Sobre questões trans dentro do feminismo e o fortalecimento da análise de gênero a partir do movimento
A blogueira Jos Truitt do Feministing comenta sobre a situação das questões trans* no feminismo mainstream, defendendo uma abordagem intersecional e transfeminista para se pensar gênero e feminismo. Os links estão em inglês. A fonte original encontra-se no fim do texto.
Por Jos | Originalmente Publicado em: 11 de junho de 2013.
Tradução: Hailey Kaas
Eu parei de blogar por um tempo enquanto estava na pós-graduação e isso abriu oportunidade para dar um ponto de vista sobre a blogosfera feminista. Eu comecei a trabalhar no Feministing em 2009 com o objetivo de centrar questões trans dentro do feminismo. Eu penso que a opressão que colegas trans sofrem, especialmente a extrema marginalização e violência direcionada a mulheres trans nessa cultura misógina, é exatamente uma das coisas pelas quais o feminismo existe para mudar. Eu entendo o feminismo como uma resposta à opressão de gênero em um contexto patriarcal onde o feminino é desvalorizado. Eu vejo o pior de nossa hierarquia de gênero recaindo sob as pessoas que falham em cumprir regras rígidas do binário de gênero compulsório, de uma forma percebida como feminina. Isso se revela quando, por exemplo, há violência específica direcionada a homens queer e mulheres trans. Dessa forma, vejo a exclusão tanto de mulheres trans quanto de nossas questões do feminismo (ou a contínua reprodução de transmisoginia dentro movimento feminista) como um problema que necessita ser posto em pauta.
Contudo, centrar as questões de pessoas trans e não-conformes de gênero exige uma mudança de pensamento para as pessoas cujo feminismo está baseado em normas cisgêneras. A norma em nossa cultura é supor que uma pessoa irá se identificar com o gênero designado ao nascer com base nx médicx olhando para sua genitália. O que significa que supomos que existe uma conexão entre gênero e genitália, que leva a uma suposta conexão entre gênero e os papeis sexuais, e também às capacidades reprodutivas de uma pessoa. Como demonstrei no que diz respeito à retórica da “Guerra às Mulheres”, sobre os ataques aos direitos reprodutivos, a maioria das organizações para direitos reprodutivos coloca a suposição de que mulher = pessoa com vagina que pode gerar filhxs. Isso é verdade para muitas mulheres, mas não é a experiência de todas as mulheres. E colocar todas as mulheres como fundamentalmente máquinas de fazer filhxs é exatamente o que o movimento anti-escolha deseja. Um feminismo que se baseia na conexão entre gênero e genitais não só exclui pessoas cujos corpos não se encaixam - é também uma análise fundamentalmente falha que perpetua uma ideia essencialista a qual o feminismo parcialmente existe para combater. Um feminismo que centraliza uma abordagem trans feminista sobre gênero, que reconhece que mulher ≠ vagina, oferece uma análise de gênero mais precisa no geral que beneficia todxs.
Um número crescente de mulheres trans, incluindo eu mesma, têm trabalhado na blogosfera feminista e de justiça social agora já faz algum tempo. Ouvi várias escritoras feministas famosas dizerem que realmente gostam do meu trabalho. O que é legal, mas sinceramente estou aqui para realizar uma mudança dentro do feminismo, logo isso não significa nada para mim se meus textos não estiverem encorajando uma mudança em suas análises. Isso é a continuação de um problema familiar: Quando mulheres negras introduziram a ideia de intersecionalidade, elas reforçaram o ponto de que suas experiências não eram as experiências das mulheres brancas somadas de raça. Para o feminismo levar suas questões a sério, necessitou centrar as experiências das mulheres negras. O extraordinário dessa abordagem é que continua beneficiando mulheres brancas, mas não exclui as experiências que ocorrem na interseção de raça e gênero. No entanto, feministas brancas continuam a tratar as questões das mulheres negras como algo a ser adicionado ao feminismo, o “especialmente mulheres negras” que faz com que seus argumentos sejam mais fortes. Mas o argumento continua começando majoritariamente com as experiências das mulheres brancas (e comumente com privilégio de classe - o mesmo ocorre quando se fala sobre as questões das mulheres trans; e fui completamente cúmplice nisso).
Vejo a continuação desse padrão em um momento no qual mulheres trans estão tentando levantar suas questões dentro do feminismo. Reconhecer nossa humanidade e nossa opressão exige mudar a conexão entre gênero e genitais. Um feminismo que não realiza tal mudança continuará a perpetuar nossa exclusão. Eu fiquei especialmente surpresa no outono passado com a cobertura do livro Vagina da Naomi Wolf. A crítica feminista pareceu ser de que Wolf reduziu mulheres a suas vaginas, ou mesmo a própria experiência específica de sua vagina. Assim, com base nessa leitura feminista, o fato de que o livro é cisnormativo é a primeira crítica mais óbvia. No entanto, essa crítica estava em falta na maioria das discussões feministas na imprensa sobre o livro. O argumento de Wolf foi constantemente chamado a atenção por essencializar vaginas e mulheres de uma forma heterossexista e racista. Fiquei sabendo que questões trans foram cortadas por motivos de espaço de uma mesa-redonda absurdamente grande sobre o livro entre um grupo de famosas feministas na mídia. Algo que é honestamente ridículo. Como Jaclyn Friedman demonstrou em um dos poucos artigos que de fato mencionou a questão, o assunto requer pouco espaço para destaque:
“Mulheres que não tem vaginas, e pessoas com vaginas que não são mulheres? [Wolf] Nunca ouviu falar delas.”
Bem simples, certo? O fato de que a crítica mais óbvia não foi uma prioridade para muitas feministas que escreveram sobre o livro, diz muito sobre o lugar das questões trans dentro de seu feminismo. Não é algo de fato importante. É algo que se faz um adendo quando estamos falando especificamente sobre pessoas trans. Mas não é central em relação a como pensam gênero.
As vozes das pessoas trans dentro do feminismo definitivamente vêm tendo um impacto. O tumblr é um excelente exemplo - muito da base feminista está refletindo bastante seriamente sobre como nosso entendimento do mundo está enraizado em normas cisgêneras, e estão criando espaço dentro do gênero para outras formas de se ter corpos. Mas a maioria das feministas famosas, as pessoas que estão escrevendo nas grandes publicações, participando de programas de TV e adquirindo oportunidades para publicação de livros, não mudaram suas análises baseadas em experiências cis. Sinceramente, o movimento poderia deixar muitas dessas pessoas famosas a ver navios.
Então, constantemente eu leio uma versão de feminismo que me deixa de fora. Isso acontece regularmente nesse mesmo blog, algo que estamos começando a trabalhar diretamente para mudar. As suposições cisnormativas também são uma parcela padrão de conversas pessoais as quais eu participei entre feministas com visibilidade pública (eu fico frequentemente impressionada com o que as pessoas não percebem que estão dizendo na minha frente). Isso se destaca na linguagem que define mulheres como produtoras de filhxs. Mas é também um conjunto de suposições em um nível enraizado que determina quais problemas são considerados importantes problemas feministas e como tais problemas serão pautados. Violência sexual e de gênero, opressão reprodutiva, acesso à saúde, empregos, imagem corporal… Questões que são frequentemente delimitadas de forma a ignorar as experiências particulares de pessoas trans e não-conformes de gênero, especialmente as pessoas dentro do espectro feminino. Isso não é um problema apenas retórico - o feminismo atuou no estabelecimento de abrigos para vítimas de violência doméstica que excluem mulheres trans, por exemplo.
Pessoas trans e não-conformes de gênero enfrentam uma discriminação absurda que deveria ser um foco feminista, mas ainda é uma questão marginal, na melhor das hipóteses. Isso precisa mudar. Está mudando. Não é suficiente para feministas aproveitarem os textos das pessoas que experienciam a marginalização que as mesmas não sofrem. Para encarar tais questões seriamente, é necessário pensar em como são diferentes de sua experiência, como mudam a base sob a qual trabalham, e as suposições que você tem que pode terminar por perpetuar exclusão. Esse é o trabalho que todxs temos de fazer como parte de um movimento feminista intersecional onde todxs temos diferentes experiências de privilégio e opressão.
Uau.. Otimo texto. É otimo ouvir a opnião de quem sofre o preconceito na pele. Parabéns!
Ótimo texto. Gosto de ler seu blog.
Obrigada! Não é só meu é um blog conjunto 🙂