Línguas de madeira e vento trans*?
Uma língua de madeira é, como tratam alguns autores da análise do discurso como Michel Pêcheux e Françoise Gadet, uma língua autoritária, na qual os sentidos sobre as palavra são tomadas na sua relação de transparência com o mundo. Se as palavras, a partir desta concepção, referem de forma transparente a relação mundo-linguagem, depreende-se por certo que exista uma forma, em última instância, mais correta e verdadeira de “nomear as coisas”. Em se tratando de sentidos sobre (as “coisas”) “travestis” e “transexuais”, a língua médica/psi é a nossa língua de madeira: estabelece-se quais são os sentidos destes termos por meio da nosologia psiquiátrica (presentes nos manuais como CID e DSM), na qual o (trans)gênero é patologizado. A língua de madeira serve, como definem os mesmos autores, ao mesmo tempo, para “comunicarem e não comunicarem”. Neste caso, a (não) comunicação se dá sob a forma da colonização cisgênera.
O sentido, entendido aqui, não é sempre passível de deslocamento ou falha, trata-se aliás do contrário: do estabelecimento de critérios (que se propõem unívocos ou como a própria tentativa de evitar ao máximo o equívoco) diagnóstico sobre os “transtornos” ou “disforias” de gênero. Todo transtorno deve ser devidamente rotulado, sob a (ilusão da) transparência da linguagem. O corpo disfórico é tido como possuidor de uma verdade biológica escondida, a qual o psiquiatra deve dissecar através de um interrogatório (!) visando o “correto diagnóstico”. Muita tensão aqui: o diagnóstico correto é tido como uma estrita necessidade, já que algum perigo envolvendo o (cis)gênero está iminente: alguma tragédia está prestes a acontecer. Vendem o perigo e cobram a “solução”. Nossos médicos só poderiam estar para nos salvar, não é verdade? Nos salvar (ou seria curar?) do que mesmo?
O discurso do sujeito trans é tido como uma barreira para a prática médica, já que o mesmo poderia estar camuflando a pretensa verdade inscrita no biológico (da disforia). Estaria “simulando”. A razão desta simulação ainda me parece obscura, mas é certo que o sujeito a faz. O bom sujeito trans deve ser um vetor transparente para que a biologia fale a partir dele, sem ambiguidades. Assim, deve-se restituir, a partir da anormalidade trans*, um mundo “semanticamente normal” sobre o gênero e o (cis)gênero. Os “profissionais” e os “especialistas” do gênero necessitam trabalhar neste espaço em que o real do sexo é domesticado. Não se deve, por exemplo, dizer-se enquanto mulher e gostar de cavalos (!). Mas afinal de contas, qual verdade estaria sendo escamoteada?
O psiquiatra ocupa este lugar social: de dizer a verdade sobre nossas identidades, já que somos despossuídas de auto determinação; nosso lugar enquanto enunciadorxs é sempre a da suspeita, do engodo e da “falsidade ideológica”. Eis que diga o juiz! Este só irá levar em consideração nossa identidade (frente ao jurídico) na medida em que somos mediadas (faladas) por psiquiatras/psicólogos/psicanalistas/endócrinos/cirurgiões/assistentes sociais (cisgêneros). A cisgeneridade é um violento filtro social para pessoas trans, não é a toa que o nosso ingresso no “universo cis” é sempre marcado pela marginalidade e pelo percalço.
Voltando para a língua. Fiz esse texto não para pensar somente na língua de madeira dos médicos, mas também como esta língua é atravessada no próprio discurso das pessoas trans* e também para discutir sobre uma suposta língua de vento que tenho visto circular pelo facebook. Esta língua de vento se dá em resposta à língua de madeira médica/trans*, ela se propõe fluída, como uma crítica e uma saída, às ditas “caixinhas” e às políticas identitárias essencializadas sobre travestis e transexuais. É a língua do “transgênero” e dxs “transgentes”. Mas em que medida essa mesma língua de vento acaba por ser ela mesma uma língua de madeira?
Esta nova língua de vento transgênera parece ter pavor de certas formas de subjetivação que seriam “normativas”: as travestilidades e transexualidades. Paradoxalmente, ao negar o discurso médico, ela precisa negar estas formas de subjetivação. Estas identidades “normativas” precisam ser julgadas, foracluídas do discurso. Só assim chegaríamos à “revolução” (seria, quem sabe, a abolição de gênero de que tantas feministas radicais falam?). O “correto” aqui passa a ser transgênero. Cria-se um efeito de ilusão de unidade, a qual todas as pessoas trans* deveriam (frise bem esta palavra) estar incluídas sob o termo guarda-chuva. Em suma: uma língua que se propõe de vento, mas acaba por se tornar tão autoritária quanto a língua de madeira médica. Uma língua de unificação da nação transgênera à la stalinismo.
O que este discurso parece não conceber é que o próprio gênero funciona através das falhas. E estas falhas se dão sobre a forma da contradição. Ao negar a falha constitutiva do gênero este discurso transgênero se torna surdo para as formas de resistência de travestis e transexuais. Desta forma não se percebe os movimentos de deslocamentos (que se dão pela reprodução) de sentidos. A tensão constitutiva entre paráfrase e polissemia: se tangencia o novo pela repetição.
Por mais que de fato exista um inegável atravessamento do discurso médico normativo no discurso do blog “mundo t-girl”, materializado neste glossário sobre a “Diferenciação básica entre Travestis, Mulheres Transexuais e Homens Trans & Andróginos, Cross Dress, Drag Queen, Drag King, Lady-Boys, She-Males” não podemos nos ensurdercer para os deslocamentos que significam enunciar a partir de um espaço muito diferente do médico: a das próprias travestis, neste caso.
Os (sic) “travestis” dos médicos não são as mesmas travestis do blog/grupo “mundo t-girl”. O (sic) “travestismo bivalente ou de duplo papel” do discurso médico não possui o mesmo sentido das “travestis super femininas”. As travestis são significadas (por elas) de outra forma. Aqui elas questionam justamente o mundo semanticamente normal dos médicos psiquiatras: o fato de eu ter “peito e pau” não é uma incongruência. Sou “super feminina” e isso não significa que eu repudie meu órgão genital, por exemplo. Mesmo as “mulheres do terceiro milênio” não são as mesmas “transexuais male-to-female” do discurso médico. As mulheres (transexuais) também (se) designam de forma diferente. Aqui as formas de determinação não deixam mentir: se tratam de deslocamentos de sentidos, sob a forma da contradição.
A meu ver, é muito mais vantajoso observar estas rupturas de sentido que são reais, dar voz aos sentidos que irromperam do não-sentido que circulam já, do que conceber sentidos a priori e calcificados sobre estas sujeitas travestis e transexuais. Nossa interpretação é política, e a forma como nós interpretamos estas formas de (re)existência significam, trata-se de uma responsabilidade ética. E eu acredito que se trate de uma responsabilidade ética para o transfeminismo a não colonização das subjetividades, sobre as formas de estar no mundo e (nos) significar.
Bia, teu texto me ajudou a entender alguns movimentos dentro do(s) movimento(s). Fortaleço minha perspectiva de respeito à autonomeação (e o direito de não nomear-se) sobre qualquer outro discurso. Percebo que caímos em um “proselitismo identitário” diversas vezes ao longo da vida, tentando buscar adeptos para as nomeações que fazem sentido para cada umx de nós, atropelando xs outrxs… Adorei. Um beijo.