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Pessoas Trans* como Produtoras do Conhecimento: Emancipação e Agência

[N.A. Esse texto fez parte de uma fala feita na PUC-RS no evento “O Papel da Universidade no Debate de Gênero e Orientação Sexual” no dia 26/08/2015**

Muito se discute sobre inclusão social, particularmente do ponto de vista da raça e classe. De fato, historicamente as pessoas negras e pobres foram (e ainda são) excluídas dos espaços sociais de (re)produção de conhecimento, especialmente do espaço que chamamos de acadêmico. A academia, criada por e para homens cisgênero brancos e heterossexuais, desde sempre nunca se quis como um espaço de aceitação às classes marginalizadas, muito menos então às pessoas negras.

Num cenário de imensa desigualdade social que atinge majoritariamente a “carne mais barata do mercado”, ou seja, as pessoas negras, políticas de inclusão social como cotas são muito importantes e urgentes. Contudo, sabemos que inclusão social não é a mesma coisa que aceitação social. Pichações em universidades públicas e privadas com discursos racistas e xenófobos circulam através de fotos pelas redes sociais, denunciadas pelo movimento negro. Mesmo com cotas, estamos muito longe ainda de tornar a universidade realmente democrática às pessoas pobres e pretas.

Dito isso, o cenário não é muito distinto para as pessoas trans*, que muitas vezes também são pobres e pretas. Considerando que, segundo a estimativa da ANTRA, 90% das travestis estão em situação de prostituição e que o acesso à educação para essa população é muito precário, quase sempre culminando na evasão ou na realidade na “expulsão escolar” como diria Berenice Bento, a formação dessas pessoas para o mercado de trabalho capitalista é praticamente inexistente.

Em nossa sociedade, as pessoas que não carregam estigmas de marginalização já têm dificuldades para sobreviver através de um emprego digno quando não são alfabetizadas, sem o primeiro ou segundo grau completo. Por isso, tendo em mente que as pessoas trans* sofrem muito mais discriminação, ainda mais se forem mulheres e negras, o acesso a uma vida e emprego dignos é praticamente impossível de se alcançar. Assim como no caso das pessoas cis negras, não basta defendermos modelos inclusivos de acesso à educação, é necessário combatermos também o cissexismo instalando nas instituições, mascarado de burocracias (que costumo chamar de “burocracias cissexistas”) que impedem, direta ou indiretamente, o pleno acesso dos sujeitos trans* à educação, a saber, por exemplo, acesso aos banheiros adequados à identificação de gênero; proteção contra agressões transfóbicas físicas e psicológicas; uso do nome correto nas listas de chamada, nas carteirinhas, enfim, em todos os documentos considerados oficiais pela instituição de ensino, entre outras.

Então, nós trans* temos um duplo problema de acesso a uma vida e emprego dignos, tanto pelo viés da escolarização, quanto pelo viés do acesso concreto a qualquer tipo de emprego. Mesmo aquelas pessoas trans* que conseguem acessar o ensino superior têm dificuldades de se empregar e têm seguido a carreira acadêmica. Mesmo para mim, navegar no networking necessário para me manter como tradutora é desgastante pelo viés trans*, desde o cansaço psicológico de ter que (ainda) lidar com nome civil em recibos, notas fiscais e contas bancárias até as exclusões em potencial tanto porque não gero economia suficiente para me especializar no mercado, quanto pela falta deliberada de oportunidades em função da minha condição trans*.

Isso leva ao fato de que um elemento essencial para conseguirmos acessar e nos manter nas instituições educacionais ainda é a família. Quase todas as pessoas trans* que conheço que conseguiram acessar a universidade tem algum apoio da família, nem que seja mínimo (ou seja, não foram expulsas de casa).

É importante ressaltar esse ponto porque o considero chave para a situação precária das pessoas trans*: o fato de que o apoio econômico familiar em nossa sociedade ser essencial para que um sujeito consiga também se estabelecer economicamente no futuro. Não conseguimos estudar sem um teto, sem alguém que auxilie nas contas, na comida, enfim, nas necessidades básicas de sobrevivência. Além disso, a ideia de que a única saída para sobreviver enquanto trans* na sociedade é a prostituição, inclusive porque através dela pode-se ganhar mais do que nos ínfimos subempregos onde pessoas trans* são aceitas, como telemarketing, por exemplo, continua sendo bastante nociva e culmina também naquele dado de 90% da ANTRA.

Não somos só analfabetas, pretas e pobres, somos também aberrações, corpos abjetos, descartáveis, um depósito de porra, indignas do luto e respeito mesmo na hora de nossas mortes, quase sempre resultado de assassinatos ou suicídios.

Por outro lado, somos desagenciadas por muitos pesquisadores, vitimizadas por ONGS abolicionistas, desqualificadas pela militância “GGGG”, e quase sempre nossa voz, quando ouvida, é sempre relegada à “etnografia”, à voz do “campo” e nunca como sujeitos produtores de conhecimento.

Minha tarefa e a tarefa do transfeminismo é emancipar as pessoas trans* à mesma categoria dxs pesquisadorxs que produzem conhecimento, que recebem verbas de pesquisa, que fazem parte da comunidade acadêmica etc. Como iguais e não como “campo”. Queremos que nossos saberes não sejam hipocritamente etiquetados como “enviesados” por pesquisadores gays que, ironicamente pesquisam a homossexualidade.

Para isso, é necessário que paremos de vitimizar e desagenciar pessoas trans* e comecemos a estimular suas produções, suas falas, suas autonomias, seja através de blogues, vlogues, entrevistas para jornais e revistas (inclusive sem a “mediação” de psis com atitudes paternalistas), sem sermos tratadxs como tokens para “bater a cota” nos movimentos ativistas.

Recentemente, tive a oportunidade de mediar e falar numa mesa quase 100% elaborada por e para pessoas trans*. Precisamos de iniciativas auto-organizadas que fortaleçam as vozes e os locais de fala das pessoas trans* e a universidade pode ser um lugar muito rico para isso.

Para isso, pedimos às pessoas cis que lutem por nós e que sejam nossos aliadxs, como iguais, nos respeitando como produtorxs de conhecimento, e não em relações de poder assimétricas dentro da hierarquia pesquisador/objeto.

*Pessoas transexuais, tran­sgêneras, travestis, e/ou outras identidades que se encontram em trânsito ou fora do binário cisgênero. Mais informações aqui.

**O texto não chegou a ser lido em função da mesa ter sido interrompida por um escracho feito contra o DCE da PUC, que na época era liderado pelo MES/PSOL. Ao invés disso, fiz uma fala a respeito do ocorrido e posteriormente sobre pessoas trans* na universidade tendo como base esse texto.

 

 

 

Written by Hailey