade. Se você diz isto você está pressupondo que existem vivências ou questões imateriais. Se você supõe que existe algo imaterial, você não está fazendo uma análise materialista OU SEJA você não está levando devidamente a noção de materialidade em sua análise. Quero dizer: se você diz algo que existe não possui materialidade você está pressupondo que a existência deste algo é imaterial; assim, você não está levando a noção de materialismo em sua análise.
Materialidade diz respeito a forma como algo se estrutura na realidade social. É uma forma de compreender o mundo, uma perspectiva analítica. Quando se diz que a transfobia ou binarismo se estruturam na sociedade elas se concretizam sob determinadas formas. Não são formas individuais, mas estruturais. Por isso dizer que fulaninho não tem vivência material não faz o menor sentido. A materialidade da transfobia e do binarismo não é observada nas “vivências individuais”, mas nas estruturas sociais que estabelecem critérios entre as vidas erradas e corretas, entre quem é homem ou mulher de verdade ou não.
24/11/2015
Eu não preciso dizer que minha identidade de gênero se encontra previamente instalada nos meus neurônios, hormônios, ou seja lá outra estrutura biológica qualquer, pra dizer que ela é essencial e muito importante para mim. Eu não preciso dizer que minha identidade de gênero é coerente, fixa, racionalizável segundo as lógicas falogocentricas de poder pra dizer que ela é essencial para minha existência. Eu não preciso dizer que minha identidade de gênero não é implicada numa escolha subjetiva trabalhada por mim mesma - numa relação ética de si consigo, isto é, comigo mesmo - pra dizer que é algo que existe. Eu não preciso falar que minha identidade não se origina pela minha vontade para que eu possa lutar pelas reivindicações de direito. Eu não preciso me eximir da produção da minha própria subjetividade para dizer que minha subjetividade é válida. Eu não preciso me eximir de dizer que minha subjetividade é socialmente e historicamente construída pra dizer que ela é legítima. Eu não preciso me eximir enquanto sujeito implicada na minha própria verdade pra poder resistir às normas que dizem que minha existência é desprezível, impossível, errada…
Quando se tenta afirmar que nossas identidades são produtos da biologia - e não de nosso entendimento, e não de nossa luta, de não de nossa tomada de consciência frente a uma realidade social - o que se está tentando fazer é tirar a responsabilidade do sujeito de si mesmo. Talvez porque nossas identidades não façam sentido segundo a lógica de poder dominante. O que nós precisamos é quebrar justamente esta lógica de sentido que pressupõe nossas identidades como sem-sentido.
26/11/2015
Eu gostaria de saber de onde tiraram a evidência de que “subjetividade” é antônimo ou contrário de “materialidade”. De novo então com o conceito de materialidade… subjetividade, meus caros, também é material. Falar que existe subjetividade não implica supor que a realidade existe por causa das vontades do sujeito. Subjetividade, se vc propõe usar enquanto conceito analítico, se dá através de uma forma material histórica. Ou seja, existem formas-sujeito que são historicamente determinadas, tendo portanto, sua materialidade específica. A subjetividade é uma forma de como o sujeito se constitui enquanto tal. Se você pressupõe a noção de sujeito, você fala em subjetividade, em efeito sujeito.
Se entendemos como não óbvio a transformação do indivíduo biopsicossocial em sujeito, temos que, pela teoria, pensar nas formas de constituição deste sujeito historicamente determinado; temos que compreender, portanto, os processos de subjetivação.
Você pode pensar de distintas formas a subjetividade. Você pode pensar formas de resistência quando falamos de subjetividade. Você pode falar que a subjetividade se dá de distintas formas na medida em que o sujeito lida com a sua própria determinação ideológica tendo vista práticas de resistência e/ou liberdade (ou dominação, repetição, etc). Mas você não pode simplesmente supor que subjetividade é um conceito a priori alocado fora de uma epistemologia materialista.
28/11/2015
Hoje eu “debati” com um transfóbico, com um cara transfóbico. Mais um ignorante qualquer, que ficava vomitando o mesmo bêabá sobre homens e mulheres serem questão de biologia, o negócio de penis e vagina (como se afirmar ad nauseam estas teses biologicistas pudesse explicar alguma coisa sobre transfobia e sobre a existência de pessoas trans). Enfim, falar sobre biologia neste caso é inutilmente querer encobrir o debate sobre exclusões sociais. É, aliás, mais um sintoma do discurso transfóbico, que coloca as identidades trans como falsidades.
Mas sabe o que o discurso deste sujeito tinha em comum com feministas transfóbicas? O cara insistia em dizer que se a pessoa trans, no caso, uma mulher trans, que nas palavras dele, “um homem que escolhe virar mulher”, não faz isso, ao invés de estudar, ao invés de se profissionalizar, etc, esta pessoa não estaria exposta a violência, ao fato de que 90% das travestis tem que se prostituir, etc. Quer dizer, de certa forma afirma o óbvio pelo que silencia: se uma pessoa trans não fosse trans ela não sofreria transfobia. Percebam como uma lógica perversa sustenta esta forma de argumentar. Percebam também como ela é espontaneamente presente em discursos de feministas radicais. Você simplesmente coloca a culpa no indivíduo pela existência da transfobia. Se você coloca implicitamente que a transfobia e os efeitos práticos dela na vidas das pessoas trans seria magicamente “sanada” pela não existência de pessoas trans (ou quem sabe, se elas se fingirem de cis, se estas não transicionarem, se estas não, em suma, mostrarem o que são ou o que querem ser) você simplesmente inverte os efeitos pelas causas, e parte de um discurso extremamente idealista, em que coloca a existência da opressão enquanto origem nas identidades percebidas dos indivíduos.
Se trata de um discurso que não consegue perceber que, independentemente de uma pessoa trans se enquadrar enquanto cis para poder sobreviver numa sociedade transfóbica de forma precária, isto não muda em nada o fato da sociedade estruturar a transfobia enquanto forma de violência de gênero. Enquanto algo que interpela a todos, algo que é geral e se estrutura independentemente de indivíduos concretos, de suas vidas particulares. Uma pessoa trans não se assumir enquanto trans não é uma forma de mostrar como a transfobia supostamente não existe. Ao contrário, deveria justamente desvelar que vivemos numa sociedade extremamente transfóbica que não permite nem ao menos cogitar a inclusão destas pessoas - em suas diferenças, enquanto trans, em sua diferença em relação à cisgeneridade - na família, no mercado, nas instituições, nas escolas. Você falar que a culpa do que nós sofremos recai sobre nós é dizer algo profundamente transfóbico em si e você, ao supor que ao dizer isto está mostrando que a transfobia é causada pelas pessoas trans e não por uma estrutura socialmente determinada previamente a qualquer sujeito, está apenas atestando algo sintomático, próprio do cissexismo, que pressupõe a existência do humano como cisgênero e ainda culpabiliza as violências que as próprias pessoas trans pelo o que, socialmente estruturado, elas sofrem.
09/12/2015
Comentário em relação à post da página “Libera meu xixi”
Pois é. Mulheres e homens trans são sujeitos de direitos. Somos pessoas que precisam frequentar espaços públicos como pessoas cis e precisam ter sua humanidade respeitada, o que inclui reconhecer sua identidade de gênero. Não são pessoas cis criminosos em potencial. Pessoas cis, entendam que dói menos. Repitam: pessoas trans são sujeitos de direitos, não são pessoas cis criminosas em potencial. Reconheçam nossa diferença e revindicações. Quando dizemos que é necessário reconhecer este direito, pode ter certeza que mijar e cagar é fundamental para que nossa cidadania seja garantida.
10/12/2015
Engraçado, eu já vi várias vezes os reaças dizerem, tentando imputar uma suposta contradição na fala de militantes feministas e lgbt, acerca do seguinte enunciado “ninguém nasce homem ou mulher, mas gay sim”. Coitados desses reaças, mal sabem eles que isso não é nenhum consenso entre nós, os militantes. Pobres homofóbicos, mal sabem eles que existe toda um discurso queer que diz exatamente o contrário, afirmando explicitamente que não, não se nasce homem ou mulher, assim como não se nasce gay. Nós afirmamos, ao contrário, como é politicamente limitante uma visão biologicizante do gênero E sexualidade. Não se nasce gay também, torna-se: torna-se gay a partir de uma existência socio-histórica, a partir de uma tomada de consciência pela resistência e alteridade. Não precisamos de biologia, não nascemos assim. Estamos falando de modos de vida, de estéticas de existência, que são construídos a partir de uma situação concreta de existência. Acho que esses reaças deveria ler mais sobre teoria queer ao invés de ideologia de gênero.
23/12/2015
A NOSSA VERDADE TRANS
Quando dizemos que somos homens e mulheres trans e que mulheres trans são mulheres e homens trans são homens - assim como a identidade que foge deste binário é legítima e verdadeira - não estamos nos referindo a um sistema cisgênero de compreender o mundo e nossas identidades. Quando digo que sou mulher, não me refiro tentar me “igualar” na régua da cisgeneridade. Quando digo que sou mulher e questiono o sistema de veridição acerca da verdade dos sexos, não estou presa a uma lógica ciscentrada. Nós pessoas trans não somos o engodo da cisgeneridade.
Nossas formas de compreender o mundo e nossas questões específicas não orbitam de forma marginal a verdade cisgênera. Nós temos e construimos a nossa própria verdade pois existimos e clamamos a luta por direitos. Porque nós temos especificidades: seja na teoria, seja na luta política. Quando digo que sou mulher não estou “invejando” o sistema de verdades que legitimam a cisgeneridade como o único gênero verdadeiro. Eu estou questionando a própria noção de verdade. Questiono a cisgeneridade como universal do gênero humano. Proponho falar a verdade partindo do que nos foi imputado como um grande farsa.
Quando falamos que mulheres trans são mulheres não estamos, portanto, apagando as especificidades tanto das trans quanto das cis. Não estamos disputando uma noção mais primordial e final sobre o que é ser mulher. Nos abrimos para o que então era impensável. Novas formas de vida e possibilidade de significar nossas vidas é abertura para a realização do novo e da potência de novos encontros, não de retorno ao que limita, ao que castra, ao que impossibilita. Falar sobre a verdade trans não é impor uma mentira a luta feminista, porque nós não somos uma versão errada da cisgeneridade. Somos outra coisa, somos diferentes.
24/11/2015
Se o trânsito de gênero não fosse extremamente vigiado, a noção acerca de uma socialização imutável poderia fazer sentido. Acontece que a sociedade não é indiferente às pessoas que questionam as expectativas esperadas ao gênero ao qual foram socializadas. Diria, aliás, nem um pouco indiferente. É por isso que o trânsito de gênero – a instabilidade constitutiva do próprio gênero – faz parte da própria “socialização de gênero”. O trânsito de gênero não é algo alheio à própria socialização – ou melhor, à própria sociedade e ao próprio gênero. A fluidez de gênero não é algo a parte do gênero e de nossa sociedade. A fluidez de gênero não se origina “dentro da cabeça das pessoas”. Ao contrário, a instabilidade está inscrita estruturalmente no próprio funcionamento do gênero como um fato social, fato esse que se dá independentemente de qualquer indivíduo contingente. Por isso é importante darmos conta desse fenômeno em nossa teoria que se propõe social – ou seja, uma teoria que leve em conta o caráter social do gênero. Se a sociedade não é nem um pouco indiferente às pessoas trans, nossa teoria não pode ser também.