Judith Butler (2003) problematiza a forma como a categoria de “mulheres” é representada ao apontar para os perigos dessa representação (operada pelo feminismo) ao produzir sujeitos em “conformidade com o eixo diferencial da dominação”, o que certamente acarreta limitações políticas. Isso fica bastante evidente quando vemos como a categoria mulheres é cindida nos vetores de raça, classe, orientação sexual, regionais e a importância do feminismo entender esses vetores intersecionalmente. O que propomos no transfeminismo é justamente isso: entender um vetor intra-gênero que se refere à transgeneridade das mulheres. Mas o que está sendo posto aqui é que esse vetor não é da ordem do já-dado ou natural. Tivemos (e temos) que lutar para essa representação e acredito que, no nosso caso, trata-se de uma luta bastante peculiar, já que justamente mulheres trans* não são entendidas, vistas e designadas (como forma de se simbolizar o real pela linguagem) como mulheres “verdadeiras”. São mulheres vistas enquanto alvos da violência misógina+transfóbica e, ao mesmo tempo, excluídas da “mulheridade”.
Proponho pensar a exclusão das mulheres trans* da mulheridade (os efeitos de sentido que corroboram a construção da “mulher verdadeira/biológica/de nascença”) se dando através da produção de sentidos de evidência acerca dos sujeitos homem e mulher como forma de interpelação ideológica pela cisgeneridade compulsória. Também defendo a importância de se pensar analiticamente o conceito de cisgeneridade para compreender a materialidade do sexo em sua maior totalidade ou complexidade.
Butler (2003) afirma também que a “categoria mulheres só alcança estabilidade e coerência no contexto de matriz heterossexual”. Bom, não se trata aqui de questionar isso propriamente, mas apontar uma lacuna que passou a ser óbvia a partir dos apontamentos transfeministas: e quanto à matriz cisgênera? É extremamente recorrente ver em textos de teóricxs queer a problematização da heterossexualidade compulsória. Mas jamais (salvo raríssimas e circunscritas exceções) vi autorxs falarem acerca da cisgeneridade compulsória. A que se deve isso?
Certamente o fato delxs serem autorxs cisgênerxs importa, acarretando na restrição da problematização do gênero a conceitos afeitos à orientação sexual. Isso também não está desvinculado do fato de que pessoas homossexuais/bissexuais/não-heterossexuais (cisgêneras) conseguirem acessar a academia e pessoa trans* em sua esmagadora maioria não. Percebam que discussões afeitas à orientação sexual não são diretamente coextensivas às discussões afeitas à identidade de gênero. Com isso não quero resumir o fato dessxs autorxs enquanto pessoas empíricas que são cisgêneras, mas considerar a presença da formação discursiva (o que é possível de ser dito) a que se inscreve o sujeito e a relação dos sentidos a partir de uma posição de sujeito (o sujeito-cisgênero neste caso); conceitos esses formulados pela corrente francesa da Análise do Discurso.
Essa relação de sentido (ou interdição de sentido) me deixa bastante perplexa. Essxs autorxs, ao falar sobre o funcionamento das normas de gênero, utilizam o conceito relacionado à orientação sexual (heterossexualidade) ao invés do conceito relacionado diretamente ao gênero (cisgeneridade). Com isso não quero dizer que não é importante analisarmos como as normas de gênero se intersecionam com questões afeitas à orientação sexual. Mas quero frisar que a impossibilidade destes diversxs autorxs de pensarem numa matriz cisgênera significa através do não-dito. Ou seja, dizer “heterossexualidade compulsória” não significa em si mesmo, também significa pelo fato de não se ter dito outra coisa (“cisgeneridade compulsória”), o que configura um movimento escorregadio “entre a trama das falas” e um traço deixado pelo silêncio. Para tornar o silêncio visível é preciso observá-lo indiretamente por métodos (discursivos) históricos, críticos, desconstrutivistas (ORLANDI, 2007).
Compreender como o silêncio significa me parece extremamente relevante para entendermos a cisgeneridade. Aqui uso o silêncio como forma de significar como formulou Eni Orlandi (2007), não enquanto falta ou ausência de sentido. Também não é o silêncio místico ou mágico (bastante explorado pelas religiões), mas o silêncio em sua materialidade significativa, enquanto presença e não enquanto o inefável.
A cisgeneridade funciona enquanto produtora de normas de gênero/sexo através do silêncio e também só pôde ser pensada/criada (e então dita) porque algo (o gênero/sexo) se significou e se significa no silêncio. O silêncio, segundo Orlandi (2007) não é transparente e atua na passagem entre pensamento-palavra-coisa.
Nesse sentido, quando a autora diz que “o silêncio é fundante”, podemos entender que o silêncio funda a cisgeneridade. Esse silêncio se dá ao mesmo tempo em que produz coerências e inteligibilidades às identidades dos sujeitos cisgêneros e interdições à plena identificação de gênero aos sujeitos transgêneros. Essa interdição é responsável pela produção de abjeções relacionadas à transgeneridade. Mas essa interdição também enseja formas de resistência pelxs subalternxs.
Então quando pensamos sobre formas de quebrar este silêncio (que se deu por um irromper da linguagem dentro do próprio silêncio), através da nomeação da cisgeneridade em um dito, vislumbramos implicações políticas (ou a ligação do simbólico com o político) e de deslizamentos de sentidos sobre “homens” e “mulheres”. Isso porque “o silêncio intervém como parte da relação do sujeito com o dizível, permitindo os múltiplos sentidos ao tornar possível, ao sujeito, a elaboração de sua relação com os outros sentidos” (ORLANDI, 2007, p.89).
Essa quebra de silêncio (a linguagem) funciona como uma forma de “domesticação da significação”. Mas certamente este retorno à linguagem que o termo cisgênero proporciona não se trata de um retorno ao mesmo. Produz-se uma nova identidade através da linguagem, com uma coerência, totalidade e unicidade novas. Vejo que uma passagem pelo silêncio tornou possível uma fala improvável e subalterna de se irromper no silêncio, a fala das pessoas trans* ao nomearem os normais, as pessoas cis. Vozes historicamente silenciadas assim como suas questões, suas vivências, perspectivas e opressões.
Esse novo irromper da linguagem proporciona outras formas de interpretação de algo já aparentemente dado, por exemplo, quando apontei a minha estranheza ao uso de “heterossexualidade” para se compreender o gênero, ao invés de “cisgeneridade”. Nesse processo apontamos as lacunas e os equívocos, questionando a completude do que foi dito.
Cabe aqui a distinção de duas formas de silêncio propostas por Orlandi (2007): o silêncio fundante (necessário para todo o processo de significação) e política do silêncio (o recorte de um sentido a partir de uma posição do sujeito). Assim, como disse, por um lado a opção por se falar acerca da “heterossexualidade compulsória” foi feita a partir de um recorte de acordo a uma posição do sujeito-cisgênero e do outro, a própria possibilidade desta forma de significação (se fundar) se deu através do silêncio fundador. Ambos de certa forma trabalham com o silêncio em torno da cisgeneridade para fazerem sentido. Então, como prática de resistência, através da “passagem incessante das palavras ao silêncio e do silêncio às palavras”, torna-se possível tanto o surgimento do sentido de cisgeneridade ou do termo cisgênero quanto a ocupação de um lugar emancipatório para o sujeito-transgênero: a relação com o Outro passa a ser redefinida. Aqui está a dimensão política do silêncio, na medida em que recorta o dizer, como define a autora.
Referências
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade; tradução, Renato Aguillar. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003
ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. - 6ª ed. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.