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Nota de repúdio à entrevista de Rafael Kalaf Cossi e um convite a se pensar a psicanálise

Nota de repúdio: cansadxs de colonização

Não é novidade alguma a que vamos falar aqui. Cabe ressaltar também que não se trata de nenhum “ataque” ao indivíduo de Rafael Kalaf (mesmo que tenha sido o mote deste texto), mas sim a todo um discurso recorrente no campo dos saberes “psi” sobre transgeneridade que não julgamos apenas inadequado, mas também muito prejudicial. Na entrevista, disponível em http://lacaneando.com.br/rafael-kalaf-cossi/encontramos diversos estereótipos negativos e colonizatórios acerca da transgeneridade que tanto debatemos no transfeminismo. Na segunda parte do texto, logo abaixo, proponho um convite a se pensar deslocamentos na psicanálise, através da forclusão (ou foraclusão) da cisgeneridade. Vamos elencar primeiro aqui trechos da entrevista que considero bastante problemáticos, que serão comentados:

  • “autor do livro Corpo em Obra – Contribuições para a clínica psicanalítica do Transexualismo”.

Transexualismo. Já começa por aí. Não falamos “Transexualismo”, mas sim transgeneridade. A escolha por um termo é uma escolha que desvela uma posição política. Se fosse você, Rafael, mudaria o nome do seu livro. Muito provavelmente mudaria o conteúdo do livro também.

  • “Esse quadro clínico me despertou grande curiosidade e fiquei muito instigado a pesquisar esta questão. Fui amadurecendo a ideia, ao longo de dois anos, até definir o que eu iria estudar, e o tema acabou se tornando uma pesquisa de mestrado. Tema este, até então, bem pouco abordado pela psicanálise.”

Transgeneridade não é nenhum “quadro clínico” que pessoas cis possam sentir “curiosidade” e serem “instigados” a pesquisar. Nós somos pessoas, sujeitos. Não somos cobaias, não somos massas amorfas à espera de sermos “pesquisadxs” e “entendidxs”. Temos voz antes de tudo e repudiamos esta forma de se entender nossos corpos, anseios, identidades, etc. Não somos “tema” de sua pesquisa de mestrado, Rafael. Fique sabendo, no entanto, que o seu discurso cissexista é tema dos meus estudos. Pois é, cisgeneridade ainda é um campo também completamente inexplorado. Me “instiga” bastante.

  • “O que me surpreendeu ao visitar o local foi, justamente, a cautela no trato da questão. Eles não defendem a bandeira de que as pessoas podem fazer o que quiser com o seu corpo. Não há uma apologia às intervenções cirúrgicas, até mesmo porque, o fato de se submeter a uma cirurgia não é garantia para a solução do problema, pois permanecem outras questões e o sofrimento continua. Logicamente, em alguns casos, a intervenção cirúrgica melhorou muito a vida da pessoa. Não que ela tenha se transformado em uma mulher, no caso do Transexual masculino, mas porque tendo um corpo mais coerente com o gênero, ela fica mais apaziguada. Mas há de ser observado que, em alguns casos, a intervenção cirúrgica pode até piorar. É uma terapêutica não para todo mundo. É necessário também um trabalho de apoio psicológico. É curioso observar que já existe até um termo para Transexuais que se arrependem da cirurgia: ‘transregrett’. Existem dois livros publicados a respeito. São depoimentos de Transexuais que fizeram este procedimento e se arrependeram. Em um dos casos, a cirurgia só piorou o quadro clínico, deixando o sujeito ainda mais depressivo. Em outro depoimento, a pessoa viveu 17 anos como mulher, inclusive, com reconhecimento social, bem sucedida financeiramente e na carreira profissional, mas ao longo dos anos acabou ficando muito incomodada com a nova vida, inclusive, tendo problemas hormonais. E, após 17 anos, pediu para fazer a cirurgia de reversão para voltar a ser homem, voltar ao sexo de nascimento. O que comprova que a cirurgia não acarreta o fim dos males do sujeito.”

Te surpreendeu positivamente ou negativamente? Transexual masculino? Sério mesmo que você tá usando essa nomenclatura? Mulheres trans* não são “transexuais masculinos”, assim como homens trans* não são “transexuais femininos”. O que justificaria tal predicação? Certamente apenas uma visão cissexista acerca de nossos corpos e identidades. Não somos “quadro clínico” também.

“Solução do problema”. Que problema exatamente? Transgeneridade em si não é o problema. Pessoas trans* sofrem, sim. Mas focar no nosso sofrimento subjetivo é o mesmo que apagar questões políticas que subjazem este “problema”. É apagar a existência da transfobia, do cistema que engendra abjeções. Assim como focar no “arrependimento”. A “solução” pra isso não deve se restringir no âmbito privado, ou seja, não podemos conceber que o fim da transfobia se dará através de sessões de terapia, como foi postulado (indiretamente) acima. Não precisamos (mesmo!) de pessoas cis dando palpites em como nós entendemos nossos corpos e nossas necessidades. Afinal, não vejo nenhuma pessoa cis tendo que passar pelo crivo psicológico/psiquiátrico a fim de conseguir qualquer tipo de cirurgia ou acesso à saúde.

Agora, sobre o mito do arrependimento. “Transregret”? Essa é até nova pra mim. Não precisamos, novamente, destes entendimentos esdrúxulos sobre nossas vivências. É muito curioso como pessoas cis se focam no arrependimento das pessoas trans* com procedimentos cirúrgicos. Por que existe a necessidade quase doentia nesse aspecto? Por que não falar sobre qualquer outro tipo de arrependimento, incluindo o arrependimento de pessoas cis quando realizam cirurgias? Esta perspectiva, novamente, nos retira da posição de protagonistas, nos retira voz. Dizem por nós que “arrependemos” de algo. É sempre a voz cisgênera a mediadora de representação de certo real. E quando dizem, por nós, que “arrependemos”, é engatada toda uma argumentação sobre “cuidados”, “precauções” acerca desta população. Eu reitero: não precisamos destas formas de cuidado. Elas nem ao menos são o que se propõem. Não precisamos de pessoas cis cuidando paternalisticamente de nossas vidas: isso foi e é muito prejudicial. Não reconhecemos autonomia neste processo, apenas colonização.

  • “Outro fator preocupante em relação aos procedimentos hormonocirúrgicos é que eles se tornem tão corriqueiros como as cirurgias plásticas, as intervenções estéticas, as tatuagens, pois existe a ilusão de que precisamos sustentar a nossa identidade a partir da imagem. E o capitalismo contribui muito para isso. Além do mais, existe a ideia de que o sujeito tem que ter total direito pelo seu corpo.”

Bom… vamos lá. Olha, acho muito fácil botar uma pretensa problematização de sustentar a identidade a partir da “imagem”, falar em “capitalismo, e manter a cisgeneridade intocada né? Não são só pessoas trans* que são “normativas”. Não são só elas que querem ter uma “imagem normativa”, mas também pessoas cis. Aliás, acaba sendo uma análise feita aqui muito limitada (pra não dizer transfóbica) quando apontamos apenas um lado da moeda e esquecemos todas as relações de poder que separam pessoas trans* das cis. Quem, ali, “quer ter direito total pelo corpo”? Pessoas cis já não tem esse direito? Não vamos problematizar isso também? Então vamos tomar muito cuidado nesse sentido, ok amiguinhxs cisgêneros?

  • “É muito comum recebermos em consultório, meninos que só brincam com meninas, que tem preferência por brinquedos de meninas, se comportam como tal, tem trejeitos femininos. Mas esses fatores não são indicativos de que ali exista uma criança que possa vir a se tornar um Transexual. O que podemos perceber é que existe uma incoerência entre sexo e gênero, mas ainda é prematuro fazer qualquer tipo de afirmação, de aposta.”

Transexualidade, transgeneridade ou travestilidade não devem ser entendidas como descompassos entre “sexo e gênero”. Primeiro que a definição destes termos não é algo dado a priori. Butler (dentre outrxs autorxs), por exemplo, problematizou muito os sentidos dessa dicotomia, e não vai entender sexo distinto de gênero. É bastante problemática a divisão entre natural e social que esta dicotomia opera, e isso fica claro quando vemos que as pessoas trans* são sempre aquelas cujos corpos não “sustentam” seu gênero. A incoerência não se dá neste nível, mas sim no nível entre sexo/gênero designado e sexo/gênero identificado.

  • “No travestismo, o travesti fetichista usa o seu órgão sexual com fins de prazer, isso não é um problema para ele. O órgão sexual é libidinizado, é uma zona erógena. Muitos travestis fetichistas usam o órgão sexual em proveito próprio e com fins mercadológicos. Existe aí, também, um misto de masculinidade e feminilidade. Já na transexualidade não há um misto de masculinidade e feminilidade, o sujeito sempre se diz identificado com o gênero oposto ao seu corpo e há uma tendência de que o órgão sexual não seja libidinizado.”

Aqui os erros conceituais são gritantes. Primeiro, a noção de “travesti fetichista” é terrível, pois pouco se sustenta além de mero cissexismo. O “uso” de determinado órgão sexual não diz respeito a nenhuma forma, a priori, de identificação de gênero. Assim como a transexualidade não diz respeito à determinada forma de sentir disforia em relação a partes do corpo. Tanto travestis quanto transexuais podem se identificar com formas “mistas” (ou não tão mistas) de feminilidade e masculinidade. Não existe sentido a priori sobre travestis e transexuais, como já disse aqui no blog: as pessoas são livres enquanto formas de se auto identificarem. Tentar assumir um sentido abstrato e generalizante sobre esses termos é uma típica forma de transfobia.

O convite: a forclusão do nome cisgênero

Agora, me arrisco a entender, pela psicanálise, como a cisgeneridade é produtora de “psicoses”. Aqui proponho pensar a psicanálise através das contribuições transfeministas e passar a compreender como a cisgeneridade enquanto conceito analítico pode ser útil nesta e em futuras análises; um esboço de problematização da questão a fim de se pensar uma forma não normativa e empoderadora da psicanálise. Não se trata aqui de devolver a patologização para pessoas cis, mas deslocar o olhar sobre o problema. Pessoas trans* não são o problema, a transfobia sim.

Nesse sentido, a cisgeneridade compulsória é o bastião de todas as formas de cissexismo, e isso certamente reflete na subjetividade do sujeito (do inconsciente). A cisgeneridade é forcluída (rejeitada) em toda forma de manifestação de ódio transfóbico e toda vez que se articula um discurso cissexista/transfóbico pelo sujeito cisgênero. Isso fica bastante evidente toda vez que uma pessoa cis se incomoda com o termo cisgênero ou o acha pouco importante (ou até mesmo “perigoso”). Nesse processo se retifica a naturalidade da cisgeneridade através dos efeitos de sentidos de evidência sobre o “homem” e a “mulher”.

Quando vejo gente cis atacando a identidade de pessoas trans* ao apontarem comparações que se propõem esdrúxulas, como quando dizem que uma pessoa pode “achar” (ou identificar-se) que é homem ou mulher assim como podem “achar” serem qualquer coisa (como papei noel e o coelhinho cor de rosa, ou qualquer outra coisa que soe esdrúxula) é a própria cisgeneridade que se encontra ameaçada, e portanto, é “defendida” arduamente pelo sujeito cisgênero. É aí que vemos a manifestação de uma subjetividade patológica, o sintoma da cisgeneridade enquanto norma, a volta do recalcamento sobre a própria cisgeneridade (já que a própria nomeação da cisgeneridade é suficiente para contestar a forma de identificação do sujeito). Isso porque, devo dizer, estas comparações esdrúxulas se sustentam, só fazem sentido, por meio das evidências sobre os sentidos de “homem” e “mulher” que são orientadas pela norma cisgênera.

Quem acompanha as discussões transfeministas irá entender como a palavra “cisgênero” é especialmente dramática (posso até dizer traumática) para a forma como muitas pessoas cis se identificam enquanto sujeitos. Isso porque justamente o significante (cisgênero), ao esbarrar com os limites de certas formas de representação e tensionar certas relações de sentidos, põe em jogo a cisgeneridade enquanto opacidade. Nesse processo o sujeito aparece com um sintoma bastante característico, e uma das formas de retorno ao recalcamento é quando vemos as determinações “homem biológico”, “mulher biológica” (ou outras formas parecidas, como “homem/mulher de verdade”), formas estas de identificações que podemos entender como delirantes.

Aqui a cisgeneridade compulsória pode ser entendida como a causa destas formas de identificação e psicanaliticamente, como forclusão. Vemos também como ideologia e inconsciente estão materialmente ligados aqui, na medida em que estes sintomas “psicóticos” da cisgeridade estão ligados com as diversas formas de manifestação da transfobia. Aqui a identidade de gênero não é dada pelo “complexo de Édipo”, mas sim na forma como o sujeito lida com a forclusão cisgênera. Isso porque qualquer forma de se falar em “masculino”, “feminino” (e nas clássicas formas da “explicação” do complexo de Édipo em que se muito usa os termos “menino” e “menina” através dos sentidos se dando de forma apriorística) se pressupõe a cisgeneridade, ela está lá (mesmo que na ausência) produzindo estes sentidos como evidências.

Como já dissemos aqui, não há mais volta quanto ao uso do termo cisgênero. E fica bastante evidente como esse termo pode ser útil para não apenas entendermos a própria cisgeneridade, mas também como forma de resistência por nós, ao nomearmos o “normal”. Isso significa rejeitar qualquer forma cissexista de se entender a transgeneridade, incluindo algumas perspectivas da psicanálise (que infelizmente me parecem, até agora, as perspectivas hegemônicas neste campo).

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Descolonizando os entremeios de Travestis e Transexuais

Este texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo dia da Visibilidade Trans*, uma colaboração entre os blogues Transfeminismo, Blogueiras Feministas, Blogueiras Negras e True Love.

Por Bia Pagliarini Bagagli

Sinto a necessidade de abordar uma velha questão, que mesmo sendo velha, tenho certeza que continuará a ser posta na ordem do dia através de perguntas e controvérsias acerca das diferenças (opacas, já vou adiantando) entre “travestis” e “transexuais”. Acho interessante falarmos sobre isso pensando o dia da visibilidade trans*, já que muitas vezes (senão todas), são a partir destas duas categorias que pessoas trans* são designadas e, portanto, trazidas para a ordem da representação e do cognoscível (e também para uma ordem do político, como espero mostrar). Quando se pergunta acerca do “estatuto” de uma pessoa trans* - se ela é “travesti” ou “transexual” – não está ocorrendo apenas uma mera pergunta se ela “é travesti ou transexual”. Este tipo de pergunta está atrelada a uma memória discursiva sobre os sentidos de “travesti” e “transexual”, que é rememorada no momento da enunciação, tencionando constantemente os sentidos sobre essas duas palavras na enunciação.

Autores como Bruno César Barbosa e Jorge Leite Júnior¹, mostram como essas categorias médicas referentes à transgeneridade mudaram com o passar do tempo. O que parece ocorrer é uma variável flutuação dos termos “travesti” e “travestismo” (sic); “transexual” e “transexualismo” (sic); “transtorno de identidade de gênero” e “disforia de gênero” (dentre outras variações). Ora são termos mais ou menos intercambiáveis, ora não; ora significam mais ou menos a mesma coisa e ora não². Fica bastante evidente que se trata, antes de uma questão meramente médica ou psíquica, afeita aos campos da psiquiatria e psicologia, uma questão linguística, por estarem expostas questões da significação de palavras – e seus equívocos – permeados e indissociáveis de seus contextos históricos. Percebem-se aí como certas palavras tem uma “importância” pela qual o discurso médico insiste, através de inúmeros pequenos e contínuos deslocamentos, uma apreensão definitiva, legitimada e verdadeira do real.

Os esforços presentes nas diversas categorizações e subdivisões das identidades transgêneras, tanto inicialmente feitas por Harry Benjamin nos anos 50 e 60 quanto pelos atuais manuais diagnósticos como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e CID (Classificação Internacional de Doenças), operam com o intuito de produzir um norte capaz de conter, pelas palavras e nosologias, a diversidade tida como patológica do gênero. Essas categorizações, com um suposto intuito inicial de descrever objetivamente um “fenômeno”, acabam por prescrever e idealizar, dentro da própria categoria abjeta da transgeneridade, corpos e identidades mais ou menos inteligíveis, utilizando para isso as categorias “travesti” e “transexual” e outros conceitos analíticos como “falso” ou “pseudo”, “diagnósticos diferencias” e “intensidades” (referentes aos tidos “desvios” de gênero).

Afinal de contas, o que está em jogo é o preciso “diagnóstico” capaz não apenas de desvelar uma suposta verdade essencial e anterior sobre corpos, identidades e práticas, mas também capaz de imputar um poder colonizador de natureza biomédica: o “tratamento” tido como correto. Médicos e profissionais psi, ao conceber os sujeitos trans* como completamente incapazes de decidir sobre si mesmos, são tidos como corpos passivos que o conhecimento médico deve preencher. Para isso, o poder médico concebe práticas que julgam proteger os sujeitos trans* de si mesmos. É então, por exemplo, que o mito³ da correlação mágica e completamente linear entre cirurgias de redesignação sexual e suicídios é trazido à tona para alertar sobre os “perigos” de uma maior autonomia para as pessoas trans*. As pessoas trans* são destituídas de autonomia sobre seus corpos, narrativas e identidades através destas formas perversas de controle cispatriarcal. E estas formas de dominação irão articular a dicotomia “travesti-transexual” em seu favor.

Para isso, vão operar discursos que procuram estabelecer uma coerência inequívoca entre as palavras, produzindo então uma verdade essencializada sobre esses dois termos. Essa construção de coerência, que visa esconder, por um processo de naturalização apoiada pelas ciências médicas e psi, o caráter contraditório dos termos, vai conseguir operar um controle biopolítico dos corpos e identidades trans*, na medida em que estes termos são acionados e articulados pelos saberes e poderes da medicina e do jurídico enquanto “mediadores” de direitos civis. Para citar dois exemplos clássicos: as resoluções sobre o “diagnóstico” (que permitirá uma pessoa trans* acessar cuidados básicos de saúde) e dos processos judiciários de retificação de documentos (que são condicionados por laudos psi/médicos/sociais pautados, em sua maioria, na patologização da transexualidade). Este controle está guiado por um processo de legitimação4 da identidade transexual em detrimento da travesti. Isso ocorre através de uma burocratização do acesso a atendimento médico e jurídico, pela estrita necessidade da apresentação do laudo de transexualidade. Percebam que quando falamos sobre o tal “laudo”, enquanto um dispositivo normativo requerido para o acesso à cidadania, não é qualquer laudo, na medida em que um hipotético laudo atestando travestilidade jamais teria o mesmo valor que aquele atestando a transexualidade. Nem ao menos concebemos a ideia de um laudo de travestilidade, pois é a transexualidade a categoria almejada e regulada. Isso se torna especialmente cruel, na medida em que reconhecemos a existência de pessoas travestis que requerem certas demandas que são as mesmas das pessoas transexuais, e que são ameaçadas por este dispositivo de terror que é o laudo médico/psi/social. Em última instância, a exigência do laudo de transexualidade como mediador de direitos humanos é uma forma de excluir pessoas trans*, em especial, travestis, negrxs, deficientes e pobres.

Podemos, a partir do momento que compreendemos as relações de poder que articulam essa dicotomia identitária, fomentar novas formas de se pensar e entender as identidades travesti e transexual: extrapolando o “bom-senso” médico-psiquiátrico e jurídico; reafirmando a humanidade das pessoas trans*, em especial das travestis; exigindo a desburocratização do acesso a direitos civis para a população trans* e o respeito à auto identificação; apontando para a própria relação de poder (que procura em si mesma se mostrar inexistente para garantir sua dominação) que está sendo articulada pelos discursos médicos e jurídicos e denunciar os cinismos políticos no que se referem políticas públicas acerca da transgeneridade; problematizar, questionar e borrar os limites entre as duas categorias, ao apontar para os efeitos de pré-construído (o efeito que produz uma transparência e a necessidade de um já-dito para fazer sentido) delas, elaborar, enfim, formas emancipatórias, descolonizadas, empoderadoras e não prescritivas de “ser” travesti ou transexual e negar os entendimentos cisgêneros e patriarcais sobre nossas identidades trans*/femininas.

Isso significa que não estamos discutindo sobre se travestis fazem a cirurgia de redesignação sexual ou não ou outra coisa parecida (como frequentemente ocorrem em discussões homéricas e desnecessárias), mas sim entender que não existe forma correta e definitiva de ser travesti e transexual. Quero, portanto, acirrar e problematizar esses termos a ponto de extrapolar uma nova perspectiva que pode soar absurda que se refere em última instância para a impossibilidade de uma definição unívoca para tais palavras e que, portanto, “existem” e ao mesmo tempo “não existem” as “diferenças” entre travestis e transexuais.

Vamos entender como se constrói a subalternidade5 da identidade travesti em relação à transexual e não naturalizar esta relação. Trata-se de colocar estas palavras de volta ao lugar em que pertencem ao compreendê-las na história e, portanto, enquanto materialidades contraditórias do discurso. Desta forma, se tornam passíveis de serem contestadas as articulações ideológicas destas palavras que corroboram cissexismo. Por fim, cabe desvelar o absurdo e perversidade que é controlar e oprimir pessoas trans* por meio de suas próprias categorias identitárias (que são também, em última instância, palavras). O empoderamento se dará também através das palavras e acredito que as palavras “travesti” e “transexual” trazem à cena um palco privilegiado e necessário para práticas de resistências transfeministas.

Notas

1. Ver Nossos corpos também mudam: sexo, gênero e a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico, de Jorge Leite Júnior e Nomes e diferenças: uma etnografia dos usos das categorias travesti e transexual, de Bruno Cesar Barbosa.

2. Relevante igualmente apontar para, ao mesmo tempo em que um discurso médico de língua inglesa influenciou o discurso médico brasileiro (e consequentemente, influenciando terminologias), produzindo, portanto, algumas correlações de sentidos entre termos traduzidos, é de suma importância notar as incompatibilidades de sentidos produzidas entre as línguas, devido a não possibilidade de intercambialidade transparente entre um termo de uma língua e outro. Posto isto, deve-se levar em consideração não apenas equívocos entre línguas, mas também dentro de uma mesma língua e as relações de sentidos que daí decorre.

3. Sobre esse mito (dentre outros) ser articulado para a permanência do diagnóstico de transexualidade, ver LUTA GLOBALIZADA PELO FIM DO DIAGNÓSTICO DE GÊNERO?, de Berenice Bento.

4. Legitimação precária, uma vez que a categoria transexual está condicionada a uma noção patológica e nosológica, destituindo, portanto, qualquer agenciamento e auto identificação por parte da pessoa trans*. Essa legitimação estará condicionada a um dispositivo normativo, na qual pessoas que apresentem características indesejadas ou ininteligíveis quanto ao gênero (ou outros vetores), vão ser facilmente identificadas como travestis e então marginalizadas.

5. Subalternidade esta que só pode ser entendida através de uma perspectiva intersecional, na qual vetores de classe, raça e (performances de) gênero, dentre outras, são consideradas. No que se refere à construção da subalternidade associada à travestilidade, recomendo a leitura dos autores supracitados.

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