Tire sua régua cis do meu corpo trans e/ou transfobia nossa de cada dia
Texto de Magô Tonhon
Não viaja, colega! “a pessoa lá” não roubou direito de ninguém por ter barba e reivindicar seu nome social. Sinto desapontar-te caríssimx colegx mas quem “roubou” esse direito foram os deputados que se utilizando de seus respectivos ‘nomes fantasia’: dentre Tias Eron, Pastores de uma ovelha só, de nomes no diminutivo que sentam no próprio rabo (leia-se privilégios) e tentam derrubar o decreto-tardio que a presidenta assinou antes mesmo de, ao sair do congresso, apagar a luz para viajar ao rio grande do sul e continuar pedalando pelas manhãs!
O Decreto garante a travestis e transexuais que trabalham no serviço da administração pública federal (funcionários e também usuários de órgãos públicos, autarquias e empresas estatais federais) a utilização de nome social em crachás e documentos oficiais como atas e formulários por exemplo.
É potente debater e pontuar a estrutura escrota e meritocrática que estamos inseridxs? Sem dúvida!
É importante falarmos, enunciarmos nossos privilégios e acessos [SEM QUE ISSO SEJA MOTIVO PRA QUALQUER ATAQUE, VALE LEMBRAR] ? Sim, sem dúvida! Pra quê? não pra pódio, deixa isso pro brasil que é ouro em transfobia, mas pra denunciar a dialética que envolve esse cis-tema complexo no qual nos inserimos, todas, todos e todes.
Todo o debate que tenha CONSCIÊNCIA do caráter estrutural dessas opressões todas é bem vindx. CONSCIÊNCIA muda a relação que se tem com qualquer objeto. Aprendi com uma professora de história da arte, que ante à indústria cultural que mastiga os processos e nos oferece mercadorias de volta, que toda consciência deveria ser enunciada. Ela dizia que quando tenho CONSCIÊNCIA de que a mercadoria se apresenta inserida nessa estrutura, quando tenho CONSCIÊNCIA de sua origem e da maneira como é colocada para as pessoas consumirem, essa relação já muda. Eu consumir um produto porque ele é empurrado para mim como se eu de fato necessitasse dele pra viver é diferente de eu, consciente dessa estrutura, escolhe-lo por julgar que em mim ‘cairá bem’, por exemplo.
E essa consciência deve ser também enunciada quando falamos de pessoas trans, qualquer que seja. As que se enunciam por uma negação do que NÃO É (como as pessoas trans não-binárias), ou aquelas que brigam pois não são outra categoria de pessoa (como aquelas que não diferenciam ao enunciar suas identidades “sou pessoa como qualquer outra”; “somos gente”), ou até mesmo aquelas que acreditam ser importantes as diferentes categorias identitárias (“sou pessoa trans, sim!”). Todas as pessoas que não se reconhecem com o gênero atribuído. Atribuição esta estabelecida pela existência de um genital que lembre ou se assemelhe àquilo que entendemos ser ou um pênis ou uma vagina (sem falar do quão compulsória é esta lógica com as pessoas intersexo). O discurso médico atravessa nossas identidades de gênero, naturalizando em palavras e termos problemáticos como ‘sexo biológico’ toda uma construção que também é social. Os saberes científicos esquecem-se do quão social é também o conhecimento da Biologia enquanto nos dizem sobre o ‘gênero com o qual nascemos’. Ninguém nasce generificado. Nascemos, as pessoas privilegiadas e já tem-se um quarto. E os objetos costumam falar mais por nós, quando não acessamos ainda a estrutura da palavra, da linguagem para enunciarmos a nós mesmxs.
O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre “o que é masculino e o que é feminino”. Dentro deste entendimento uma das ‘facetas’ do gênero, veja bem UM DOS ELEMENTOS por meio do qual podemos identificar e localizar o gênero é a autodeterminação, a identidade subjetiva individual. Quando a gente entra nessa seara, todo tipo de enunciação pode acontecer. E eu não me dou o direito de zombar de quem quer que seja, pela pessoa não se enquadrar em qualquer elemento que para mim seja possível de assimilar a identidade que reivindica pra si. Sabe por quê? Porque a pessoa já nega um primeiro enquadramento quando se reivindica trans. Não seria incoerente que se houvessem outros com o qual essa pessoa devesse cumprir, feito uma tabela? Daí a incoerência de uma possível receita de como se tornar uma pessoa trans verdadeira!
Percebo que não é possível separar o mundo numa dicotomia bem definida entre pessoas privilegiadas e pessoas não privilegiadas. Se 1% da população mundial concentra metade de toda a riqueza do planeta (fonte: http://migre.me/uIVDL) todas as outras 99% da população desfruta de igual situação entre si? Creio que não.
Se não podemos quantificar exatamente qual é a porcentagem de pessoas trans/travesti por não estarmos nos censos de nossos territórios, deste modo, eu preciso respeitar aqueles que me dizem: ‘Magô eu sou um dragão!’.
Bonjour, dragão! Cuidado com essas ventosas faiscantes no meu cabelo cheio de frizz por gentileza.
Eu poderia dizer: Não, queride, você não é um dragão!?
Não creio que caiba a mim, esse tarefa!
E quando digo que a autodeterminação é UMA DAS MANEIRAS de se pensar o gênero, eu não posso deixar de olhar o gênero enquanto uma categoria passível de análise histórica, que destina lugares bem definidos e desiguais à determinadas pessoas. Afinal, a identidade subjetiva é um dos elementos que se relaciona com outros tal como: os símbolos culturais que evocam representações; os significados destes símbolos expressos geralmente nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e que tipicamente tomam a forma de uma oposição binária fixa (o homem masculino e a mulher feminina). E também o caráter político que o gênero assume nas instituições e na maneira como a sociedade se organiza, o que potencialmente coloca em questão o caráter fixo do gênero, como se não variasse de acordo com o tempo histórico e os diferentes lugares onde as sociedades se organizam. (ler a definição de gênero em: “Gênero: Uma categoria útil de análise histórica” de Joan Scott de 1990).
Aí então, não há exatamente uma estrutura que destine um lugar desigual aos ‘dragões’, por exemplo. E não somente nesses casos mais ‘peculiares’. É possível identificarmos a mesma necessidade de assimilação que as próprias pessoas transexuais e travestis atravessam ante à norma cisgênera. Até que ponto podem as mulheres e homens trans serem classificados enquanto ‘binários’? Não creio ser possível de se separar em tão grande abismo! O fato de atravessarmos tais expectativas depositadas sobre nós já é grande indicativo de não conformidade com o dito ‘binário’. Essa binariedade cis não nos cabe, não nos assimila. E daí outras questões se podem levantar: as pessoas ditas não-binárias, ao que vejo, atravessam a mesma necessidade de assimilação. Se é não-binária mas tem um nome que seja feminino, então ‘é uma mulher trans que não se assume’, dizem.
É necessária a CONSCIÊNCIA à esses processos dolorosos de assimilação. E há muita dor! Essa assimilação toda também recai sobre parte da invisibilidade bissexual, quando estamos a falar das orientações afetivo-sexuais não monosexuais [hetero e homo] por exemplo. Não por acaso bissexuais ‘são pessoas homossexuais que não se assumem’ dentro dessa lógica. ‘São confusas’ e por aí vai toda a sorte de afirmações pedantes que se recai sobre a tentativa de se enquadrar o desejo, tarefa difícil e bastante paradoxal.
O que a pessoa trans do Rio Grande do Sul subtraiu de qualquer outra pessoa trans? Nada! Se uma vez aprovada a lei de identidade de gênero que possibilitará que a gente CORRIJA nossos documentos pessoais sem necessidade de recorrer à justiça e sim apenas recorrendo à um cartório, quais seriam os limites? É o cartorário que vai olhar pra minha cara e dizer MAS VOCÊ É TRANS MESMO? Não acredito! Pois qual avanço teremos se tal atribuição hoje centralizada na figura do juiz passasse à quem nos atendesse nos cartórios? Nenhum! Nossas identidades trans/travestis continuariam sob o crivo de um agenciador supremo.
Quais são esses limites? É preciso termos consciência do que estamos a reivindicar.
Não é a toa que já atravessamos processos dolorosos dentro mesmo dessa categoria de pessoas a qual pertencemos. Não é raro encontrarmos algumas travestis olhando para pessoas trans e as chamando de “DOENTES”. Ou as mulheres transexuais que desejam o redesenho genital olhando para pessoas trans/travestis que não a desejam e classificando-as de “VIADINHO AFEMINADO” como se toda legitimidade estivesse atrelada à relação que se tem com a sua configuração genital. Quantas histórias ouvimos de pessoas trans/travestis que estão há mais tempo no movimento social organizado e que olham com maus olhos o surgimento dessa geração mais atual, barulhenta e cheia de opinião e torcem o nariz para isto? Quase que é possível ouvi-las balbuciar “QUEM PENSAM QUE SÃO? QUANDO NASCERAM EU JÁ ESTAVA NA PISTA!” Embora seja importante lembrar que não estamos nós inaugurando a nada. Toda organização e movimento social tem história, somos muitos e muitas ancestrais na batalha. O conhecimento e legitimidade destas existências que nos antecederam no entanto não deve servir para hierarquizar posicionamentos nem opiniões ante aos desafios que se apresentam! Há tensões, não há exatamente um consenso. Não somos uma categoria única de pessoas.
Será que vamos esquecer desses embates, e dessas tensões que existem entre nós? Não somos uma categoria passível de assimilação fácil, sem que para isso sejam esquecidas e deixadas muitas outras pessoas para trás. Esse exercício de alteridade com relação a esse outro, a essa outra pessoa trans/travesti que muitas vezes não assimilamos, ela é potente e é nela que eu prefiro investir. Pois me reconecta com as feridas que outrora me habitaram. Outrora sangraram-me os olhos, nesse deserto que é conjugar o verbo NÃO CABER. É como se eternamente estivéssemos a tentar caber numa ‘roupa que não nos serve mais’ ou então que ‘nunca nos serviu’ mas que era apenas a que tínhamos disponível.
Em conversa com uma pessoa trans negra e nordestina, me lembrei das inúmeras Macabéas (personagem de Clarice Lispector no romance “A Hora da Estrela”) que nos habitam. Lembrei-me da minha dor, do meu processo, de tentar caber em uma roupa menor do que eu, eu que sempre fui de grandes dimensões! Ajudou-me a lembrar que não faz sentido algum agora eu tentar caber em outras novas roupas que não mais as antigas. Lembramos da necessidade de afrouxar certas categorias, de tensiona-las e assim abrir espaço para identidades não hegemônicas, sem esquecer dos processos históricos, de injustiças históricas que devem ser reparadas e superadas. Faço de sua dor, a minha dor. Por crer que a dialética estrutura nossas relações. Por acreditar que todas carregamos incongruências, incoerências e paradoxos. Por acreditar na necessidade de entrelaçar essas estruturas, essas fobias, essas normas, essas categorias, essas identidades também.
O papo que eu tive com essa pessoa trans me fez rememorar, que mesmo privilegiada por ter entrado em um mestrado numa universidade elitista e racista como a USP, das inúmeras batalhas diárias que sou obrigada a enfrentar e ainda assim, um semestre depois de ser admitida no processo seletivo, meu nome social ainda constar em parênteses na lista de presença, ao lado do meu nome de registro fora do parênteses. Assim, como se fosse uma abstração!
Me fez lembrar o fato de que para aparecer apenas MAGÔ SEM R E COM ^ na lista, eu terei que passar pela ‘trindade de conselhos’: dos discentes, dos docentes e da reitoria da pós, respectivamente. Mesmo a lei sendo clara quando diz que meu nome de registro deve ser apenas um dado administrativo. Pergunto: AQUI EU NÃO SOU SÓ UM NÚMERO?
Essa conversa, desabafo, deflagrou também a minha dor, que sei que não é só minha, diante do equivoco dos decretos e normas aprovadas que dizem respeito ao nome social no SUS, por exemplo. Lembrei da minha carteirinha do SUS que ainda tem o meu nome de registro ao lado do nome dito ‘social’ e com o meu ‘sexo’ bem definido ali: MASCULINO.
Cartão Nacional de Saúde padrão, com nome de registro da pessoa e constando “sexo”. (Fonte: http://migre.me/uIWRF)
Mesmo contrariando a NOTA TÉCNICA de número 18 lançada pelo Ministério da Saúde em 2014, instrumentalizando e praticamente desenhando como deve ser a ‘confecção’ dos cartões nacionais de saúde da população T. Isso tudo muito embora a identificação pelo nome social em todos os documentos dos usuários, o que inclui o cartão SUS, seja um direito garantido desde 2009 pela carta de Direitos dos Usuários do SUS (Portaria 1.820 de 13 de agosto de 2009).
O que estou a pleitear não é o silenciamento das pessoas trans que se sentiram ofendidas pela conquista de uma pessoa trans com barba e que se auto intitula ‘viada’ em uma foto com o parceiro em sua página do Facebook. O que estou a pleitear é que esse direito seja estendido e não cerceado, inclusive a mim mesma, que mesmo privilegiada por ter acesso a estas normas, leis e decretos, ainda não consegui fazer valer as letras destes dispositivos legais para que pudesse ter plenamente respeitado meu nome dito social enquanto ainda não corrigi meus documentos. E o que a nova Geni tem a ver com isso? Nada. E o que tem a ver com isso o cis-tema? Quase tudo!
Abaixo algumas palavras trocadas com uma pessoa trans, negra e nordestina cujo a minha ligação é íntima e pessoal, de coração estamos juntas.
“Sei bem dessas idas e vindas, desses caíres e levantares, e dessas potências que se manifestam pela própria vida sem por isso se confundir a um individualismo…
nossas vidas, nossas feridas, por pessoais que sejam, são coletivas, históricas e estão ligadas. poxa, ando mesmo às voltas com isso, cheia de crise e dor, por não saber onde estou no que diz respeito à historia do meu corpo e do meu gênero. me arrisco nos campos da não binariedade, mas cheia de inseguranças sem saber quão falsa e oportunista eu posso estar sendo, sem saber o quão verdadeira é a minha experiência. e eu sei o quão toxicas são essas categorias. mas eu sei também o quão difícil é escapar delas! circulando por territórios tão codificados. quer dizer, sei dos meus privilégios, não quero apagá-los: minha fala é situada, minha posição é parcial, e eu assumo isso. mas eu preciso de um espaço de trânsito, todas merecemos esse espaço, todas merecemos existir, MESMO QUE À MANEIRA DE GERMES! eu não tiro seu direito ao exercer o meu. Privilégios não são superpoderes. E eles não operam isolados. Privilégios são tão interseccionais quanto opressões”.
Sábias e honestas palavras. Resgatei outras também: “sigo acreditando na possibilidade de coligar, e de tecer redes pra que consigamos co-habitar o colapso da colônia sem nos destruirmos umas às outras”.
Às pessoas cisgêneras de todo tipo de ativismo que antes desse bafafá todo raramente tocava nos assuntos referentes à população T, plural e diversa é preciso lembrar que dentre os inúmeros entrelaçamentos possíveis, de raça/etnia, classe social, gênero e sexualidade, existe materialmente a população T. Ao falar de cada uma dessas ‘categorias’ é possível falar de pessoas trans também. É sempre bom adotarmos uma postura onde exercitamos melhor nossa capacidade de OUVIR mais do que a de julgar. Do que supor e apontar o dedo sem que se esqueça que TER CONSCIÊNCIA é parte fundamental na estrutura toda. Eu não posso ser isenta de consciência quando não me importo para o fato de que toda pessoa cis é uma pessoa transfóbica em potencial! Quando não dou atenção para essa potencialidade e esqueço de enuncia-la estou a fazer a mesma coisa que qualquer fascista: parto de um sentido que já está dado, fixado e não encontrado, vasculhado, questionado! A transfobia é estrutural em nossa sociedade, portanto que adianta focar no indivíduo e esquecermos da estrutura em si?
Nossas experiências são tateadas diariamente.
Escavamos todo dia um pouco mais o buraco de nossas existências.
★★★★★
★ Magô Tonhon é mulher transexual, bissexual, arquiteta e urbanista mestranda em Cultura, Educação e Saúde pela Universidade de São Paulo (USP); pesquisa gênero e sexualidade e é criadora do canal Voz Trans* no Youtube, por meio do qual discute questões relacionadas à população LGBT. É produtora do projeto [SSEX BBOX], trabalhou na 1a Conferência Internacional [SSEX BBOX] & Mix Brasil, e desenvolve ações pontuais para o projeto.
Tudo que vc escreve transmite tanto, mas tanto sentido e lógica para mim que fica difícil entender a necessidade de se problematizar o tema.
Mas isso não é óbvio?
Pq impedir?
Ql o propósito disso?
Como podemos viver tão fechadxs e ignorantes?
Fica fácil entender quando se descobre que muitos sequer sabem o significado da palavra empatia.
Esta realidade já se transforma e vc, minha amiga, tem um papel fundamental nesta história.
Adoro seus desabafos, suas broncas, seus tapas na cara e a cada dia me torno mais admirador do seu trabalho.
Bjo grande
hair