Breve resposta a uma feminista radical transfóbica no que tange raça, gênero e sexualidade
Por Hailey Kaas.
[N.A. Esse texto foi originalmente postado no Facebook como resposta a uma postagem de uma feminista radical transfóbica com os seguintes questionamentos:
“Se um branco falar que se sente negro, a gente não aceita.
Se um hétero falar que se sente do vale, a gente não aceita.
Mas quando um homem falar que se sente mulher, “tem que aceitar”.
Cês não acham que tem alguma coisa errada aí?”
O texto não logra exaurir o debate, trata-se de uma breve resposta que pode ser desdobrada].
Primeiramente, raça, sexualidade e identidade de gênero são, obviamente, características identitárias muito diferentes. A raça também é uma construção social que funciona a partir de diversos marcadores como geografia, língua, indumentária, cultura, classe social, fenótipos, etc. Ser “branco” enquanto cor de pele por si só não é suficiente para inferir nada, haja visto várias pessoas negras com pele branca ou com vitiligo. Raça não se resume somente a “branco” ou “negro” enquanto cor de pele. Não sou eu que estou dizendo, existe um campo de estudos direcionado à questão da raça e etnia (que são coisas distintas).
A sexualidade está mais próxima da questão do gênero, afinal a questão do desejo é diretamente influenciada pela questão do gênero. As feministas lésbicas do começo dos anos 90, que geral adora chamar de “o queer”, já questionaram se a heterossexualidade que produz o gênero ou se o gênero produz a heterossexualidade. Se temos papeis sociais que funcionam em função da heterossexualidade, ou seja, somos mulheres porque nosso destino é se relacionar com homens e daí procriar, então a heterossexualidade produz o gênero; se a heterossexualidade funciona em função do gênero, então somos heterossexuais porque somos mulheres (é um loop infinito, entendem?). Uma das feministas lésbicas a desenvolver isso foi Monique Wittig, que cunhou o termo “contrato heterossexual”. Podemos discutir isso mais à fundo, e para isso precisamos de ferramentas teóricas mais complexas do que o post da radfem compartilhada aqui.
Por outro lado, afirmar que “não aceitamos hétero que se sente do vale” implica no quê? Porque boa parte da militância aceita e convida pessoas heterossexuais a lutar pelos direitos LGBT. Não existe esse sujeito universal “a gente”. A gente quem? E o que é “se sente do vale”? Tem hétero que diz que se sente gay ou lésbica? Não são as feministas radicais que militam pelo “lesbianismo político”? Não são as radfems que se intitulam “heterossexuais em desconstrução”? Não entendi.
Por último, o “sentir-se como” sempre banalizado. A condição material das pessoas trans é muito concreta. Basta olharmos para os dados, para o acesso ao emprego e à educação, aos assassinatos e às expulsões familiares. O vídeo da semana passada da travesti sendo espancada em plena luz do dia por “nenhum motivo” (ou seja, simplesmente por ser travesti) é um indicativo de como a transfobia age. Para eles, “aquilo” não é mulher, é “homem de saia”, e isso é inadmissível. Existem exemplos concretos de que corpos considerados masculinos que expressam feminilidade são duramente violentados, em decorrência da misoginia que aloca a feminilidade como inferior. Ora, nem precisamos falar de travestis, basta olharmos para os gays afeminados, duramente violentados e preteridos. O radfem ativamente reforça essa violência ao repetir o mesmo mantra de “homens de saia”.
Colocar a discussão e a suposta “mentira” da nossa identidade no “sentir-se com” é muito desonesto quando podemos olhar claramente a situação das pessoas trans nesse país. Muitas pessoas trans se utilizam desse argumento (sentir-se como) para tentar se explicar e isso não é errado, porque elas não detêm as ferramentas teóricas para tal. Basear uma análise nisso é fazer análise individualista dos fenômenos sociais, algo justamente bastante liberal, e é bem classista colocar o ônus do discurso teórico perfeito em sujeitos que mal conseguem acessar QUALQUER educação.
Sobre a pergunta que se adora fazer: “o que é sentir-se mulher” / “o que é ser mulher”?
Todas as pessoas, inclusive nós, inteligibilizamos gênero através dos signos que mediam nossa percepção com o mundo, ou seja, tratam-se desde as coisas mais óbvias como rosa/azul, até as mais enraizadas e imperceptíveis, como gesto, olhar, forma de falar e se expressar - os signos mais sutis que produzem gênero para além daqueles mais evidentes. Alguém “é” alguma coisa na mesma medida que essa alguma coisa é expressada e inteligibilizada socialmente - que coloca essa “alguma coisa” como algo positivo ou negativo, algo a ser apoiado ou rejeitado, a depender de sujeito a expressa. Resumidamente, somos mulheres porque a sociedade nos coloca nesse lugar, e nesse sentido está correto dizer que gênero é imposto. Ocorre que essa imposição não coloca os sujeitos em condição de robôs, onde nunca se poderá escapar de tal imposição. Na realidade, paga-se o preço de se negar essa imposição, assim agem a homofobia, transfobia e o machismo. Os genitais fazem parte dessa imposição. A forma como entendemos pênis como masculino e vagina como feminino também é uma construção social. Isso não é teoria queer, isso é epistemologia, é Platão, é semiótica. Há várias teorias da linguagem que explicam esse fenômeno, basta pesquisarmos, até porque seria muita pretensão acharmos que a teoria queer criou tudo sozinha ou que Butler ou Foucault criaram todas essas ideias sozinhos. Essas pessoas beberam de outras teorias que todo mundo usa, mas não percebe que usa.
Continuando, esse “sentir-se como”, portanto, está associado às formas de como as mulheres e os homens são tratados e vistos socialmente, em que local são colocados, que signos lhes são atribuídos. Mas essa existência não é só definida pela misoginia, por exemplo, não é (só) a misoginia que define o que é ser mulher, afirmar isso seria misógino por excelência, pois daí poderíamos concluir que as próprias mulheres enquanto sujeitos são produções dos homens e do machismo (e isso foi discutido pelo feminismo do começo do século XX à exaustão). A misoginia INTERFERE fortemente na forma como vemos, percebemos e tratamos as mulheres, mas não funda um essencialismo “mulher” justamente porque ser mulher é uma construção social e não há nada de essencial à identidade. A subjetividade é capturada pelos discursos de poder, nossa expressão no mundo se dá através dela, mas não existe só a norma, não somos só a norma e não funcionamos só em função da norma. Como disse acima, não somos robôs e se assim fosse não existiriam pessoas LGBT ou feministas, porque ninguém escaparia da forma heterossexual e machista. As mulheres não são seres subservientes e incapazes de se conscientizar de sua própria condição. Temos mais de um século de feminismo provando isso.
Está correto também afirmar que as pessoas trans reproduzem estereótipos de gênero (!), porque TODOS NÓS os reproduzimos, sem perceber. Produzir gênero não é só a maquiagem ou o salto alto, reduzir a isso é ignorar profundamente como o gênero funciona. Como já disse também, os elementos mais sutis produzem gênero. Colocar o ônus somente nas pessoas trans é desonesto e transfóbico, porque parte do princípio que ninguém mais reproduz estereótipos, só nós, e coloca a responsabilidade disso nas pessoas trans*, fazendo uma análise, novamente, individualista de fenômenos sociais, o que é, mais uma vez, algo típico do liberalismo.
Por fim, nós trans emergimos de uma insurgência em relação à imposição de gênero. De uma insatisfação em vivermos nossas vidas de acordo com ela. Reivindicamos outra vida, outro corpo, outra vivência, porque isso faz parte do nosso desejo/subjetividade enquanto sujeitos, e é um direito também, qualquer pessoa deve ter o direito de viver seu gênero conforme lhe seja adequado. Não vejo qual é a produtividade de qualquer militância feminista tentar reprimir isso tal qual a religião tenta.
Na realidade, ao tentar conformar corpos ditos masculinos como homens e corpos femininos como mulheres, só reforçamos a norma e a imposição de gênero. Estamos reimpondo o gênero. Nesse sentido, o radfem afirma: não existe vida para além dessa imposição, não existe escape da norma” enquanto tenta justamente resistir à norma através do feminismo. É incoerente, afinal é o machismo que tenta subjugar as pessoas a determinados papeis sociais e não o feminismo.