Arquivo do mês: julho 2012

O Caso de Cece McDonald ou porque “racismo reverso”, “heterofobia”, “cristofobia” “cisfobia” e “misandria” não existem

[TW / Aviso: Reprodução de termos ofensivos direcionados a minorias; discussão sobre estupro e assédio sexual; racismo. Os textos dos links estão em inglês].

Cece Mcdonald é uma mulher trans* negra residente dos EUA que recentemente foi notícia em jornais progressistas e blogs ativistas pela absurdidade de seu caso.

A história resumidamente é a seguinte: Estava Cece andando com amig@s na rua, quando el@s ouvem as mesmas ofensas preconceituosas de sempre – as quais já ouvimos tantas vezes – “nigga”, “faggots” e “chicks with dick” (tradução livre: “neguinha”, “bichas” e “mulher com pau”). Quando Cece se aproximou do grupo para enfrenta-l@s, dizendo que não iria tolerar preconceito, uma das pessoas atacou Cece com uma espécie de vidro (de um copo/taça) cortando o rosto de Cece. Uma briga ocorreu logo em seguida e uma das pessoas do grupo de ódio, um homem cis branco - Dean Schmitz, foi fatalmente esfaqueado por Cece. A policia foi chamada e a única pessoa que foi presa nessa noite foi Cece.

Cece seguiu em julgamento e apesar de provas irrefutáveis de que ela (e amig@s) foram atacad@s verbal e fisicamente por um grupo de ódio (diversas testemunhas comprovaram a história) a corte recusou-se a reconhecer tais provas – e o ocorrido como auto-defesa - como também não levou em consideração as palavras de ódio e o ataque proferidos contra ela e nem considerando inclusive, o fato de Dean Schmitz ter uma tatuagem de suástica no corpo, além de histórico criminal de violência.

Recapitulando: Cece é abordada na rua com xingamentos racistas e transfóbicos, ela reage verbalmente, é atacada, reage fisicamente para se proteger – o sujeito que a atacou possui histórico de violência, uma suástica tatuada e comprovadamente (por testemunhas) usou xingamentos racistas e transfóbicos.

Mas a corte não reconheceu nada disso, ignorou tudo e condenou Cece a quase 4 anos de prisão. Na verdade, Cece aceitou um acordo quando viu que a corte não reconheceria nenhum dos fatos relacionados a discurso de ódio, então aceitou se declarar culpada para ter sua pena amenizada.

Vale ressaltar que, em todo momento do julgamento, as autoridades se dirigiram a Cece pelo nome designado ao nascer (civil) e tratando-a pelo sexo masculino.

Como se não bastasse tudo isso, após condenada, Cece foi enviada para uma prisão masculina, onde lá decidiriam seu sexo e também se ela poderia continuar tomando hormônios (vc não leu isso errado).

Como dizem os blogs ativistas, Cece foi punida por ter sobrevivido e foi castigada a quase 4 anos de, no mínimo, assédio sexual, sem falar estupro.

Parece até um conto fantástico de tão absurdo.

Fantástica é mesma nossa sociedade que consegue inverter a relação agressor-vítima de uma forma tão absurda, de forma que fica difícil dizer que vivemos em uma democracia.

Ocorre que, como sabemos, a democracia é para uns e não para outros. Os sujeitos abjetos, que sobrevivem à margem não obstante os esforços assépticos do Estado e de seus aparelhos – A Escola; A Igreja; A Clínica; O Tribunal; e o próprio Estado – não estão autorizados a sobreviver e por isso são castigados quando ousam resistir e lutar contra, como Cece ousou fazer, ao enfrentar o grupo de ódio.

Mas o que faz o sistema ser desigual, quais são os elementos sociais – os elementos na linguagem – que trabalham para fazer a assepsia social desses sujeitos-abjetos?

Existe um conjunto de práticas e discursos discriminatórios que operam livremente – pois possuem base ou autorização do Estado e por isso funcionam por e para o Estado. Quando usamos discursos que historicamente são discriminatórios, ou que possuem em seu uso (pragmática) impregnações discriminatórias, ou ainda, que em determinado contexto agem como discriminatórios, estamos acionando um conjunto de discursos que apóiam e constituem tal discurso. Por isso o racismo, homofobia, cissexismo, e misoginia são institucionalizados de forma mais direta: através de leis – ou ausência delas – que promovem preconceitos; ou de forma indireta: através dos aparelhos e agentes de regulação do Estado: A Escola – O Professor; A Igreja – O Religioso, A Clínica – O Médico, O Fórum – O Juiz etc.

Dessa forma, o tempo todo existem discursos que com base nessas instituições, produzem e reproduzem discriminações possuindo força para tal, pois se alimentam dessa base que por sua vez é alimentada pelos mesmos discursos.

Quando uma pessoa usa um discurso racista, por exemplo, ela esta autorizada pelo Estado para tal, ela enuncia a partir de uma posição de privilégio que lhe foi garantida pelas instituições que lhe dão apoio, e então ela aciona todas essas instituições no momento que discursa, ganhando com isso força discursiva para exercer poder.

Todo discurso é e si mesmo violento, porém existem aqueles que autorizados por um conjunto de práticas e instituições, tem mais poder: poder de matar, de oprimir, de violentar, de apagar um sujeito da história.

É nessa lógica que “racismo reverso“, “heterofobia“, “cristofobia”, “cisfobia” e “misandria” não existem. Aliás, esses conceitos são grandes sofismas, criados estrategicamente pela classe opressora que, sentindo-se de alguma forma ameaçada, criou a ilusão de um embate discursivo simétrico que não existe e nem nunca existiu.

Mesmo que uma pessoa negra, por exemplo, profira todos os xingamentos discriminatórios contra uma pessoa branca, nunca terá força discursiva suficiente, porque não tem em sua base apoio institucional, não aciona um conjunto de práticas institucionalizadas “anti-brancas” porque elas não existem. A classe branca sempre foi (e é) a classe dominante. Não existe um discurso que tenha força suficiente para discriminar uma classe inteira dominante, porque se assim fosse, o Estado não seria racista para com negr@s e não haveria necessidade de uma lei específica para criminalizar racismo.

Da mesma forma, podem-se juntar quantas mulheres (tanto cis quanto não-cis) forem para proferirem todas as maiores violências contra homens cisgêneros, que a força que possuem por trás de seus discursos não conseguirá nunca discriminar a classe inteira dos homens cis. Simplesmente não existe base que sustente racismo reverso, heterofobia, cisfobia e misandria – a discriminação que existe, é somente individual, uma pessoa aqui e outra lá ocasionalmente proferindo um discurso discriminatório que não possui força e permanece somente individualizado no discurso daquele sujeito - e não é apoiado pelas instituições, muito menos reproduzido pelas mesmas.

Por isso sugiro que esses termos são grandes falácias. Quando criamos um termo para designar uma opressão, essa opressão funciona em nível micro – pessoal e macro – social-institucional. A discriminação proveniente desses termos permanece no campo micro, e por isso a criação de um novo termo para designar uma discriminação sem base social é apenas uma estratégia do grupo opressor para criar uma suposta “igualdade” de discriminações: ora se existe racismo, existe “racismo reverso”, se existe misoginia, existe “misandria”, se existe homofobia logo, existe “heterofobia”.

Por isso é incabível pensar que uma sociedade que descaradamente discrimina institucionalmente uma pessoa negra transexual, sugira que exista algo como “racismo reverso”, já que mesmo com as “forças dos eventos” e testemunhas favorecendo Cece, a justiça decidiu a favor de um homem cis branco – Dean Schmitz e o transformou em vitima, punindo duplamente aquela que ousou sobreviver.

Nota: outros textos relevantes [em inglês] para a discussão, inclusive um apontando a islamofobia descarada do Reino Unido, quando do ocorrido na Suécia:

http://tabloid-watch.blogspot.co.uk/2011/07/suns-editorials-on-norway.html

http://genderbitch.wordpress.com/2010/08/04/feminism-disavowal/

http://www.questioningtransphobia.com/?p=3958

http://feministing.com/2009/05/06/why_feminists_should_be_concer/

http://gidreform.wordpress.com/

http://www2.hu-berlin.de/sexology/GESUND/ARCHIV/MoserKleinplatz.htm

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Arquivado em Cissexismo, Invisibilidade, Trans*, Transfobia

O que é cissexismo.

Revisei e ampliei a primeira postagem sobre o assunto, baseado em discussões e leituras novas.

Agradeço às pessoas da comunidade Transfeminismo do Facebook pelas ótimas discussões acerca do tema.

Para ver a postagem original, clique aqui.

Vivemos em uma sociedade ciscêntrica, cisnormativa. Isso ocorre porque as pessoas cis detém o poder de decisão sobre as pessoas não-cis dentro de vários âmbitos: médico, político, jurídico, financeiro etc.

Mas quem são as pessoas cis? Utilizei a seguinte definição a priori:

“Uma pessoa cis é uma pessoa na qual o sexo designado ao nascer + sentimento interno/subjetivo de sexo + gênero designado ao nascer + sentimento interno/subjetivo de gênero, estão “alinhados” ou “deste mesmo lado” – o prefixo cis em latim significa “deste lado” (e não do outro), uma pessoa cis pode ser tanto cissexual e cisgênera mas nem sempre, porém em geral ambos.”

Uma pessoa cis é aquela que politicamente mantém um status de privilégio em detrimentos das pessoas trans*, dentro da cisnorma. Ou seja, ela é politicamente vista como “alinhada” dentro de seu corpo e de seu gênero.

Quero evitar dicotomizar aqui sexo e gênero, pois muito embora essas categorias sejam divisíveis para problematização, a idéia que a ciência construiu sobre o sexo é pré-discursiva, ou seja, é como se fosse compulsoriamente uma verdade.

Isso significa que sexo é entendido como pré-dado e associado dimorficamente (homem-pênis/mulher-vagina) e a ele são atribuídos valores generificados que inscrevem o corpo em um sistema binário; “Corpo masculino” e “corpo feminino”.

Voltando na definição cis. Eu já havia retificado minha afirmação prévia em outra postagem, na qual elimino a discussão etimológica sobre o prefixo cis, porque não é cabível em uma discussão que se quer puramente política. Não queremos criar uma dicotomia entre pessoas cis e pessoas trans* e sim evidenciar o caráter ilusório da naturalidade da categoria cis.

O alinhamento cis envolve um sentimento interno de congruência entre seu corpo(morfologia) e seu gênero, dentro de uma lógica onde o conjunto de performances é percebido como coerente. Em suma, é a pessoa que foi designada “homem” ou “mulher”, se sente bem com isso e é percebida e tratada socialmente (medicamente, juridicamente, politicamente) como tal.

Em outras palavras pessoas cis são aquelas que nos discurso correntes (médico, acadêmicos, jornalistico, entre outros) são chamadas de “biológicas”, mas essa definição é discriminatória ao passo que pessoas trans* também são obviamente biológicas e o que difere é apenas seu status político.

O que é o desígnio?

O desígnio é o conjunto de práticas que envolvem a generificação de sujeitos por meio da nomeação de morfologias e a expectativa de gênero atrelada ao nascituro.

Ou seja, quando uma pessoa engravida, ela discursivamente já produz o gênero do sujeito antes mesmo deste nascer. Tanto isso é verdade que ao “saber” o “sexo” do nascituro criam-se expectativas de gênero que se exprimem na cor das roupas, do quarto, nos brinquedos etc. E esse discurso tende a ser mais limitador e repressor conforme esse sujeito cresce.

(Costumo associar o desígnio com o conceito de Memória do Futuro do Bakhtin, porque encaro o desígnio como uma expectativa que já se concretizou, por se apoiar em vários discursos normativos de sexo e gênero que orientam a sociedade e produzem os corpos e performances normais/anormais).

Quando o médico designa “é um menino/ menina” criam-se aí uma série de expectativas de gênero na qual esse sujeito deve estar conforme durante sua vida, caso contrário correrá o risco de ser visto como uma pessoa trans*/inconforme com seu gênero, um doente mental, como veremos a seguir.

Patologização das identidades trans*

Segundo o DSM-IV e o CID, Transexualidade (lá referida como transexualismo) é uma patologia, uma doença mental. Ao longo do século, as ciências psi trabalharam em direção à desumanização das identidades trans* por meio do discurso patológico. Estar de alguma forma incongruente segundo a norma cisgênera – homem/penis – mulher/vagina – tornou-se uma anormalidade, uma abjeção e por isso uma patologia. Para a ciência, a experiência trans* e os trânsitos de gênero não são normais, porque ela parte da mesma concepção ciscêntrica que apontei acima. Para a ciência, uma pessoa com “morfologia masculina” sempre será homem e sempre irá querer ser homem dentro da norma. Da mesma forma, uma pessoa com “morfologia feminina” sempre será mulher e sempre irá querer ser mulher. As ciências psi consideram essa norma como pré-discursiva, ou seja, não se discute o caráter ideológico de supor que tod@s somos centrad@s dessa forma. Qualquer sujeito que falhe nessa lógica, será anormal, um doente mental. Daí a criação da transexualidade. Quando pessoas que não se sentiam confortáveis com sua morfologia e/ou com as expectativas de gênero designadas a elas durante sua socialização começaram a surgir, a ciência rapidamente relegou essas experiências ao campo patológico.

Relegar essas experiências ao campo patológico é desumanizar as pessoas que se sentem como não-cis. Isso porque atualmente para existir politicamente como trans*, o sujeito deve passar por uma equipe médica que irá “atestar” a experiência trans* permitindo a existência desses sujeitos na sociedade através de um laudo médico. Da mesma forma, as instâncias jurídicas estão alicerçadas na mesma norma, e em conjunto com a legitimação médica só irão garantir existência jurídica a essas pessoas através do laudo médico.

O que irá guiar as ciências psi para “atestar” a “condição” trans* serão normas cisgêneras binárias. As ciências psi irão absorver os valores sexistas da sociedade para atestar o que é ser homem ou mulher. Então, para a ciência psi, será uma mulher trans* aquela que estiver conforme com as expectativas sexistas do que é ser mulher: gostar de se depilar, ser vaidosa, ter cabelos compridos, unhas feitas, gostar de maquiagem – e ainda as de ordem “psicológica” como por ex. ser emotiva ou não gostar de sexo. O mesmo ocorrerá com a definição de homem: ser “pegador”, querer ser ativo sexualmente, ter barba, ter pelos, ter ou querer ter voz grave, etc.

É importante ressaltar aqui também o caráter heterossexista dessa norma: se na sociedade heteronormativa mulheres e homens cis são heterossexuais, mulheres e homens trans* também devem ser, e para a ciência não existem pessoas trans* homo/bissexuais. As ciências psi confundem o tempo todo identidade de gênero e sexualidade.

Para as ciências psi, todas as pessoas trans* que falhem no modelo binário-sexista de comportamento, não são trans* “de verdade”.

Mas o que é o sistema binário? Binarismo, disforia* e conformidade na experiência trans*:

*(a utilização do termo disforia em itálico e com asterisco procura automaticamente problematizar e se diferenciar da definição das ciências psi).

Binarismo é a idéia que todas as pessoas (seus comportamentos) devem se inscrever em um sistema binário rigidamente (cis) sexista. Ou seja, “homem fala grosso, cospe, tem voz grave, é racional, automaticamente violento, gosta de ter barba” etc. Mulher é “emotiva, gosta de se depilar, é vaidosa, usa maquiagem” etc. Homem tem e/ou gosta de ter “aparência masculina” e mulher tem e/ou gosta de ter “aparência feminina”. Essa idéia se reflete na experiência trans* na medida em que as ciências psi irão cobrar esses mesmos elementos. Uma mulher trans* deverá cumprir com todas essas normas. Caso falhe, falhou na expectativa de “ser mulher”. O mesmo ocorre para homens trans*. As pessoas trans* internalizam essa idéia de tal forma, que muitas só conseguem se ver ou se sentir “completas” dentro do sistema binário, e quando sentem que falharam, experienciam disforia*.

Disforia* aqui é usado de forma diferente do discurso médico. Disforia* seria a direta experiência binarista-cissexista da norma cisgênera. Ou seja, a norma orienta um binarismo - se falhamos em cumprir nos sentimos socialmente e morfologicamente inadequad@s. Esse sentimento é o que chamamos de disforia*. A disforia* só existe porque existe uma norma que regula comportamentos e morfologias. Só existe porque a sociedade é baseada da cisnorma, ou seja, no alinhamento compulsório morfologia-gênero. Isso não significa que o sentimento disfórico seja menos real ou passível de desconsideração, mas sim que o reforço das normas binárias cissexistas produz e reproduz a disforia*. Não é, como acredita a ciência, um sentimento puramente subjetivo das pessoas trans*, é um sentimento produzido por uma norma social.

Mas afinal o que é cissexismo então?

Primeiramente é a desconsideração da existência das pessoas trans* na sociedade. O apagamento de pessoas trans* politicamente por meio da negação das necessidades específicas dessas pessoas. É a proibição de acesso aos banheiros públicos, a exigência de um laudo médico para as pessoas trans* existirem, ou seja, o gênero das pessoas trans* necessita legitimação médica para existir. É a negação de status jurídico impossibilitando a existência civil-social em documentos oficiais.

Porém esses exemplos são mais óbvios, e poderíamos chamá-los simplesmente de transfobia. O cissexismo é mais sutil. Ocorre quando usamos o termo biológico para designar pessoas cis, quando usamos certos discursos e certas expressões que excluem ou invalidam direta ou indiretamente as identidades das pessoas trans*, como eu exemplifiquei na postagem anterior:

“Cissexismo será então qualquer discriminação baseada em:

1) Na noção de que só existe um tipo de morfologia (corpo) e este deve estar alinhado com o gênero designado ao nascer e/ou;

2) Noção de que só existem 2 gêneros (binários: masculino/feminino) e que uma pessoa deve estar alinhada dentro de um desses 2, e/ou;

3) Noção de que uma pessoa trans* tem uma vivência menos ‘verdadeira’, e/ou nunca será ‘verdadeira’ se não fizer modificações em seu corpo para ficar mais próxima de um dos gênero binários, e/ou;

4) Noção de que uma pessoa precisa estar dentro de um desses gêneros binários, porque senão ela não será feliz, ou não será aceita etc. e/ou;

5) Noção de que pessoas que não se encaixam no binário são doentes mentais, tem patologia e precisam se tratar de algum modo para se curar e que essa cura ou será o alinhamento ou o processo transsexualizador, e/ou;

6) Noção de que o corpo da pessoa é “bizarro”, que ela não pode viver no “entre” etc. o que pode caracterizar também transmisoginia e/ou transmisandria e/ou;

7) Noção de que a pessoa “dá pinta”, é muito “escandalosa” chama atenção, principalmente no que diz respeito a performance/atitudes que não estão alinhadas do ponto de vista cis. Achar que porque essa pessoa ‘chama atenção’ e não age como esperado do alinhamento cis, ela irá “atrapalhar a causa”, “estragar a imagem do grupo” etc. Atenção porque esse discurso está bastante difundido no meio LGBT. E/ou;

8) Uso de termos ofensivos, mas que muitas pessoas (atenção LGBT’S) não acham ofensivos, ou evocar arbitrariamente (sem a permissão da pessoa) o nome designado ao nascer, a experiência “pregressa” (falar em “antes” e “depois” é cissexista também); termos como ‘transvestir’,’transformista’, ‘traveco’, ‘transsex’, ‘t-gata’ (sim ‘t-gata’ é um termo fetichizador cissexista e sexista também, objetificador: atenção pessoas que se identificam como “t-lovers”); uso de termos como crossdress, drag, drag queen/king, quando você não sabe qual é a identidade da pessoa. E/ou;

9) Cont. item 8 – Designar arbitrariamente a identidade da pessoa. Conhecer alguém e prontamente decidir qual é a ID da pessoa baseada na imagem (visual e/ou performática) (da sua posição cis) que você tem dela. Alinhar pronomes e identidades também é cissexista. E/ou;

10) Na simples discriminação pela pessoa não ser cis, por ter qualquer comportamento diferente do esperado pelo alinhamento cis. Nesse ponto o sexismo também tem papel importante. Cissexismo e Sexismo são faces da mesma moeda. Desenvolverei esse assunto em outro post. E/ou:

11) Qualquer outra situação que se encaixar em discriminação, pois com certeza não consegui listar tudo aqui, existem inúmeras outras.”

Por que nomear quem são as pessoas cis:

Como eu disse mais acima, ser cis é uma condição principalmente política (mas não só). A pessoa que é percebida como cis e mantém status cis em documentos oficiais não é passível de análise patologizante e nem precisa ter seu gênero legitimado. Ora homens são homens, mulheres são mulheres e trans* são trans* correto? Não. Historicamente a ciência criou as identidades trans* (e por isso já nasceram marginalizadas), mas não criou nenhum termo para as identidades “naturais”. É por isso que a adoção do termo cis denuncia esse status natural. Denotar cis é o mesmo processo político de nomear trans*: nomeia uma experiência e possibilita sua análise critica. Nas produções acadêmicas contemporâneas, tanto das ciências médicas quanto das sociais, a identidade trans* é colocada sempre sob análise, tornando-se compulsoriamente objeto de critica. Ao nomearmos @s “normais” possibilitamos o mesmo, e colocamos a categoria cis sob análise, problematizando-a. Buscamos o efeito político de elevar o status de pessoas cis ao mesmo das pessoas trans*: se pessoas trans* são anormais e doentes mentais, pessoas cis também o são, suas identidades também não são “reais”; se pessoas cis são normais e suas identidades naturais, pessoas trans* também são normais e suas identidades tão reais quanto.

A naturalização das identidades cis produz privilégios. Esses privilégios são diretamente percebidos na medida em que, como eu disse acima, pessoas cis não precisam ter sua identidade legitimada pela ciência; tampouco estão classificadas como doentes mentais em documentos médicos; não sofrem privações jurídicas de existência em documentos oficiais; não sofrem violência transfóbica e cissexista; não precisam dar explicações sobre suas identidades; não são vistas como pervertidas e nem tem sua sexualidade confundida com seu gênero. Esses são apenas alguns exemplos, para conferir uma lista bem atualizada e completa, verifique aqui. (em inglês).

Para além da discussão trans*: a multiplicidade das identidades de gênero:

Essa discussão se pautou principalmente nas pessoas trans*, mas é importante lembrar que gênero é uma categoria instável que não é coerente. Gênero está se deslocando continuamente dentro das performances culturais. Gênero é uma performance discursiva, móvel e abstrata. Esse pensamento orientou muitas pessoas que não se sentiam cisgêneras, mas também não se denominavam trans*. Criaram categorias de classificação próprias que no tumblr ganhou força. Alguns exemplos são: genderqueer, third sex, agender, bigender, androgyne, neutrois, entre outros. Não convém aqui explicar cada uma dessas categorias, mas denunciar o caráter frágil do binarismo. O sistema binário de gênero não é tão natural quanto se imagina e tampouco é estável e inabalável.

Resta saber se iremos contribuir para reforçar um sistema excludente e desumanizador, ou lutar contra as políticas e discursos cissexistas existentes na sociedade.


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