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Sobre Desconstruções, Reconstruções e Ressignificações - "Se você for cissexista comigo, vou ser transfeminista com você" Full view

Sobre Desconstruções, Reconstruções e Ressignificações

Texto de Nicholas Athayde-Rizzaro

Sabem como dizem que devemos sempre confiar em nossos instintos pois eles geralmente se tratam de um conjunto de micropercepcões que simplesmente não conseguimos inteligibilizar completamente, mas não deixa de ser uma análise correta da situação? Como por exemplo, quando alguém faz gaslighting[1] com você e você sente que há algo de errado, mas não consegue apontar exatamente o quê na hora? Aí tempos depois, retrospectivamente, você talvez consiga dizer analítica e precisamente o que havia de errado com aquela situação.

Pois é. Eu sempre me senti assim com gente cis que é muito rápida em reagir a eu ser trans, ou a falar sobre questões trans na minha frente. Geralmente o discurso é “ah, eu não ligo pra gênero!”, ou “o sexo das pessoas não devia importar”, ou “a vida é sua, o corpo é seu, você que decide o que faz!”.

Erm. Não é bem assim que funciona ser trans, embora se fosse, seria significativamente mais fácil navegar o mundo.

Muitas vezes, quando alguém enuncia um discurso similar ao dos exemplos acima, a pessoa parte de uma lógica (em certos casos, pseudo) abolicionista de gênero. Sugere-se que não deveria existir qualquer gênero, e que isso seria a solução dos problemas das pessoas trans. Há alguns problemas com esse discurso, no entanto: o primeiro, que independente desse desejo, gênero ainda é uma realidade social e tem um papel imenso em todas as nossas interações diárias, por menores que sejam; o segundo, que apesar de enunciar o desejo por um mundo sem gêneros, a pessoa em questão provavelmente nada faz no dia-a-dia para militar pela abolição de espaços segregados por gênero, e navega o mundo ocupando espaços que estão de acordo com sua expressão de gênero; o terceiro, que de nada adianta a pessoas trans propor abolir gênero e seguir se atendo ao conceito de sexo como ontológico.

Enquanto os dois primeiros problemas são auto-evidentes, o terceiro pode carecer de um pouco mais de elaboração. Problematizar gênero enquanto construto social que limita as expectativas, prescrições e acessibilidades mas seguir acreditando piamente na existência pré-discursiva do sexo pode ser muito conveniente quando falamos de subjetividades cis, mas não é muito útil quando tentamos reivindicar legitimidade a subjetividades trans. Essa lógica retorna à noção de que nós, pessoas trans, somos do sexo X mas tudo bem desejarmos “viver como” o sexo Y. O sexo cis é biológico, real, concreto, e o sexo trans é social, imaginário, café-com-leite. A gente pode brincar de sexo com os coleguinhas cis, mas não contamos de verdade, né? (Com duplo sentido, por favor.)

O problema, em verdade, não é com desejar que as categorias de gênero/sexo deixem de existir, mas sim em como esse discurso parece ser compulsório quando se fala em questões trans. Então não só devem todas as pessoas trans ter a obrigação ética de desejar a abolição de categorias de sexo/gênero, mas cabe também a elas o ônus de efetivar essa destruição. Por que somos tão frequentemente encarregados desta tarefa? Me parece ser porque, por vezes, só conseguimos ser vistos e inteligibilizados enquanto seres ora de gênero e sexo incongruentes, ora expulsos dessas instituições, marginais, de sexo/gênero amorfo, transcendental, o que o valha. O que isso me informa é que esse tipo de discurso parte da premissa de que existe uma diferença essencial entre o sexo de pessoas cis e o sexo de pessoas trans (quando, em verdade, a utilidade dos adjetivos cis+trans reside na capacidade de explicitar a ausência de privilégios que pessoas trans experienciam politicamente).

Ouço com freqüência sobre como a completa abolição identitária é o que há de mais radical e subversivo, mas me pergunto se é possível haver desconstrução sem antes promover-se um deslocamento. Por vezes sinto serem vazias as enunciações de “ah, pra mim gênero é coisa do passado, já desconstruí”. Me parecem inocentemente ou imprudentemente apressadas. Não acho que possa haver abolição sem haver descolonização antes; descolonização da pré-discursividade que atribuímos às identidades. É preciso não só desconstruir o que significa “ser de um gênero/sexo”, mas também ser capaz de inteligibilizar e abarcar construções novas, diferentes e divergentes acerca de um mesmo gênero/sexo. É preciso entender que um genital de formato não-fálico pode ser um pênis; que barba pode ser um atributo feminino; é preciso entender que um homem trans femme deve ter seus pronomes respeitados tanto quanto um homem cis de estética normativamente masculina.

É certamente muito mais complicado aceitar diferentes formas de construir uma mesma identidade enquanto igualmente legítimas; faz-se necessário despender muito mais energia cognitiva, constantemente. É necessário fazer-se vulnerável; permitir que a construção do outro afete a sua própria; que lhe faça repensar e resignificar perspectivas, identidades e linguagem. Só assim, no entanto, pode haver o encontro com a alteridade; na absoluta soberania da auto-identificação.

[1] Um tipo de abuso e manipulação psicológica onde informação falsa é apresentada com o intuito de fazer o sujeito duvidar da própria sanidade

Written by Hailey

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