Sobre a tradução equivocada de “drag” na edição brasileira de Corpos que importam, de Judith Butler
Por Yuri Bataglia Espósito.
Estou lendo a recente edição brasileira de Corpos que importam de Judith Butler e me detive quando cheguei num subcapítulo chamado “Travestismo ambivalente” (p. 214). Achei estranho e logo pensei que deveria ser um deboche/paródia de Butler à categoria patologizante “travestismo bivalente”, ou que o assunto seria essa categorização psiquiátrica. Depois fiquei pensando como esse uso também poderia estar relacionado à época do livro (1993), pois é comum vermos, em discursos de entre as décadas de 1960-1990 nos EUA, inclusive para auto-identificação, certa instabilidade ou intercâmbio entre diversos termos como “drag queen”, “transexual”, “cross-dresser”, etc. – o que se deve, em parte, às possibilidades de auto-nomeação terem relação com as nomeações hegemônicas disponíveis. Por exemplo, é comum lermos que Marsha P. Johnson se auto-identificava como “drag queen”; ela também fundou organizações de libertação “gay” e de ação travesti (“transvestite”)[1]. Ao que me consta, foi a partir (pelo menos) dos anos 90 que foi se intensificando a separação ou depuração entre essas categorias, até termos hoje em dia uma boa noção de suas diferenças, ao menos entre pessoas e movimentos “LGBTQ”.
Pois bem, fiquei curiosa se nesse subtítulo traduzido como “Travestismo ambivalente” Butler haveria usado o termo “transvestism” e não consegui continuar a leitura sem dar uma olhada no original em inglês. Acontece que no original esse subtítulo é “Ambivalent drag”. Ao menos nas primeiras páginas, não aparecem os termos “transvestism”, “transvestite” ou algo assim; aparece muitas vezes “drag”, que algumas vezes foi mantido na tradução como “drag”, mas mais vezes foi traduzido como “travestismo”.
Bom, achei isso um problema. Sabemos que o trabalho de Butler problematiza a identidade, fala sobre performatividade e desidentificação, e sobre como a maioria das categorias que se referem às sexualidades/gêneros subalternizados foram produzidas inicialmente por regimes de poder discursivo como a medicina e também como ofensas, e depois algumas dessas categorias foram apropriadas subversivamente como auto-identificação. Mas, apesar dessas problematizações, Butler também ressalta que as categorias de identificação são operativas nas lutas por direitos e reconhecimento.
Na folha de rosto do livro vemos que a tradução foi feita por 2 pessoas, e a revisão por uma delas e mais 3 pessoas, ou seja, ao menos 5 pessoas leram e aprovaram essa tradução antes dela ser publicada. Em um grupo de trabalho consideravelmente grande, aparentemente não houve quem se preocupasse com esse equívoco, e tomasse o cuidado necessário ao tema complexo e disputado que concerne ao próprio livro. Ouso especular a enorme probabilidade dessas 5 pessoas serem cis, pois sabemos como pessoas trans estão apartadas de empregos em grandes empresas como uma editora de renome, e também acho difícil alguém trans ou mesmo cis LGB aprovar isso. Não cabe a mim buscar “averiguar” as identidades de gênero da equipe de tradução, pois não tenho a intenção de individualizar a questão, mas de denotar o caráter político e sistêmico desse problema de tradução, e propor que haja alguma responsabilização e reparação da parte da editora da tradução.
Hoje em dia está bem popularizada a diferença entre “drag” e categorias do âmbito da travestilidade/transgeneridade, e ressaltar essa diferença é uma pauta trans por reconhecimento; também tem bom alcance a luta das pessoas trans pela despatologização da transgeneridade, e como esses termos terminados em “ismo” são patologizantes. Então achei bem absurdo a tradução ter tomado essa “liberdade” (ou melhor, privilégio cis) de inserir um termo patologizante, distorcer o texto dessa maneira, e também contribuir pra confusão entre drag e travesti/trans.
Cabe salientar que Butler é uma pessoa queer, e recentemente se registrou na Califórnia como pessoa de gênero não-binário, segundo Paul Preciado disse numa palestra[2]. Acho que isso influencia na leitura que podemos ter tanto da problematização das categorias identitárias promovida em suas obras, quanto se fosse o caso de ter sido Butler a recuperar a categoria de “travestismo” como recurso literário. Considero que é problemático o uso indiscriminado dessa categoria patologizante por pessoas cis, e numa publicação de alcance considerável[3] – ainda mais nesse caso que está contrariando e distorcendo a intenção da autoria, sem nem ao menos denotar a transposição da tradução ou o movimento histórico das categorias numa nota. Inicialmente penso que deveríamos reclamar na editora, para que no mínimo isso seja revisto nas próximas edições, eliminando o uso desse termo.
Notas
[1] A tradução de “transvestite” para “travesti” nem sempre é apropriada, pois existe a reivindicação de que “travesti” é uma categoria latino-americana, relacionada também à racialidade e a posições políticas e sociais. Nesse caso, a aproximação dos termos é utilizada considerando que a fundação da organização ativista Street Transvestite Action Revolutionaries foi promovida por Marsha, afro-americana, e Sylvia Rivera, latina (categorizações raciais estadunidenses).
[2] “Intervención en las Jornadas Nº 49 de la École de la Cause Freudienne”, PRECIADO, 2019. Disponível em <https://drive.google.com/file/d/1qRc0SPPhfKkM2cu1ByLnNfpC_z50lke0>.
[3] Não tomo a tradução brasileira como de grande alcance, ao menos quanto à cópia física, devido a ela ter sido publicada apenas numa “edição de luxo”, de preço alto. Em outros países é comum que o lançamento de edições de luxo seja acompanhado de edições mais baratas.