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Sobre o termo cisgênero, o equívoco da língua e o político na sigla LGBT

Escrevo este texto pensando o encontro que a defensoria pública realizou para falar sobre “identidades trans”, em que estavam presentes a psicóloga Bárbara Dalcanale Menêses e o assessor técnico do centro de referência LGBT, Márcio Régis Vacon como palestrantes. Ao se falar sobre transgeneridade, é urgente problematizarmos certas evidências de sentidos, na medida em que considero extremamente importante o não apagamento do político da questão transgênera. Aprendi com a análise de discurso fundada por Michel Pêcheux (AD) que a impressão que as palavras designam inequivocamente coisas e objetos no mundo se dá através de um efeito ideológico; também aprendi, contudo, que a ideologia funciona pela falha. Isso significa dizer, entre outras coisas, que o sentido, apesar de parecer evidente, pode ser sempre outro, a partir do momento em que a língua (para significar) necessita da inscrição da história, e com isso, os sentidos estão sempre já divididos pelas contradições das lutas de classes. Dizemos, portanto, que a linguagem não é transparente, já que ela não designa de forma unívoca; ela é, ao contrário, opaca.

Para a AD, a falha da língua pela ideologia se denomina equívoco. A ideologia aqui é entendida como necessária para a relação do sujeito com os sentidos, se distanciando, portanto, de concepções de ideologia como “ocultação da verdade”. É a partir de uma formação discursiva que os sentidos vão ser mobilizados através de uma posição de sujeito (um exemplo clássico para entender isso sucintamente quando, a rede Globo, por exemplo, utiliza “invasão” enquanto que um blog de esquerda, para referenciar a mesma situação, irá utilizar o termo “ocupação”; os sentidos estão divididos, e uma posição sujeito determina, neste caso, uma “escolha” diferente do léxico).

Então o que a cisgeneridade diz respeito ao equívoco da língua? O que diz respeito ao (apagamento do) político? Certamente muita coisa. Bárbara começou sua palestra “explicando” quem eram (ou o que eram?) as letrinhas da sigla LGBT. LGB são pessoas não heterossexuais, dizem respeito às orientações sexuais, e o T são pessoas trans*, diz respeito às identidades de gênero. Percebam, contudo, que essa definição, a priori, “correta”, mobiliza certas evidências, pré-construídos. Por que, ao falar sobre pessoas não-heterosexuais, sempre referenciamos pessoas cisgêneras? Quem são os (cisgêneros) gays, lésbicas e bissexuais afinal de contas? Por que o tema da identidade de gênero é sempre secundarizado (e como isso se dá historicamente, na materialização dos discursos?)?

"Por que eu deveria... me designar como cisgênero?". Fonte: https://xandradurward.wordpress.com/2013/05/31/whats-in-a-name/

“Por que eu deveria… me designar como cisgênero?”. Fonte: https://xandradurward.wordpress.com/2013/05/31/whats-in-a-name/

Os LGB são sempre os homens e mulheres (cisgêneros) que se atraem por homens e mulheres (cisgêneros); enquanto que o T apenas atrapalha essa cadeia de significações. Essa é uma das evidências de sentido sobre a sigla LGBT: a tensão/contradição entre a reunião entre orientações sexuais desviantes e identidades de gêneros desviantes não é “resolvida” (ou é para mim, enquanto transfeminista, a materialização de um discurso cissexista) de forma satisfatória pela posição de sujeito cisgênera, na medida em que apaga a possibilidade de (existência do) sujeito trans*, e também apaga a própria possibilidade do sujeito trans* de ter uma sexualidade (!). Não somos destituídxs “apenas” da família, do acesso à educação e empregos, mas também da ordem significante que simboliza a sexualidade. Não temos também o direito de termos desejos! A sexualidade de uma mulher trans* em especial é vista de forma abjeta pelo discurso médico. Somos obrigadas a realizar o impossível em busca do laudo: ora performando uma identidade heterossexual legitimada socialmente, ora performando uma identidade assexual na qual nunca é suficiente, já que sempre somos passíveis de sermos desqualificadas enquanto mulher e enquanto ser humano por qualquer sinal (ou ausência) de sexualidade/gênero.

Esses sentidos desarticulam a possibilidade de resistências transgêneras, já que a própria possibilidade de humanidade nos é interditada pela linguagem. É aí que o simbólico diz respeito ao político, aliás. Afinal de contas, quem nunca se deparou com o equívoco (percebam a relação sempre com o linguístico e os significantes) acerca da orientação sexual tanto de pessoas trans* quanto de pessoas (cisgêneras) que se atraem por pessoas trans*? A pessoa (cisgênero) que namora uma mulher trans*/homem trans* é “hétero” ou “homo”? Ou nenhum dos dois? Risos!

A transgeneridade (enquanto cisgeneridade mostrada em sua opacidade significante), portanto, é uma verdadeira arma (aliás, arrisco dizer a maior delas) contra a heteronormatividade. Quem dera os gays (cisgêneros) dessem conta disso e articulassem isso politicamente… mas infelizmente é mais fácil se apegar a certas identidades essencializadas, tomadas como transparência da linguagem. Identidades essas, que dizem respeito à orientação sexual, que pessoas trans* não têm o privilégio de reivindicarem plenamente. Falar sobre tudo isso, portanto, é também falar sobre o impossível da orientação sexual, sobre suas falhas, equívocos.

Os sentidos sobre a sexualidade das pessoas trans* estão interditados na medida em que o sujeito (de orientação sexual neste caso) universal é cisgênero. E isso se dá através das evidências mobilizadas pela posição de sujeito cisgênera. Por que pessoas trans* são sempre o puxadinho (precário) da laje da significação, são sempre o Outro, que, a partir do momento (contraditório) em que se reconhece o real deste grupo até certa medida: até a medida em que a cisgeneridade é posta como ponto incontornável (e insuportável)? São sempre aqueles que sobram, são o Outro não na sua relação de alteridade, mas na sua relação de abjeção. A simbolização da linguagem de tudo o que se refere a transgeneridade (o real) pela posição de sujeito cisgênera é marcada pelo político, pelas relações de poder. Isso significa que há uma “afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos, caracterizada pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real”, como bem define Eduardo Guimarães na sua semântica do acontecimento. E o discurso da biologia também é mobilizado por esse discurso cisgênero (designar pessoas cisgêneras como “biológicas” é um exemplo disso). E inserir o biológico na discussão é o mesmo que retirar-se do debate político.

Que existe um desconforto de pessoas cis com o termo cis não é novidade. Já falei muito disso aqui no blog. O que também é curioso é ver pessoas trans* “defendendo” a não utilização do termo cisgênero. Isso apenas nos mostra que a posição do sujeito não é empírica nem automática: pessoas trans* podem assumir esta posição de sujeito cisgênera, assim como pessoas cis podem assumir uma posição de sujeito trans* (ou transfeminista).

Vejamos certos efeitos de sentidos nos enunciados:

  • As pessoas trans* são aquelas que se identificam com o gênero oposto.
  • O homem que se veste como mulher é uma mulher transexual.
  • O que diferencia uma transexual de uma mulher é o biológico.

Nos enunciados há o efeito de pré-construído. Isso significa que algo nos enunciados “disse antes, independentemente” que atravessa o dizer e que, nestes casos, se dá sobre a forma da contradição, gerando um efeito de sentido ora paradoxal, ora transparente. Quando se define que uma “pessoa trans é aquela que se identifica com o gênero oposto” se afirma, por meio do implícito, que a pessoa trans pertence a um gênero (ela “é” alguma coisa) com o qual ela não se identifica. É aí que o equívoco se manifesta: como posso me identificar com algo que desde sempre (desde todos os dizeres, os já-ditos) eu já não seja? Este pré-construído articula dizeres anteriores que afirmam que mulheres trans* não são mulheres e homens trans* não são homens. Qual é o gênero oposto de uma mulher trans*: o feminino ou masculino? Este enunciado afirma o paradoxal: o gênero “oposto” de uma mulher trans*, a partir do seu próprio ponto de vista, é o masculino. Como poderia uma mulher se identificar com o gênero masculino? Sentidos de transparência acerca dos termos “homem” e “mulher” atuam de forma semelhante no segundo enunciado. Esses efeitos de pré-construído se dão através de um atravessamento com o discurso da biologia/medicina, no qual o desígnio de gênero ao nascer é mobilizado como evidência de que “sejamos” homens ou mulheres produzindo coerência para os termos “homens” e “mulheres”. Por isso o terceiro enunciado possui efeito de transparência. Mas aqui vai o equívoco: falar sobre transgeneridade é falar sobre o biológico? Como, então, esses enunciados podem ser tão transparentes? Como essa relação de transparência se deu historicamente? É hora de deixar para trás o “biológico” para se falar sobre (cis)generidade. Isso significa dizer, afinal, que pessoas cis não são biológicas.

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Cisgeneridade e silêncio

Judith Butler (2003) problematiza a forma como a categoria de “mulheres” é representada ao apontar para os perigos dessa representação (operada pelo feminismo) ao produzir sujeitos em “conformidade com o eixo diferencial da dominação”, o que certamente acarreta limitações políticas. Isso fica bastante evidente quando vemos como a categoria mulheres é cindida nos vetores de raça, classe, orientação sexual, regionais e a importância do feminismo entender esses vetores intersecionalmente. O que propomos no transfeminismo é justamente isso: entender um vetor intra-gênero que se refere à transgeneridade das mulheres. Mas o que está sendo posto aqui é que esse vetor não é da ordem do já-dado ou natural. Tivemos (e temos) que lutar para essa representação e acredito que, no nosso caso, trata-se de uma luta bastante peculiar, já que justamente mulheres trans* não são entendidas, vistas e designadas (como forma de se simbolizar o real pela linguagem) como mulheres “verdadeiras”. São mulheres vistas enquanto alvos da violência misógina+transfóbica e, ao mesmo tempo, excluídas da “mulheridade”.

Proponho pensar a exclusão das mulheres trans* da mulheridade (os efeitos de sentido que corroboram a construção da “mulher verdadeira/biológica/de nascença”) se dando através da produção de sentidos de evidência acerca dos sujeitos homem e mulher como forma de interpelação ideológica pela cisgeneridade compulsória. Também defendo a importância de se pensar analiticamente o conceito de cisgeneridade para compreender a materialidade do sexo em sua maior totalidade ou complexidade.

Butler (2003) afirma também que a “categoria mulheres só alcança estabilidade e coerência no contexto de matriz heterossexual”. Bom, não se trata aqui de questionar isso propriamente, mas apontar uma lacuna que passou a ser óbvia a partir dos apontamentos transfeministas: e quanto à matriz cisgênera? É extremamente recorrente ver em textos de teóricxs queer a problematização da heterossexualidade compulsória. Mas jamais (salvo raríssimas e circunscritas exceções) vi autorxs falarem acerca da cisgeneridade compulsória. A que se deve isso?

Certamente o fato delxs serem autorxs cisgênerxs importa, acarretando na restrição da problematização do gênero a conceitos afeitos à orientação sexual. Isso também não está desvinculado do fato de que pessoas homossexuais/bissexuais/não-heterossexuais (cisgêneras) conseguirem acessar a academia e pessoa trans* em sua esmagadora maioria não. Percebam que discussões afeitas à orientação sexual não são diretamente coextensivas às discussões afeitas à identidade de gênero. Com isso não quero resumir o fato dessxs autorxs enquanto pessoas empíricas que são cisgêneras, mas considerar a presença da formação discursiva (o que é possível de ser dito) a que se inscreve o sujeito e a relação dos sentidos a partir de uma posição de sujeito (o sujeito-cisgênero neste caso); conceitos esses formulados pela corrente francesa da Análise do Discurso.

Essa relação de sentido (ou interdição de sentido) me deixa bastante perplexa. Essxs autorxs, ao falar sobre o funcionamento das normas de gênero, utilizam o conceito relacionado à orientação sexual (heterossexualidade) ao invés do conceito relacionado diretamente ao gênero (cisgeneridade). Com isso não quero dizer que não é importante analisarmos como as normas de gênero se intersecionam com questões afeitas à orientação sexual. Mas quero frisar que a impossibilidade destes diversxs autorxs de pensarem numa matriz cisgênera significa através do não-dito. Ou seja, dizer “heterossexualidade compulsória” não significa em si mesmo, também significa pelo fato de não se ter dito outra coisa (“cisgeneridade compulsória”), o que configura um movimento escorregadio “entre a trama das falas” e um traço deixado pelo silêncio. Para tornar o silêncio visível é preciso observá-lo indiretamente por métodos (discursivos) históricos, críticos, desconstrutivistas (ORLANDI, 2007).

Compreender como o silêncio significa me parece extremamente relevante para entendermos a cisgeneridade. Aqui uso o silêncio como forma de significar como formulou Eni Orlandi (2007), não enquanto falta ou ausência de sentido. Também não é o silêncio místico ou mágico (bastante explorado pelas religiões), mas o silêncio em sua materialidade significativa, enquanto presença e não enquanto o inefável.

A cisgeneridade funciona enquanto produtora de normas de gênero/sexo através do silêncio e também só pôde ser pensada/criada (e então dita) porque algo (o gênero/sexo) se significou e se significa no silêncio. O silêncio, segundo Orlandi (2007) não é transparente e atua na passagem entre pensamento-palavra-coisa.

Nesse sentido, quando a autora diz que “o silêncio é fundante”, podemos entender que o silêncio funda a cisgeneridade. Esse silêncio se dá ao mesmo tempo em que produz coerências e inteligibilidades às identidades dos sujeitos cisgêneros e interdições à plena identificação de gênero aos sujeitos transgêneros. Essa interdição é responsável pela produção de abjeções relacionadas à transgeneridade. Mas essa interdição também enseja formas de resistência pelxs subalternxs.

Então quando pensamos sobre formas de quebrar este silêncio (que se deu por um irromper da linguagem dentro do próprio silêncio), através da nomeação da cisgeneridade em um dito, vislumbramos implicações políticas (ou a ligação do simbólico com o político) e de deslizamentos de sentidos sobre “homens” e “mulheres”. Isso porque “o silêncio intervém como parte da relação do sujeito com o dizível, permitindo os múltiplos sentidos ao tornar possível, ao sujeito, a elaboração de sua relação com os outros sentidos” (ORLANDI, 2007, p.89).

Essa quebra de silêncio (a linguagem) funciona como uma forma de “domesticação da significação”. Mas certamente este retorno à linguagem que o termo cisgênero proporciona não se trata de um retorno ao mesmo. Produz-se uma nova identidade através da linguagem, com uma coerência, totalidade e unicidade novas. Vejo que uma passagem pelo silêncio tornou possível uma fala improvável e subalterna de se irromper no silêncio, a fala das pessoas trans* ao nomearem os normais, as pessoas cis. Vozes historicamente silenciadas assim como suas questões, suas vivências, perspectivas e opressões.

Esse novo irromper da linguagem proporciona outras formas de interpretação de algo já aparentemente dado, por exemplo, quando apontei a minha estranheza ao uso de “heterossexualidade” para se compreender o gênero, ao invés de “cisgeneridade”. Nesse processo apontamos as lacunas e os equívocos, questionando a completude do que foi dito.

Cabe aqui a distinção de duas formas de silêncio propostas por Orlandi (2007): o silêncio fundante (necessário para todo o processo de significação) e política do silêncio (o recorte de um sentido a partir de uma posição do sujeito). Assim, como disse, por um lado a opção por se falar acerca da “heterossexualidade compulsória” foi feita a partir de um recorte de acordo a uma posição do sujeito-cisgênero e do outro, a própria possibilidade desta forma de significação (se fundar) se deu através do silêncio fundador. Ambos de certa forma trabalham com o silêncio em torno da cisgeneridade para fazerem sentido. Então, como prática de resistência, através da “passagem incessante das palavras ao silêncio e do silêncio às palavras”, torna-se possível tanto o surgimento do sentido de cisgeneridade ou do termo cisgênero quanto a ocupação de um lugar emancipatório para o sujeito-transgênero: a relação com o Outro passa a ser redefinida. Aqui está a dimensão política do silêncio, na medida em que recorta o dizer, como define a autora.

Referências

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade; tradução, Renato Aguillar. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003

ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. - 6ª ed. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

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