[TW / Aviso: Reprodução de termos ofensivos direcionados a minorias; discussão sobre estupro e assédio sexual; racismo. Os textos dos links estão em inglês].
Cece Mcdonald é uma mulher trans* negra residente dos EUA que recentemente foi notícia em jornais progressistas e blogs ativistas pela absurdidade de seu caso.
A história resumidamente é a seguinte: Estava Cece andando com amig@s na rua, quando el@s ouvem as mesmas ofensas preconceituosas de sempre – as quais já ouvimos tantas vezes – “nigga”, “faggots” e “chicks with dick” (tradução livre: “neguinha”, “bichas” e “mulher com pau”). Quando Cece se aproximou do grupo para enfrenta-l@s, dizendo que não iria tolerar preconceito, uma das pessoas atacou Cece com uma espécie de vidro (de um copo/taça) cortando o rosto de Cece. Uma briga ocorreu logo em seguida e uma das pessoas do grupo de ódio, um homem cis branco - Dean Schmitz, foi fatalmente esfaqueado por Cece. A policia foi chamada e a única pessoa que foi presa nessa noite foi Cece.
Cece seguiu em julgamento e apesar de provas irrefutáveis de que ela (e amig@s) foram atacad@s verbal e fisicamente por um grupo de ódio (diversas testemunhas comprovaram a história) a corte recusou-se a reconhecer tais provas – e o ocorrido como auto-defesa - como também não levou em consideração as palavras de ódio e o ataque proferidos contra ela e nem considerando inclusive, o fato de Dean Schmitz ter uma tatuagem de suástica no corpo, além de histórico criminal de violência.
Recapitulando: Cece é abordada na rua com xingamentos racistas e transfóbicos, ela reage verbalmente, é atacada, reage fisicamente para se proteger – o sujeito que a atacou possui histórico de violência, uma suástica tatuada e comprovadamente (por testemunhas) usou xingamentos racistas e transfóbicos.
Mas a corte não reconheceu nada disso, ignorou tudo e condenou Cece a quase 4 anos de prisão. Na verdade, Cece aceitou um acordo quando viu que a corte não reconheceria nenhum dos fatos relacionados a discurso de ódio, então aceitou se declarar culpada para ter sua pena amenizada.
Vale ressaltar que, em todo momento do julgamento, as autoridades se dirigiram a Cece pelo nome designado ao nascer (civil) e tratando-a pelo sexo masculino.
Como se não bastasse tudo isso, após condenada, Cece foi enviada para uma prisão masculina, onde lá decidiriam seu sexo e também se ela poderia continuar tomando hormônios (vc não leu isso errado).
Como dizem os blogs ativistas, Cece foi punida por ter sobrevivido e foi castigada a quase 4 anos de, no mínimo, assédio sexual, sem falar estupro.
Parece até um conto fantástico de tão absurdo.
Fantástica é mesma nossa sociedade que consegue inverter a relação agressor-vítima de uma forma tão absurda, de forma que fica difícil dizer que vivemos em uma democracia.
Ocorre que, como sabemos, a democracia é para uns e não para outros. Os sujeitos abjetos, que sobrevivem à margem não obstante os esforços assépticos do Estado e de seus aparelhos – A Escola; A Igreja; A Clínica; O Tribunal; e o próprio Estado – não estão autorizados a sobreviver e por isso são castigados quando ousam resistir e lutar contra, como Cece ousou fazer, ao enfrentar o grupo de ódio.
Mas o que faz o sistema ser desigual, quais são os elementos sociais – os elementos na linguagem – que trabalham para fazer a assepsia social desses sujeitos-abjetos?
Existe um conjunto de práticas e discursos discriminatórios que operam livremente – pois possuem base ou autorização do Estado e por isso funcionam por e para o Estado. Quando usamos discursos que historicamente são discriminatórios, ou que possuem em seu uso (pragmática) impregnações discriminatórias, ou ainda, que em determinado contexto agem como discriminatórios, estamos acionando um conjunto de discursos que apóiam e constituem tal discurso. Por isso o racismo, homofobia, cissexismo, e misoginia são institucionalizados de forma mais direta: através de leis – ou ausência delas – que promovem preconceitos; ou de forma indireta: através dos aparelhos e agentes de regulação do Estado: A Escola – O Professor; A Igreja – O Religioso, A Clínica – O Médico, O Fórum – O Juiz etc.
Dessa forma, o tempo todo existem discursos que com base nessas instituições, produzem e reproduzem discriminações possuindo força para tal, pois se alimentam dessa base que por sua vez é alimentada pelos mesmos discursos.
Quando uma pessoa usa um discurso racista, por exemplo, ela esta autorizada pelo Estado para tal, ela enuncia a partir de uma posição de privilégio que lhe foi garantida pelas instituições que lhe dão apoio, e então ela aciona todas essas instituições no momento que discursa, ganhando com isso força discursiva para exercer poder.
Todo discurso é e si mesmo violento, porém existem aqueles que autorizados por um conjunto de práticas e instituições, tem mais poder: poder de matar, de oprimir, de violentar, de apagar um sujeito da história.
É nessa lógica que “racismo reverso“, “heterofobia“, “cristofobia”, “cisfobia” e “misandria” não existem. Aliás, esses conceitos são grandes sofismas, criados estrategicamente pela classe opressora que, sentindo-se de alguma forma ameaçada, criou a ilusão de um embate discursivo simétrico que não existe e nem nunca existiu.
Mesmo que uma pessoa negra, por exemplo, profira todos os xingamentos discriminatórios contra uma pessoa branca, nunca terá força discursiva suficiente, porque não tem em sua base apoio institucional, não aciona um conjunto de práticas institucionalizadas “anti-brancas” porque elas não existem. A classe branca sempre foi (e é) a classe dominante. Não existe um discurso que tenha força suficiente para discriminar uma classe inteira dominante, porque se assim fosse, o Estado não seria racista para com negr@s e não haveria necessidade de uma lei específica para criminalizar racismo.
Da mesma forma, podem-se juntar quantas mulheres (tanto cis quanto não-cis) forem para proferirem todas as maiores violências contra homens cisgêneros, que a força que possuem por trás de seus discursos não conseguirá nunca discriminar a classe inteira dos homens cis. Simplesmente não existe base que sustente racismo reverso, heterofobia, cisfobia e misandria – a discriminação que existe, é somente individual, uma pessoa aqui e outra lá ocasionalmente proferindo um discurso discriminatório que não possui força e permanece somente individualizado no discurso daquele sujeito - e não é apoiado pelas instituições, muito menos reproduzido pelas mesmas.
Por isso sugiro que esses termos são grandes falácias. Quando criamos um termo para designar uma opressão, essa opressão funciona em nível micro – pessoal e macro – social-institucional. A discriminação proveniente desses termos permanece no campo micro, e por isso a criação de um novo termo para designar uma discriminação sem base social é apenas uma estratégia do grupo opressor para criar uma suposta “igualdade” de discriminações: ora se existe racismo, existe “racismo reverso”, se existe misoginia, existe “misandria”, se existe homofobia logo, existe “heterofobia”.
Por isso é incabível pensar que uma sociedade que descaradamente discrimina institucionalmente uma pessoa negra transexual, sugira que exista algo como “racismo reverso”, já que mesmo com as “forças dos eventos” e testemunhas favorecendo Cece, a justiça decidiu a favor de um homem cis branco – Dean Schmitz e o transformou em vitima, punindo duplamente aquela que ousou sobreviver.
Nota: outros textos relevantes [em inglês] para a discussão, inclusive um apontando a islamofobia descarada do Reino Unido, quando do ocorrido na Suécia:
http://tabloid-watch.blogspot.co.uk/2011/07/suns-editorials-on-norway.html
http://genderbitch.wordpress.com/2010/08/04/feminism-disavowal/
http://www.questioningtransphobia.com/?p=3958
http://feministing.com/2009/05/06/why_feminists_should_be_concer/
http://gidreform.wordpress.com/
http://www2.hu-berlin.de/sexology/GESUND/ARCHIV/MoserKleinplatz.htm