Transfeminicídio: quando vidas são passíveis de apagamento
Texto de Inaê Diana Lieksa.
Um acontecimento recente gerou a mobilização, ao menos em redes sociais como o Facebook, de muitas pessoas. Trata-se do assassinato por espancamento de um ambulante, de nome Luis Carlos Ruas, conhecido também como “Índio”, por dois homens que tentavam agredir duas travestis na estação Pedro II do metrô, em São Paulo, no dia 25 de dezembro de 2016.
Bom, o que almejo tratar aqui, de forma muito simples até, é a questão do transfeminicídio, a partir de uma matéria do jornal Correio Braziliense do dia 28 de dezembro de 2016.
De certo, muitas pessoas diriam que trata-se do óbvio, o enunciado “um transexual morre a cada três dias no Brasil”. “Muitas pessoas” essas, participantes de algum movimento social (anarquista, feminista, marxista, antirracista, etc.), acrescenta-se. Bom, o que eu questiono é, para quem essa obviedade existe? Por que essa obviedade existe? Como existe?
Essa obviedade talvez exista para aquelas pessoas que experimentam dessa realidade - a possibilidade de sofrerem um assassinato, ou tentativa, a qualquer momento; a de terem atendimento médico negado, não importa quantos juramentos de Hipócrates o profissional da saúde em questão tenha feito. Digo talvez, pois, até mesmo algumas dessas pessoas que experimentam dessa realidade, não enxergam isso como óbvio. Enxergam apenas como algo que ‘’ocorreu’’, passível de um mal-estar momentâneo, e nada além disso, nenhuma inquietação. Afinal de contas, a posição que ocupam socialmente não lhes permite refletir acerca da própria vida.
Apesar dessa observação, de que essas pessoas combatem para viver, deve-se considerar o enunciado “o país se transformou num campo de guerra para pessoas transgênero” como bifurcado: é falacioso e verdadeiro. Falacioso, se considerarmos que não há guerra. Há um extermínio. Apenas um dos lados encontra-se armado, seja com armas no sentido literal, seja com a norma, com as instituições. Verdadeiro, se considerarmos aquilo que Foucault identifica como “racismo de Estado”, poderemos compreender de que guerra exatamente se trata: a “guerra entre as raças”, aquela que busca a exterminação de elementos danosos ou impuros. Entende-se racismo como elemento constitutivo do biopoder, estratégia surgida no final do séc. XIX, que resultará no Nazismo. Visa-se regenerar as raças por intermédio do extermínio das sub-raças, das raças inferiores, dos anormais, dos desviantes, para a normalização dos comportamentos. O que a morte do Outro possibilita, é a purificação da raça.
Apesar do sentimento de auto-culpabilização por não corresponder a uma norma, para muitas pessoas trans essa obviedade existe. Existe e inquieta. O movimento Transfeminista, desde o seu surgimento, vem questionando a posição de subalternidade a qual essas pessoas são destinadas. Tratam-se de corpos que vivem afirmativamente, que possuem coragem de existir. Coragem essa, deve-se ressaltar, que causará incômodo. Afinal de contas, essa ruptura com um destino prescrito, que, se por um lado não é dito, nem por uma taróloga, nem por uma astróloga, o é em demasia pelo discurso médico-jurídico, disfarçado num saber científico “imparcial”. A ciência, segundo Bakunin, deve servir ao homem, e não o homem à ciência. Pois é na contramão dessa afirmação que a Biopolítica atua. O homem torna-se subalterno de seu discurso, sendo passível de extermínio a qualquer momento. A coragem, também é importante frisar, pode-se esgotar a qualquer instante, se o indivíduo já se encontra exaurido, e sem apoio. Assim, muitas pessoas trans tomam o caminho do suicídio como alternativa viável.
Essa obviedade se mostrará como um peso para muitas pessoas trans, pois compreendem que essa mesma obviedade trata-se de algo inexistente para as pessoas cisgêneras, e até mesmo outras pessoas trans. Talvez essas mortes possuam algum tipo de obviedade aos olhos da população que é tomada por notícias tais como esta, em redes sociais, televisão, internet, etc. Assim sendo, o que talvez não possua uma objetividade, uma clareza, como diriam alguns, é o que consolida esses assassinatos. Para boa parte da população não-trans, esses assassinatos ocorrem por conta de brigas entre esses indivíduos, de casos de furto, ou por essas pessoas terem “desrespeitado” alguém, dando alguma cantada na pessoa.
O mesmo argumento absurdo, baseado num consumismo da linguagem, como diria Marcia Tiburi, é utilizado contra indivíduos negros, nordestinos, palestinos, muçulmanos, mulheres cisgêneras, gays, lésbicas, e bissexuais.
Muito mais importante do que identificar os assassinatos em questão como próprios do comportamento de indivíduos neonazistas, como fizeram algumas organizações e movimentos sociais, é compreender como se consolida esse tipo de comportamento, essa abjeção a determinados corpos. “A matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna inteligível”, escreve Butler em Problemas de gênero (2010, p. 39), “exige que certos tipos de ‘identidade’ não possam ‘existir’ – isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não ‘decorrem’ nem do ‘sexo’ nem do ‘gênero’”. Ou seja, há corpos cujas vidas não possuem significado positivo algum, que são passíveis de apagamento. Esse apagamento, essa negação do Outro, se dá dentro de uma matriz cultural específica. No caso, uma matriz cultural transfóbica, onde a vida de pessoas transvestigêneres (transgênero, transexuais, e travestis) ocupam a posição da anormalidade, da sub-raça que corrompe e desvirtua o corpo cisgênero branco, europeu e heterossexual, o universal, o modelo a ser seguido.
Como explica a socióloga Berenice Bento[1], “o transfeminicídio se caracteriza como uma política disseminada, intencional e sistemática de eliminação da população trans no Brasil, motivada pelo ódio e nojo. Qual a quantidade de mortes é suficiente para chegar a esta conclusão? No Brasil não há nenhuma fonte totalmente confiável. O que existe é um acompanhamento, por algumas ONGs de ativistas LGBTT, de matérias jornalísticas sobre as mortes de pessoas LGBTT. Nestas notícias, as pessoas trans são apresentadas com o nome masculino e são identificados como “o travesti”. E, no âmbito conceitual, são consideradas como vítimas da homofobia. Acredito, ao contrário, que as mortes das mulheres trans é uma expressão hiperbólica do lugar do feminino em nossa sociedade”.
Os corpos transvestigêneres tratam-se dos corpos que questionam o discurso biopolítico, científico e religioso, em sua materialidade. São corpos que pesam/importam[2].
Notas
- O trecho refere-se a uma entrevista concedida à revista Fórum, na data de 9 de junho de 2014. Percebam que, de lá cá, não houve progresso referente à prevenção desses crimes.
- Jogo de palavras com o livro de Judith Butler, “Bodies that Matter”.